Do desmonte de Bolsonaro ao respiro: saúde viveu retomada em 2023, mas
precisa superar desfinanciamento histórico
Há pouco mais de um ano, no apagar das luzes de
2022, o Brasil se via frente à expectativa de ter o menor orçamento da história para o setor da saúde. Na
ocasião, a equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) tentava reverter as perdas com a PEC da transição, aprovada dias antes do início de 2023. A
aprovação trouxe um alívio, mas ficou longe de conseguir recuperar os prejuízos
e superar desafios históricos.
Quando deixou o governo, o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) deixou também uma proposta orçamentária que reduzia os
investimentos em saúde em R$ 22,7 bilhões de reais para este ano. O tombo
potencializava o esgotamento da área, que já era realidade desde que Michel
Temer (MDB) instituiu o teto de gastos, em 2016. A Emenda à Constituição (EC) congelava os
investimentos sociais por vinte anos.
Frente a esse cenário, o ano de 2023 representou
uma corrida para retomar o básico. A nova gestão conseguiu aprovar a PEC da
transição, que permitiu deixar de fora da regra fiscal R$ 145 bilhões no
orçamento para bancar despesas como o Bolsa Família, o Auxílio Gás e o Farmácia
Popular.
O primeiro grande desafio da saúde tomou as
manchetes de todo o país ainda em janeiro, quando surgiram denúncias de uma
gravíssima crise sanitária em território Yanomami. A presença do
garimpo, que aumentou na gestão bolsonarista, esgotou recursos e levou
fome, desnutrição e doenças aos povos indígenas.
Mais da metade das crianças que vivem na região
apresentava quadro de desnutrição. Doenças como pneumonia, malária e diarreia
se espalharam e atingiram centenas de pessoas. A força tarefa do governo nos
primeiros meses do ano entregou milhares de cestas de alimentos, transportou
mais de 600 pessoas que precisavam de atendimento e direcionou 90 toneladas de
insumos e equipamentos para o local.
A saúde e a sobrevivência do povo Yanomami, no
entanto, continuam representando um desafio. Os garimpeiros voltaram a explorar
ouro na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A Hutukara Associação Yanomami
afirma que já realizou 15 denúncias desde agosto deste ano, chamando atenção
para a retomada do garimpo na região.
Na sexta-feira (22), a Justiça Federal em
Roraima determinou que a União elabore um novo plano de ações contra a atividade
ilegal no local. Na avaliação do Judiciário, as medidas de combate aos crimes
ambientais e de retirada dos invasores implementadas no início do ano pelo
governo federal não foram satisfatórias para garantir a segurança, a saúde e a
vida daqueles que moram e atuam no território.
·
Vacinas
O ano de 2023 começou com o Brasil em situação alarmante nos índices gerais de vacinação. Segundo
dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a taxa de imunização
despencou de mais de 90% para cerca de 70%. O resultado colocou o país
entre as dez nações com menor cobertura vacinal do mundo.
Em fevereiro, o governo atual lançou o Movimento Nacional pela Vacinação. O objetivo era reverter o cenário,
reforçado nos anos anteriores por uma fórmula que reunia negacionismo, falta de
campanhas e baixo investimento nas políticas de saúde.
Como parte da estratégia nacional para
retomar os níveis de vacinação, o Ministério da Saúde lançou o
programa Saúde com Ciência, que além de chamar atenção para a manutenção da
vacinação atualizada, também combate a desinformação e as fake news.
Evelyn Santos, Gerente de Parcerias e Novos
Projetos da Umane, organização da sociedade civil que atua para construir e
defender o SUS, afirma que os 50 anos do Programa Nacional de Imunização, em
2023, devem ser comemorados. Nesse sentido, ela ressalta a retomada das ações
registrada este ano, mas pondera que ainda é preciso ir além .
"Os valores em várias dessas vacinas do
calendário ainda estão abaixo do que seria a meta. Ou seja, temos que
comemorar, pela tradição que temos e por esse resgate que parece estar
acontecendo, mas temos que seguir trabalhando. Isso é bastante importante e não
é um movimento isolado. Ao redor do mundo todo, o movimento antivacina vem aí e
a hesitação vacinal também contribui para essa diminuição das coberturas. Temos
que entender o papel do setor de saúde como proativo nesse processo e que vamos
conseguir. Estamos muito animados."
Segundo o governo, mais de R$ 151 milhões foram
repassados para estados e municípios, com foco especial na implementação da
vacinação nas escolas. Em 2023, 3.992 cidades adotaram a imunização de crianças
e adolescentes no ambiente escolar.
Os horários das salas de imunização foram
ampliados, e as equipes de saúde realizaram busca ativa de não vacinados,
padronização nos registros das doses aplicadas e identificação do aplicador em
um sistema nacional.
As campanhas e os investimentos já mostram efeitos.
O país conseguiu chegar a 80% da população com o esquema vacinal contra a
covid-19 completo em 2023. Mais de R$ 38 bilhões foram direcionados a ações de
combate ao coronavírus.
Além disso, houve aumento na cobertura de oito vacinas recomendadas para crianças com um ano de idade. De
janeiro a outubro, 26 estados tiveram alta da aplicação das vacinas
pneumocócica, poliomielite e tríplice viral (1ª dose). Em 24 estados, foi
registrada alta das doses contra a hepatite A, meningocócica e tríplice viral
(2ª dose). Todas as unidades da federação tiveram aumento na vacinação contra a
febre amarela e DTP.
·
Investimentos ainda insuficientes
Além das ações para conter as crises na saúde
indígena e na vacinação, o governo recriou programas que estavam suspensos e
investimentos em áreas que foram deixadas de lado pela gestão anterior. Nessa
lista estão o Mais Médicos, o Farmácia Popular, a Rede Cegonha e o Brasil
Sorridente, por exemplo. Mas a retomada ainda não é suficiente para reverter as
perdas recentes e a falta de financiamento histórica.
Segundo uma pesquisa do
Instituto de Estudos para Políticas de Saúde e da Umane, o
dinheiro destinado para o setor sofreu queda de 64% entre 2013 e 2023. O
levantamento, publicado em maio, já levava em consideração o que era previsto
para 2023.
Evelyn Santos afirma que a falta de investimentos
atinge principalmente populações periféricas e vulneráveis, como mulheres,
crianças, pessoas negras e indígenas. Ela defende mais recursos, principalmente
para a atenção básica, considerada primordial para os fatores determinantes da
saúde.
"Nós fazemos muito, com muito pouco. Se
olharmos o quanto do PIB é gasto em saúde no Brasil, estamos em linha com os
países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), bem
desenvolvidos se comparáveis conosco. Agora, quando olhamos quanto por cento
disso é gasto público, ou seja, saúde pública - que atende 100% da população em
vários serviços e grande parte da população também na assistência - vamos que
não chega a 4%", afirma Evelyn Santos.
O planejamento orçamentário deixado pelo governo de
Jair Bolsonaro foi revertido com a PEC da transição, aprovada em dezembro de
2022. Já o texto de gastos deixou de vigorar com a aprovação do arcabouço
fiscal, em agosto passado.
"Conseguimos, em 2023, recuperar o que foi
feito em termos de cortes, desmonte e reversão nos últimos anos? Eu diria que
não, não conseguimos. Mas também é importante ressaltar que houve algumas
movimentações muito importantes. Sobretudo no começo do governo, quando foi
possível a revogação da EC 95 e a decisão de ter algum suplemento
extraordinário para financiar ações do Ministério da saúde. Também houve a
retomada do programa Mais Médicos, que ampliou grandemente o acesso. Foram
ações emergenciais, mas que foram muito importantes para viabilizar que este
ano de 2023 pudesse ser operado", pontua Rosana Onocko.
Com as duas medidas, o setor da saúde voltou a ter
um respiro, mas ainda insuficiente. O cenário reforça os cálculos que mostram
que, na última década, o país praticamente não aumentou os investimentos na
área.
Em agosto, o Ministério da Saúde anunciou
investimento de R$ 31 bilhões ao longo dos próximos anos em ações de atenção
primária, atenção especializada, telessaúde, preparação para emergências
sanitárias e Complexo Econômico-Industrial da Saúde.
·
Participação popular
O ano de 2023 na saúde também foi marcado por um
intenso movimento de retomada da participação da sociedade nos debates e
decisões do setor. Na primeira semana de julho, foi realizada em Brasília
a 17ª Conferência
Nacional de Saúde, com a participação de mais de 6 mil pessoas da população em geral
e de entidades da sociedade civil, fóruns regionais e movimentos sociais.
Nos meses anteriores ao evento, conferências
municipais, estaduais e livres foram realizadas. Em cada uma delas, uma série
de propostas foram apresentadas. A partir das sugestões, foi criado um documento entregue ao governo federal para incorporação ao Plano Nacional de
Saúde e Plano Plurianual de Saúde 2024-2027.
Rosana Onocko afirma que os espaços de participação
e controle popular são “pontos de honra” do SUS e que já eram valorizados
historicamente pelo movimento sanitarista do país. Segundo ela, a retomada
desses processos também é essencial para combater o conservadorismo,
representado principalmente em decisões do Congresso Nacional contra direitos
de minorias na área da saúde.
“São preocupações muito grandes que temos e a única
forma de enfrentar esse Congresso, que tem uma configuração bastante
conservadora, vai ser com a mobilização do movimento social e do controle
social. Esperamos que as coisas se sustentem tão boas quanto foram em 2023 e
que acelerem, no sentido de sermos capazes de comprar boas brigas, que são de
princípios, que têm a ver com direitos humanos, com acesso à saúde e com o
respeito da diversidade”, explicou.
Em novembro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS)
anunciou que pretende ampliar a participação social e popular em todas as
Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país nos próximos três anos. A ideia é criar
Conselhos Locais nas 42 mil UBS existentes em território nacional. Dessa forma,
as experiências de cidadania ativa que já são aplicadas em algumas localidades
se tornarão uma política de estado.
Iniciativas locais em educação popular na saúde
também devem inspirar a formação de uma rede nacional. A medida anunciada em
agosto, com previsão de aplicação a partir de 2024, vai oferecer cerca de 400
turmas no Programa de Formação de Agentes Educadoras e Educadores Populares de
Saúde e formar pelo menos 8 mil pessoas.
Fonte: Brasil de Fato
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