quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Ensino médio, PNE, apagão docente: conheça os desafios do campo da educação para 2024

As expectativas do campo popular para a área de educação no primeiro ano do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) eram altas. Afinal, a área foi uma das mais prejudicadas na gestão de Jair Bolsonaro (PL), tanto em termos de recursos como de políticas negativas.

"Costumo dizer que o MEC (Ministério da Educação) deveria ser o ministério mais importante do governo Lula", diz Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e conselheira do Conselho Técnico Científico da Educação Básica (CTC-EB) da Capes. "Depois de quatro anos de governo Bolsonaro, do processo das eleições como elas foram, depois tem um 12 de dezembro em Brasília, depois uma tentativa de golpe no 8 de janeiro. O Brasil tem um sistema educativo de 56 milhões de pessoas. O que significa que a população brasileira inteira está diretamente vinculada à escola. Se eu coloco esses 56 milhões, mais profissionais da educação e mais familiares, então eu tenho uma sociedade brasileira em torno da escola, em torno do sistema educativo. Esse sistema educativo é o lugar central de você debater, formar, problematizar essa realidade que nós que nós estávamos", defende.

Após um ano de governo, no entanto, a avaliação de especialistas sobre o desempenho do MEC não é positiva. Políticas importantes foram anunciadas, como aquelas voltadas para a alfabetização, escolas em tempo integral, conectividade e alimentação escolar. Apesar disso, militantes da área dizem que a gestão deixou a desejar.

Catarina Santos lembra que a pasta não conseguiu executar a totalidade de seu orçamento. "O MEC está sem projeto de educação. Ele não conseguiu executar o orçamento em 2023, em um ano em que você teria tudo a ser reconstruído", diz. Dos R$ 130 bilhões reservados para a pasta, R$ 126 bilhões foram empenhados, mas apenas R$ 109 bilhões foram efetivamente utilizados. De acordo com levantamento realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, R$ 9 bilhões foram liberados nos últimos quatro dias de 2023 – o equivalente a 8% do total.

Para Jhonatan Almada, diretor do Centro de Inovação para a Excelência em Políticas Públicas (CIEPP) e ex-reitor do Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (Iema), em 2023, o ministro da Educação, Camilo Santana (PT), falhou em defender os projetos do próprio ministério. "Se você compara a atuação de Fernando Haddad (PT) como ministro da Fazenda na aprovação da reforma tributária e a atuação do Camilo Santana como ministro da Educação em relação ao Projeto de Lei do Ensino Médio, a diferença é brutal. Você percebia o Haddad fazendo a articulação política no Congresso, era visível. Ele [Camilo], não", afirma.

A atuação do MEC na tramitação do PL do Ensino Médio gerou constrangimento para o governo no Congresso. Após pedido de urgência para sua aprovação por parte do Planalto, o texto foi parar na relatoria de Mendonça Filho (União-PE), ex-ministro da Educação na gestão Temer, responsável pela aprovação do Novo Ensino Médio, um fracasso reconhecido até mesmo pelos seus defensores, como as fundações empresariais dedicadas à educação.

Apesar de não ser um projeto de autoria integral do governo – houve um tímido processo participativo com atores como pesquisadores, militantes, estudantes e famílias –, Mendonça Filho fez modificações importantes no texto na sua relatoria. Entre elas está a diminuição da carga horária para matérias básicas: o MEC encaminhou o PL com 2,4 mil horas de disciplinas comuns e o relator defende a diminuição para 2,1 mil.

O próprio Camilo Santana reconheceu os problemas, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo: "Talvez a gente precise melhorar a forma que tem se relacionado nesse aspecto. Recebi pessoalmente no meu gabinete 340 parlamentares em 2023. Vamos tentar estabelecer um processo mais próximo".

•        Participação

O impasse fez com que o governo retirasse o pedido de urgência. Após negociações com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a votação ficou para 2024. A mudança foi considerada uma vitória pelos movimentos de educação, que poderão debater o texto e as estratégias de luta durante a Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontece entre os dias 28 e 30 de janeiro, em Brasília (DF). É na Conae, ponto alto da participação popular na área, que acontecem os debates sobre o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que traça metas para os próximos 10 anos. Se tudo correr como o previsto, o texto será entregue ao MEC para que seja elaborado um projeto de lei, que deve então tramitar no Congresso Nacional.

"No melhor dos mundos, a melhor proposta é adiar o plano. O país não cumpriu as metas do plano anterior, e pode ser uma boa pedida diante do Congresso que a gente tem. De qualquer forma, o plano precisa estar na agenda", avalia Catarina Santos. "Existem muitas pendências: tem o sistema nacional de educação, que a gente nunca conseguiu implementar; temos processos de avaliação, o próprio sistema nacional de avaliação da educação básica, que está lá na Constituição e não foi implementado. Isso para a gente pensar de políticas macro. Tem ainda nas questões cotidianas no nosso país: infraestrutura escolar, quantidade de pessoas que estão fora do sistema, o combate às agendas ultraconservadoras, militarização, homeschooling", complementa a especialista.

Jhonatan Almada, por sua vez, avalia que há um avanço no atual cenário, em que existe debate e elaboração de planos que virão a ser aprovados como leis no Congresso Nacional. Ele aponta que a Conae ainda é limitada se comparada a conferências semelhantes, como a da área da saúde. Mas, ainda assim, deve ser vista como algo positivo.

"O desafio para esse ano será a mobilização. As etapas preparatórias tiveram baixa participação social. Fazer [a conferência nacional] em janeiro, mês de férias, é outra dificuldade. Mas o debate do plano é uma conquista. O planejamento deve ser uma relação dialética entre política e técnica. Nenhum deve sobrepujar o outro. Há o desafio de fazer o contraponto à atuação das fundações empresariais, que não fazem a política em espaços como a Conae, mas nos gabinetes. O MEC deveria capitanear essa discussão, é um desafio que o ministro tem que enfrentar", alerta.

Ao Brasil de Fato, o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, disse que o debate sobre o novo PNE já deveria ter começado no Congresso Nacional. Ele lista alguns desafios que devem ser contemplados no plano, como a evasão escolar, valorização dos professores, oferta de vagas públicas nos ensinos superior e técnico e a garantia de aplicação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação – o que deixou de acontecer em decorrência do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) e o teto de gastos implantado pela gestão de Michel Temer (MDB).

"Há muitos profissionais com contratos temporários, não só professores. Não há realização de concursos públicos. Porteiros devem estar em todas as escolas e devem ser profissionais concursados, que tenham preparo para a função. Tem escola que não tem porteiro. Pior: tem segurança armada, o que é um problema.  As redes de ensino não cumprem o preceito da gestão democrática, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LBD). É preciso regulamentar a gestão democrática em todas as redes, garantir que a família esteja na escola, que grêmios sejam eleitos. A participação das pessoas ajuda a criar um ambiente positivo nas escolas", aponta.

•        Violência nas escolas

Criado em abril do ano passado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o canal Escola Segura, lançado para receber informações sobre ameaças e ataques a instituições de ensino, levou a 400 prisões em menos de seis meses, segundo dados do governo federal. Os números alarmantes deixam claro que o enfrentamento a esse tipo de ataque é um dos principais desafios para a educação no curto prazo. Só entre março e abril do ano passado, o país teve quatro ataques violentos em escolas em apenas 15 dias.

"A escola precisa ser um lugar seguro. Já há dois relatórios do governo que mostram que o extremismo de direita avançou no mundo e no Brasil nos últimos anos e conseguiu cooptar crianças e adolescentes. Esses grupos desenvolveram uma tecnologia que consegue chegar até as crianças e adolescentes e trazê-las para as suas visões de mundo, que são extremistas, que redundam em violência e em eliminação do diferente", alerta Jhonatan Almada.

O especialista lembra que os relatórios citados já deram ao poder público recomendações para prevenção e proteção das vítimas de ataques. Isso passa pela criação de uma rede de proteção que envolva conselhos tutelares, Ministério Público, defensorias, sociedade civil e polícias para garantir conscientização e ações rápidas se acontecerem novos casos.

"Na linha de prevenção é preciso continuar apostando na formação sobre diversidade e direitos humanos. Se a pessoa acredita que é preciso eliminar os homossexuais, os negros, as mulheres, então a gente tem que explicar qual foi a nossa construção histórica. O que que a misoginia, o que é machismo, o que é homofobia", complementa Almada.

Na mesma linha, Catarina Santos afirma que "não estamos atuando na causa" destes problemas. Para ela, é preciso ter um plano de ação bem definido para combater, por exemplo, grupos que pregam o ódio às mulheres, já que muitos dos ataques são misóginos. "As ações focadas no aparato de segurança não vão resolver. É preciso que os jovens não queiram atacar sua escola. O Ministério da Justiça teve um papel importante de desmobilização dos ataques, mas não para evitar. O MEC foi muito aquém do que deveria e falta encarar as questões da misoginia e do racismo", avalia a especialista.

Professoras e professores também são vítimas de diferentes tipos de violência. Mobilizado por líderes de extrema-direita e iniciativas como o famigerado "Escola Sem Partido", muitos estudantes passaram a realizar gravações e a expor professores. Além desse, há outros tipos de censura, muitas vezes institucionais, como o monitoramento das atividades em sala de aula determinado pelo governo de São Paulo em 2023.

"A perseguição a professores se dá em três formas: demissão ou procedimentos administrativos para apuração de conteúdos dados em sala; censura propriamente dita, em que o professor é proibido de abordar certos assuntos; e a auto-censura, quando eles se privam de abordar determinados temas por medo de uma eventual gravação por parte do aluno, da escola em si, já que algumas escolas gravam as salas de aula, ou de uma postagem ou de alguma coisa que o leve a ser demitido ou perseguido", aponta Jonathan Almada.

Também há o problema histórico da falta de valorização. Muitos estados se negam a cumprir a lei do piso salarial e determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. Professores extremamente qualificados, com especializações, mestrados ou doutorados, permanecem com os mesmos níveis salariais.

"A Unesco vem publicando dados sobre falta de professores no mundo. A juventude não quer ser professor. Tem a ver com a remuneração, condições de trabalho, com o que o professor vai encontrar nas escolas – e isso tem a ver também com a violência contra as escolas e a agenda conservadora", lembra Catarina Santos. "Há redes em que mais da metade dos professores é contratado, e não concursado. Isso impacta diretamente no direito à educação, já que não há estabilidade e os professores não têm condições de desenvolver um trabalho de longo prazo. É preciso um mecanismo para induzir os entes federados a fazer concursos", conclui.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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