Direitos Humanos: polícias, sistema prisional e trabalho escravo ainda
são problemas graves
2023 chegou ao fim e, com ele, o primeiro ano do
novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Presidência da República que,
de uma ou outra forma, resgatou a nossa democracia que vinha sendo ameaçada
pelo ex-presidente inelegível Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores que tentaram um
golpe em 8 de janeiro. Mas quando pensamos em democracia, automaticamente
precisamos pensar em direitos humanos e, nesse sentido, apesar da óbvia
melhora, não há muito o que comemorar em termos de retrospectiva.
Por um lado foi registrado um enorme avanço
institucional na área, com a criação do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania no
lugar do bizarro poste deixado por Bolsonaro e Damares Alves, a ex-ministra. Por outro lado, defensores de direitos humanos de todo
o país apontam que ainda há muito o que ser feito, sobretudo quando se fala
em forças de segurança (polícias), sistema prisional e trabalho escravo
– ou “análogo à escravidão”, como convencionou-se chamar a prática nos meios de
comunicação.
Os direitos humanos são a pedra no sapato de todo
Estado e todo governo, mesmo os progressistas, uma vez que sua função é
observar, regular e denunciar justamente a atuação direta, ou a omissão, desse
ente gestor de pessoas e territórios. Vejamos, a seguir, um breve resumo e
retrospectiva dessas três áreas: polícias, prisões e trabalho análogo à
escravidão.
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Forças de Segurança – Polícias Militares
Impossível não lembrar da atuação da Polícia
Rodoviária Federal em prol de Jair Bolsonaro (PL) nas últimas eleições, bem
como os diversos episódios de greves e mobilizações de policiais militares e
civis como o que quase vitimou Cid Gomes e sua retroescavadeira no Ceará.
Paralelamente a isso, temos também o crescimento das milícias que são
concebidas dentro de um ambiente social da categoria.
Nas últimas décadas as forças de segurança se
tornaram uma poderosa categoria, com inserção na política institucional e força
para negociar seus interesses. Não à toa, é um problema sério a ser resolvido
num país que, como o Brasil, pretende viver em democracia.
Ainda não temos os dados de 2023, mas segundo o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram 18 pessoas mortas por
dia pelas polícias. E os estados do Rio de Janeiro e Bahia lideraram a cifra ao
concentrarem 43% dos casos. Foram 6430 vítimas.
Em 2023 a coisa não parece ter mudando tanto, com
talvez a inclusão de São Paulo, agora governado pelo bolsonarista Tarcísio de
Freitas, devido a dezenas de mortes decorrentes da Operação Escudo, na Baixada
Santista.A operação, inclusive, foi uma espécie de vingança policial contra o
assassinato de um agente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), grupo de
elite da PM paulista.
O PM Patrick Reis foi assassinado no Guarujá
supostamente por um sniper do crime organizado. “Supostamente” porque mais tarde não ficaria comprovada a autoria do
homem apontado como o matador do policial da Rota.
Rapidamente mais de 600 homens da PM paulista foram mobilizados em torno da
Operação Escudo e rumaram à cidade do litoral. Ele foi baleado no tórax
enquanto fazia patrulhamento na comunidade de Vila Zilda, no Guarujá. Desde
1999 um homem da Rota não era morto em serviço.
A partir daí começou uma verdadeira carnificina
recheada de ilegalidades. A ação ostensiva da PM jamais escondeu que se tratava
de uma vingança contra as “comunidades que abrigam o crime organizado”, como se
a comunidade tivesse essa escolha. 28 pessoas foram executadas entre 28 de
julho e 5 de setembro enquanto a operação durou, ao mesmo tempo em que os
suspeitos pelo assassinato do soldado Reis eram capturados e levados ao
tribunal.
O Instituto de Criminalística da Polícia Científica
de São Paulo realizou em agosto um exame para detectar a presença de resíduos
químicos provenientes do disparo recente de arma de fogo nas mãos de Ericksn
David da Silva, o “Deivinho”, acusado pela Polícia Civil de ter atirado e
matado o soldado da Reis. O resultado do chamado Exame Pericial por
Residuografia em Tiras nas mãos do acusado, no entanto, deu negativo.
"Eles [policiais da Rota] andam de
capuz pelas vielas, estão matando primeiro para perguntar depois. Igual fizeram
com um moleque que estava indo no mercado. O moleque gritava 'pelo amor de
Deus', e bateram no menino, todo mundo ouviu aqui. Mataram o menino e levaram o
celular dele. Menino inocente, isso não pode", revelou um morador ao
Brasil de Fato.
Quando o número de vítimas chegava a 12, em 31 de
julho, um homem identificado como "Soldado Raniere" celebrava o
placar de mortos nas redes: "Só atualizando: são 9". Em outra, ele escreve: "Para
conhecimento, atualizando o placar até o momento 12 x 1". Àquela
altura, o governador Tarcísio se dizia “extremamente satisfeito” com a
ação da polícia. Ao todo, 29 pessoas foram mortas até setembro.
Um morador da Vila Baiana, no Guarujá, fez um
relato do cotidiano da ‘quebrada’ nessa última semana ao jornalista Matheus
Pichonelli, do Uol. Ele afirma que após as 22 horas era comum que as pessoas
estivessem nas ruas confraternizando, mas que após o início da Operação Escudo
e a subsequente matança, as ruas estão completamente vazias após esse horário.
“As pessoas têm medo de descer o morro
e não voltar. Tem sido assim desde o dia em que mataram o policial militar da
Rota aqui perto, na quinta-feira (27). Quando você sai de casa os policiais já
perguntam quem você é, se é morador e por que está descendo. Tem vizinho que
chega depois das 22 horas do trabalho e liga para casa do ponto de ônibus. As
mulheres então descem com as crianças para buscá-lo”, declarou.
O homem, que obviamente não foi identificado,
relata que também foi vítima de uma humilhação decorrente do massacre. Na
sexta-feira (28) policiais bateram à porta da sua casa, invadiram o domicílio
e, quando perceberam que ele tinha uma passagem por tentativa de roubo anos
atrás, o ameaçaram. Sua filha de 2 anos presenciou a cena.
“Meu irmão começou a filmar e um PM
muito alterado quis tomar o aparelho dele e o agredir. Minha mãe tem 51 anos e
pediu para eles terem calma porque ela é especial. Disse que era da igreja e
que meu irmão sofre com ataques epiléticos” relatou.
Algo parecido aconteceu na Bahia ao longo do ano. A
última escalada que ganhou destaque na imprensa nacional ocorreu entre 28 de
julho e 4 de agosto, quando uma série de operações policiais na periferia de
Salvador deixou mais de 30 mortos. De acordo com a Rede de Observatórios da
Segurança, a Bahia registrou um aumento de 300% nos últimos 8 anos no números
de mortos pela sua polícia.
A lógica é semelhante à verificada em São Paulo.
Das 1465 pessoas mortas pelo Estado baiano em 2022, 95% eram negros e 74%
tinham entre 28 e 19 anos. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia, ao
contrário de criar grupos de trabalho para debater o problema, soltou ao longo
do ano diversas notas à imprensa defendendo suas tropas e dizendo que as
polícias agem dentro da legalidade.
No caso da Bahia, a conta cai diretamente no colo
do PT e da esquerda. Rui Costa, atual ministro-chefe da Casa Civil de Lula,
assim como Jacques Wagner e Jerônimo Rodrigues estiveram entre os governantes
baianos que, assim como políticos de direita, apostaram na militarização e no
confronto como uma solução para a Segurança Pública.
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Sistema Prisional
O Brasil é o sétimo país mais populoso do mundo, no
entanto, quando falamos em população carcerária, é o terceiro. Fica atrás
apenas dos Estados Unidos e da China. São mais de 830 mil pessoas e um déficit
de mais de 160 mil vagas.
95% são homens e 5% mulheres. De acordo com a
autodeclaração dos presos, pardos são maioria (46%), seguidos por brancos
(28%), negros (15%), amaremos (1%) e indígenas (0,2%). A maioria tem entre 35 e
45 anos (25%) e de 25 a 29 anos (23 anos). 336 mil estão em regime fechado, 190
mil em prisão domiciliar, 180 mil em prisão provisória e 118 mil no regime
semiaberto. Apenas 7 mil estão em regime aberto. Os dados são da Secretaria
Nacional de Políticas Penais (Senappen).
A falta de estrutura condizente com um sistema
prisional minimamente decente, a precariedade, superlotação, doenças, tortura e
a violência generalizada que ocorre dentro dos presídios, além de constarem
como graves violações de direitos humanos recorrentes em todo o país, também
funcionam como cumbustível para o crescimento das chamadas facções criminosas.
Entre as mais conhecidas, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da
Capital (PCC), mas há mais de 70 facções ativas nos presídios brasileiros.
“As celas superlotadas viraram depósito de pessoas
porque não têm assistência a saúde, educação, trabalho, muitas vezes não tem
kit de higiene. É um ambiente que não cumpre objetivo nenhum a não ser o de
massacre”, afirmou para a Folha Bárbara Suelen Coloniese, perita criminal que
trabalhou em uma série de relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura.
Diversos pesquisadores e estudiosos do tema aponta
que é justamente a truculência dentro das prisões o que motiva a criação de
organizações criminosas. Um deles é Acácio Augusto, cientista político da
Unifesp, que falou à Fórum na ocasião do aniversário de 30 anos do Massacre do Carandiru.
“A covardia praticada pelos PMs nesse
dia motivou a formação do que se conhece hoje como PCC. À época havia várias
facções ou gangues no sistema carcerário paulista, cuja ‘briga entre facções’
serviu como motivação para a operação que desdobrou no massacre”, elucida
Acácio Augusto.
E essa situação de abandono se repetiu ao longo do
ano. Só como exemplo, em fevereiro, um incêndio causado por conta de ligação
irregular de luz matou três presos em fevereiro no Complexo Penitenciário da
Agronômica, em Florianópolis (SC). E em Alagoas, na Penitenciária Baldomero
Cavalcanti de Oliveira, presos têm de urinar e defecar em baldes que são
esvaziados das janelas das celas e vivem em situação constante de
insalubridade.
De acordo com levantamento da Folha a partir de
dados dos governos estaduais e da Senappen, já morreram mais de 17 mil em
presídios brasileiros nos últimos 10 anos. Os dados de 2023 constam somente até
o mês de junho e marcam 913 vítimas, mantendo a média dos anos anteriores que
girou em torno de 1800 e 2000 mortos. Essa é a média a partir de 2017, quando
irromperam diversos conflitos entre facções. Antes disso, de 2013 a 2016, a
cifra estava na ordem de 1000 mortos por ano.
Entre 2018 e 2022, mais 50% dessas mortes não foram
esclarecidas. 25% constam como homicídios, suicídios e outras causas externas,
10% se referem a doenças crônicas e 12% a doenças infecciosas e parasitárias.
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Trabalho análogo à escravidão
O ano de 2023 já registrou um recorde no número de trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão. Apenas no
primeiro semestre deste ano (dados acumulados até 14 junho), 1.443
trabalhadores submetidos a jornadas exaustivas, má alimentação, ameaças físicas
e psicológicas e atrasos no pagamento dos salários foram encontrados e,
conforme o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), todos eles foram resgatados.
Esse número já é o maior para um primeiro semestre em 12 anos, superado apenas
em comparação ao mesmo período de 2011, quando 1.465 trabalhadores foram
resgatados.
Isso significa que, a cada dia, mais de oito trabalhadores foram efetivamente retirados da
situação análoga à escravidão em operações de resgate, somente neste ano.
Considerando a média diária, esse número pode ter chegado a mais de 1.500 até o
final do mês de junho, o que alcançaria um novo recorde de 14 anos (o primeiro
semestre de 2009 registrou 1.908 resgates).
De acordo com os dados mais recentes do Radar SIT,
disponíveis no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no
Brasil, o número de trabalhadores encontrados nessas condições desde o ano de
1995, quando foi iniciado o registro, chega a 61.711.
2023 teve resgates de trabalhadores e denúncias
de trabalho escravo na Cervejaria Kaiser do Grupo Heineken,
nas fazendas de cinco fornecedores da JBS (gigante do agronegócio), no
Starbucks, nas vinícolas gaúchas Aurora, Salton e Garibaldi, na Cargill e muitos outros locais de trabalho.
O governo Lula vem realizando contra o trabalho
escravo: foram 102 casos de trabalho análogo à escravidão registrados e 1.408
pessoas submetidas a essas condições degradantes foram resgatadas. Trata-se do
maior número de resgates do tipo em 10 anos.
De acordo com relatório da Comissão Pastoral da
Terra, as atividades econômicas que mais tiveram pessoas resgatadas foram o
cultivo da cana de açúcar (532) e as lavouras permanentes (331), braços do
agronegócio, junto com a mineração (104), desmatamento (63), produção de carvão
vegetal (51) e pecuária (46).
Outro motivo que está por trás da violência no
campo e que chama a atenção é a disputa pela água. Foram 80 conflitos por este
motivo no primeiro semestre de 2023.
Violência contra ocupação e posse de terra, crimes
de pistolagem, grilagem e invasão também cresceram: foram registrados 143, 85 e
185 casos, respectivamente.
O relatório da CPT aponta, ainda, que os agentes
que mais causaram violência em conflitos no campo no primeiro semestre de 2023
foram os fazendeiros (19,75), governo federal (19,33%), empresários (16,95%),
governos estaduais (13,31%) e grileiros (8,54%).
"Além do agronegócio, que gera alta
contaminação por agrotóxicos, os empreendimentos de mineração, usinas
hidrelétricas e também energias renováveis, como a eólica, são apontados como
fatores de conflitos que impedem o bem viver de comunidades tradicionais em
todo o país", destaca a CPT no levantamento.
O estudo destaca também que houve aumento nos casos
de criminalização de pessoas envolvidas na luta pelos direitos dos camponeses,
com 45 casos registrados, e de detenção dessas lideranças (42 casos).
Fonte: Fórum
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