Progressistas ou conservadores? Qual o
posicionamento dos brasileiros no conclave
Na Igreja Católica, bispos usam vestes
púrpura, já os cardeais usam vermelho – um símbolo de que estariam dispostos a
dar o sangue pelo papa. Eles fazem parte do círculo mais próximo do pontífice,
e muitas vezes são seus amigos pessoais. Podem dar conselhos e opinar sobre
decisões do Vaticano. Quando há um conclave, como o que deve ocorrer nos
próximos dias, escolhem o novo papa entre os seus membros.
Não existe um concurso ou eleição para
escolher os cardeais. Eles são uma decisão pessoal do papa, que pode nomear
quantas pessoas quiser e em qualquer lugar que julgar necessário. Por isso
mesmo, costumam estar bem alinhados ao estilo do papa da ocasião. É o caso dos
cardeais brasileiros – cinco dos sete com direito a voto no conclave foram
nomeados por Francisco.
Especialistas que estudam o mundo católico
ouvidos pela Agência Pública acreditam que todos os atuais cardeais brasileiros
seguem uma linha parecida com a do último papa – mesmo os que ganharam o cargo
antes de seu pontificado. Segundo eles, são nomes de perfil moderado, com
inclinação progressista e capacidade de articular consensos dentro da
hierarquia católica.
“Não há um contraste entre os cardeais. Todos
estão alinhados com o legado do papa Francisco e mantêm boa convivência. Nenhum
representa um retrocesso conservador”, afirma Paulo Fernando Carneiro de
Andrade, teólogo e professor da PUC-Rio.
Eles ficam no meio do caminho entre
progressismo e conservadorismo, o que lhes rende a classificação de
“moderados”. Correntes de viés socialista, como a Teologia da Libertação — que
já teve forte influência no Brasil —, perderam protagonismo. Hoje, segundo
teólogos ouvidos pela reportagem, o progressismo dentro da Igreja Católica
brasileira está mais associado à ênfase em questões sociais, como o trabalho
junto aos pobres e comunidades marginalizadas, do que a pautas comportamentais,
como sexualidade e costumes.
O próprio Francisco costumava ser
classificado como progressista na pastoral e conservador na doutrina. Isso quer
dizer que ele não alterou dogmas da Igreja, como defender o aborto ou o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas teve iniciativas para abrir a
instituição e acolher pessoas, como autorizar a benção a casais homossexuais e
a possibilidade de comunhão a divorciados em nova união.
<><> Por que isso importa?
• Escolha
do novo papa será decidida com a participação de sete cardeais brasileiros,
cinco deles escolhidos por Francisco;
• Cardeais
brasileiros têm perfil moderado, dizem especialistas ouvidos pela reportagem.
Para exemplificar, um dos especialistas
ouvidos pela reportagem diz que os cardeais considerados mais conservadores
seriam mais como “tucanos”, em referência ao PSDB, de centro-direita, e não
como “bolsonaristas”, de extrema direita.
Historicamente, o Brasil costumava ter quatro
cardeais. No conclave em que Francisco foi eleito, em 2013, apenas três
participaram. Agora o número passou a oito – apenas sete participam do conclave
porque um deles não tem permissão para votar por ter mais de 80 anos.
O último papa decidiu ampliar a representação
brasileira para atender regiões que considerava prioritárias, como a Amazônia,
que ganhou seu primeiro cardeal em 2022. Com isso, o Brasil passou a ocupar a
terceira posição em número de integrantes no conclave, atrás apenas da Itália,
com 17 cardeais, e dos Estados Unidos, com 10.
• De
amizade com padre Júlio Lancelotti a vídeo com Bolsonaro
Três dos cardeais são mais próximos ao estilo
de Francisco, na avaliação da teóloga Maria Clara Bingemer, docente da PUC-Rio.
São eles: Dom Leonardo Steiner, Dom Sérgio da Rocha e Dom Jaime Spengler.
Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, é
um dos exemplos mais claros. Franciscano e “bergogliano” (seguidor de Jorge
Mario Bergoglio, o nome de batismo do papa Francisco), era um dos clérigos mais
próximos do último papa. Eles conversavam frequentemente sobre a Amazônia e a
necessidade de preservação do meio ambiente, temas considerados prioritários
pelo último pontífice.
Ao contrário de outros cardeais, que costumam
ser discretos sobre temas políticos, Steiner já fez duras críticas ao
ex-presidente Jair Bolsonaro. “Ele desrespeita a democracia, as leis e a
humanidade. Bolsonaro só pensa em si e em seu poder. Para isso, ele usa a
religião”, disse.
Dom Jaime Spengler, presidente da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e também franciscano, é conhecido pela
defesa dos direitos humanos. Já criticou a concentração de renda e a
desigualdade social. Evita, porém, declarações diretas sobre temas como o
aborto — reconhece a violência sofrida por mulheres, mas pondera que “o corpo
do feto também precisa ser respeitado”. Também costuma se posicionar sobre
questões ambientais, defendendo o combate às mudanças climáticas e a proteção
dos povos originários.
Steiner e Spengler foram alunos de Leonardo
Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação e internacionalmente
reconhecido pela defesa dos direitos humanos. Boff, também de origem
franciscana, entrou em conflito com o Vaticano quando o cardeal Joseph Ratzinger,
que viria a ser o papa Bento XVI, considerou seu trabalho “herético”. Ele
defende a importância da fé para combater injustiças sociais e econômicas.
Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador,
ocupa um dos postos mais estratégicos no Vaticano como membro do Conselho de
Cardeais, um grupo que ajuda o papa a governar a igreja. Apontado como
articulador discreto e diplomático, também foi um dos mais próximos a
Francisco. Apesar de nenhum dos cardeais brasileiros serem vistos como
competidores sérios ao posto de novo papa, Dom Sérgio é o que está melhor
colocado nas apostas.
Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e
nomeado cardeal por Bento XIV, costuma ser visto como conservador, mas sem
ruptura. Em 2007, disse em um telegrama revelado pelo Wikileaks que o Bolsa
Família ajuda as famílias pobres, mas “transformou-se numa ferramenta eleitoral
que distorce o sistema político”. Também disse, no mesmo telegrama, que “a
Teologia da Libertação perdeu força nos últimos anos, deixando de ser um
‘problema sério’”.
Apesar das declarações, Maria Clara Bingemer
diz que não o vê como um conservador no sentido estrito. Um dos motivos é a
proximidade e amizade de Dom Odilo com o padre Júlio Lancellotti, pároco da
Paróquia de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, conhecido tanto pelo seu trabalho
social com pessoas em situação de rua como pelos vários ataques que recebe dos
que o chamam de “padre comunista”. A Arquidiocese de São Paulo, comandada por
Dom Odilo, inclusive emitiu documentos oficiais criticando a tentativa de criação
de uma CPI na Câmara de Vereadores que iria investigar Lancellotti.
“A preocupação na escolha do papa, com toda
certeza, não é a questão se ele é progressista ou conservador. Esta é uma
preocupação externa. O evangelho é tanto progressista quanto conservador.
Claramente a opção pelos pobres, a atenção à justiça social, o cuidado dos
migrantes e a preocupação com a paz do mundo não são posturas progressistas ou
conservadoras, são posturas do evangelho”, disse Dom Odilo em uma entrevista
recente.
“Ninguém espera um papa a favor da guerra.
Ninguém espera um papa que não cuide dos pobres. Ninguém espera um papa que não
diga aos padres para que sejam bem formados. Isso é a norma geral. Portanto, o
próximo papa será alguém que vai cuidar bem da vida da Igreja e da missão da
Igreja”, continuou.
Dom Orani Tempesta, cardeal do Rio de
Janeiro, é o que mais se aproxima do conservadorismo. Em 2018, recebeu uma
visita do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, que assinou um
compromisso “em defesa da família, das crianças em sala de aula e da liberdade
das religiões e contrário ao aborto e legalização das drogas”, como disse o
ex-presidente em um vídeo publicado ao lado do religioso. Dom Orani não fez
outras manifestações de cunho político desde então.
Bingemer diz que, apesar disso, o cardeal tem
histórico de atuação social e perfil conciliador. “Ele é aberto para a
secularidade, não faz declarações de grande compromisso social, mas vai
pessoalmente nas periferias, é presente nas comunidades. Ele é mais discreto”,
afirma. A teóloga também diz que nunca soube de interferências da parte dele em
relação a linhas mais abertas no setor de teologia da PUC do Rio, da qual é
grão-chanceler.
Na cidade natal de Dom Orani, São José do Rio
Pardo, no interior de São Paulo, uma religiosa chegou a prever sua ascensão:
“Seu filho vai ser bispo e depois, papa”, disse Lourdinha Fontão, cuja
beatificação está em processo.
Dom Paulo Cezar Costa, o mais jovem entre os
votantes, com 57 anos, é o arcebispo de Brasília. Foi diretor de teologia da
PUC do Rio, onde foi considerado uma pessoa com diálogo inter-religioso aberto.
“Ele também é discreto, não tem pronunciamentos abertos, mas é uma boa pessoa e
posso garantir que não é conservador”, diz Bingemer.
Por fim, Dom João Braz de Aviz, nomeado por
Bento XVI, é arcebispo emérito de Brasília. Ele já disse que, apesar de não ser
adepto da Teologia da Libertação, a considera como algo “grande para toda a
Igreja”, e que “a predileção pelos pobres é uma escolha de Deus”. Dom João é
lembrado pelo trabalho em favelas desde a década de 1980 e por ter participado
de movimentos contra a corrupção na década de 1990.
Em 1983, foi sequestrado por pessoas que
queriam roubar um caminhão de transporte de valores. Na fuga, os assaltantes
pediram que o religioso intercedesse por eles aos policiais. Os agentes, porém,
efetuaram dezenas de disparos, que acertaram Dom João. “Jesus, por que devo
morrer aos 36 anos?”, teria dito o sacerdote, que disse a um jornal italiano
ter ouvido uma resposta de Cristo: “Eu morri aos 33 anos, você já teve três
anos a mais do que eu”.
• Renovação
na hierarquia católica
O papa Francisco promoveu uma profunda
renovação na Igreja durante seus 12 anos de papado. Nomeou cerca de 80% dos
cardeais aptos a votar no próximo conclave, moldando o colégio eleitoral à sua
imagem. Isso não significa que a vitória de alguém com perfil de Francisco está
garantido, já que os conservadores detém grande influência nas tradições da
Igreja, mas ajuda a pavimentar o caminho.
Francisco também rompeu tradições ao nomear
cardeais em países que nunca haviam tido um clérigo nesta posição, como Laos,
Mali e Papua-Nova Guiné. “Ele renovou profundamente o colégio cardinalício, com
uma estratégia clara de futuro e a tendência de reduzir o peso da Europa e
ampliar o do Sul Global”, afirma Paulo Fernando Carneiro de Andrade.
Para Brenda Carranza, professora da Unicamp e
pesquisadora do Laboratório de Antropologia da Religião, o fato de Francisco
ter sido um moderado, e não progressista clássico, deve favorecer um embate
maior entre os cardeais de diferentes vertentes no conclave. Ela diz, porém,
que não há no cardinalato atual representantes do verdadeiro progressismo. “O
Papa Francisco era da Teologia do Povo, que atua por mediações culturais. No
conclave, minha hipótese é que teremos uma disputa entre conservadores, conservadores
moderados e ultraconservadores”, diz.
Fonte: Por Amanda Audi, da Agência Pública

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