PL
do licenciamento ambiental é “maior retrocesso em 40 anos”, diz ex-presidente
do Ibama
Sob o
argumento de que irá “desburocratizar” os processos de licenciamentos
ambientais no Brasil, dinamizando a economia e gerando empregos, está para ser
votado nesta quarta-feira (21), no plenário do Senado, o projeto da Lei Geral
do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021). Os relatórios foram aprovados nesta
terça nas comissões de meio ambiente e de agricultura da Casa e o texto já
seguiu, com regime de urgência, para o plenário.
Aprovado
em 2021 na Câmara dos Deputados, onde tramitou por mais de 17 anos, o projeto
foi apelidado de “PL da Devastação” por ambientalistas, e sua possível
transformação em lei é vista por diferentes organizações como o mais grave
ataque legislativo ao meio ambiente desde a redemocratização do Brasil. Caso
aprovado no Senado, ele voltará à Câmara para mais uma votação, seguindo então
para a sanção ou o veto da Presidência da República.
Em
entrevista à Agência Pública, Suely Araújo, que presidiu o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) entre 2016 e 2018 e
atualmente é coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima,
analisou alguns dos pontos que considera mais problemáticos no atual projeto.
Pela organização, ela assinou uma nota técnica que analisa o texto em
tramitação no Senado em comparação com o que foi aprovado na Câmara.
Na
avaliação de Araújo, além de abraçar os “principais retrocessos” do PL aprovado
na Câmara, os relatores do projeto no Senado, Tereza Cristina (PP-MS) e
Confúcio Moura (MDB-RO), alcançaram uma proeza: piorá-lo. “Com o mecanismo do
‘autolicenciamento’, a proposta simplesmente transforma quase todas as licenças
ambientais do país, cerca 90% delas, em um simples apertar de botão, em que sai
a licença impressa sem a entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem
análise de alternativas técnicas”, critica.
O
“autolicenciamento” é apenas um dos muitos pontos negativos do projeto
elencados por Araújo. As condicionantes ambientais – espécie de contrapartida
social e econômica que empreendimentos de grande impacto têm de oferecer às
regiões afetadas – seriam flexibilizadas, assim como a validade de estudos
ambientais, que poderiam ser desprezados pelo órgão expedidor das licenças
ambientais.
Direitos
indígenas e quilombolas, diz a especialista, também passam ao largo do projeto,
que restringe a participação de autoridades que respondem pela proteção desses
territórios na expedição das licenças, caso essas terras não estejam ainda
formalmente homologadas. “É um negacionismo generalizado de direitos
coletivos”, sintetiza Araújo.
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Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.
• O Observatório do Clima produziu uma
nota técnica sobre o PL do Licenciamento, em que afirma que os principais
retrocessos presentes no texto aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados estão
mantidos. Quais são eles?
Há, por
exemplo, a questão do autolicenciamento. Da forma como está, o projeto, que
prevê uma ampliação das possibilidades de licença por adesão e compromisso
(LAC), simplesmente transforma quase todas as licenças ambientais do país,
cerca de 90% dos processos, em um simples apertar de botão em que sai a licença
impressa, sem entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem análise de
alternativas técnicas locacionais.
O que o
empreendedor botar no papel, vai ficar. Esse é o pior artigo, que faz do PL o
caso mais grave de retrocesso em políticas ambientais nos últimos 40 anos. Além
disso, contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que
determina que a LAC dos estados, que já existe hoje, só pode ser aplicada em
empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor.
Só que
o texto do PL inclui [a possibilidade de que empreendimentos de] médio impacto
e médio potencial [também peçam a LAC]. Com isso, eles pegam praticamente 90%
dos processos de licenciamento, porque nem 10% dos processos de licenciamento
têm o EIA, o estudo ambiental completo [esses não podem ser feitos via LAC].
Então
isso implode com o licenciamento ambiental. Está nos dois textos [Câmara e
Senado], e o texto do Senado consegue piorar, porque fala que a única coisa que
o empreendedor entrega na LAC é um relatório de caracterização do
empreendimento.
Há
ainda uma emenda adicionada no Senado, um parágrafo que fala que a análise do
relatório do empreendimento será feita por amostragem.
• Ao priorizar o autolicenciamento e a
flexibilização dos estudos ambientais, das condicionantes ambientais e do
monitoramento, na prática, é possível afirmar que o licenciamento ambiental se
tornará uma mera formalidade?
Essa é
a questão. Eles veem o licenciamento como entrave, e entrave se tira da frente.
Então eles priorizaram o autolicenciamento, sem estudo ambiental prévio. É o
único tipo de modalidade de licenciamento que não entrega estudo, só entrega
uma descrição, com algumas condicionantes prontas. Isso significa que ninguém
vai analisar o local, nem alternativas técnicas, nem locacionais. O PL fere de
morte a avaliação de impactos ambientais, como é praticado no Brasil e no
mundo.
A
avaliação de impactos ambientais, que precisa de análises alternativas, eles
eliminam, porque na LAC o empreendedor entrega o que quer fazer. E pelo texto
do Senado, ninguém nem está obrigado a ler isso. Bota no computador alguma
inteligência artificial que seleciona as condicionantes e acabou.
• Outro ponto destacado na nota técnica é
de que o PL pode não só aumentar a poluição e o desmatamento, mas as
desigualdades sociais. Como?
Ao
tratar das condicionantes, o PL procura afastar todas aquelas que têm um perfil
de políticas públicas.
Hoje
existem condicionantes para mitigar impacto e para compensar. E uma das áreas
em que essas condicionantes são aplicadas é o que a gente chama de meio
socioeconômico. Por exemplo, se uma cidade, onde se instalou uma hidrelétrica,
multiplicou por cinco seu tamanho em pouquíssimos anos, o empreendedor, que é o
concessionário da hidrelétrica, tem que assegurar, por um tempo, a instalação
de escolas, de postos de saúde, porque a prefeitura não vai ter dinheiro para
isso. Estamos falando de cidades que multiplicaram várias vezes de tamanho em
poucos anos, mas que ainda nem estão recebendo royalties ou qualquer
compensação em razão da obra.
Mas
pelo projeto, a hidrelétrica não mais teria de se responsabilizar por
contrapartidas consideradas “sociais”. Parte-se do princípio de que tudo isso
tem de cair no colo do poder público. Mas é claro que naquilo que é decorrente
diretamente da obra, o empreendedor teria de ter responsabilidade. Assim como
por ajudar a fiscalizar um desmatamento que está aumentando demais por causa da
obra.
• A nota técnica aponta, ainda, pontos do
PL que seriam inconstitucionais. Se aprovadas, é possível que as novas regras
de licenciamento ambiental cheguem ao STF, sendo anuladas pela corte?
Não
tenho dúvida nenhuma, e provavelmente [será judicializado] por mais de um
autor, entre os legitimados para irem diretamente ao STF. Porque tem vários
pontos sobre os quais o Supremo já tomou uma decisão contrária [ao que o PL
propõe].
Um dos
exemplos é a LAC, que o Supremo decidiu que só pode ser usada em
empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor. O PL está
contrariando isso.
Tem
outro ponto, que é a parte das autoridades envolvidas no processo de
licenciamento. Isso é inconstitucional de pai e mãe. Pelo PL, só seriam
chamados para se manifestar os órgãos ligados à proteção dos direitos indígenas
e dos quilombolas se forem [afetados pelo empreendimento] terra indígena
homologada e território quilombola titulado.
Quer
dizer, um território pode não estar titulado por omissão do Estado, e a partir
dessa omissão estatal, o PL pretende tornar invisível perante o licenciamento
ambiental o direito indígena e quilombola. Acontece que tanto os direitos
indígenas quanto os direitos quilombolas estão expressamente defendidos na
Constituição.
• O PL estabelece que os pareceres de
órgãos técnicos de Estado (como Funai) não tenham caráter vinculante, ou seja,
poderiam ser desconsiderados pelos órgãos licenciadores. Como a senhora avalia
este ponto?
Trata-se
de uma desconsideração da importância dos direitos indígenas, dos direitos dos
quilombolas, da importância do patrimônio histórico do país, da importância da
saúde pública, porque tem processo em que o Ministério da Saúde se manifesta,
quando o projeto é em zonas endêmicas de malária, por exemplo.
Então,
é desconsideração de muita coisa. É um negacionismo generalizado de direitos
coletivos.
• Desde a promulgação da Constituição de
1988 tramitam no Congresso projetos de regulamentação nacional do licenciamento
ambiental. Por que é tão difícil chegar a um consenso sobre o tema no
legislativo?
O
primeiro projeto foi de 1988, do ex-deputado Fabio Feldman. Ele queria
regulamentar o EIA [Estudo de Impacto Ambiental], mas no curso desse processo,
o conteúdo foi ampliado para regulamentar, em geral, o licenciamento ambiental.
Esse processo tramitou por muitos anos e acabou sendo arquivado. Aí, em 2004,
começou esse processo em que nós estamos hoje.
Ele
começa por um parlamentar ambientalista, o ex-deputado Luciano Zica. Ele tem
uma trajetória na área de qualidade ambiental de cidades e era da bancada
ambientalista. Com o passar do tempo, esse texto, principalmente por influência
da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Indústria, que atuam juntas
nesse processo, foi se tornando a lei da não licença e a lei do
autolicenciamento.
Isso
realmente significa um retrocesso histórico. Eu não conheço um texto com tantos
problemas para a legislação ambiental como esse. A Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente, que institucionalizou o licenciamento em nível nacional, é de
1981.
Desde
então, não vai haver nada com retrocesso tão forte. O licenciamento pode ser
racionalizado, ninguém nega isso. Agora, o que eles estão fazendo é implodir
com o licenciamento.
É muito
assustador, é uma ferramenta que é importante em todos os países que têm
política ambiental, é a principal ferramenta de prevenção de danos ambientais e
socioambientais que existe no país. Um projeto como esse, eu acho que era
melhor jogar fora e ficar com a confusão normativa que temos hoje, porque
ninguém vai ganhar com esse texto.
E não
vai trazer segurança jurídica, porque os próprios processos de licenciamento
vão ser judicializados, mesmo que o conteúdo esteja em lei.
• O texto em votação no Senado põe em
risco a segurança hídrica nacional?
Sim,
porque desvincula a outorga dos direitos de recursos hídricos e a certidão de
uso do solo. A outorga é dada pelos órgãos de gerenciamento de recursos
hídricos, e a certidão de uso do solo, pelos municípios. O projeto prevê que o empreendedor, na licença, não precisa
provar que tem outorga, nem que tem certidão municipal de uso do solo.
O que
vai acontecer? O licenciador vai começar a dar licença, por exemplo, para uma
termelétrica que não tem água [garantida]. Se não mostrar no processo que tem
outorga de direitos de uso de recursos hídricos, o licenciador pode perder todo
o trabalho dele, porque ele vai dar licença para uma termelétrica que não tem
como captar água.
Então,
essa desvinculação não ajuda em nada. Ela vai atrapalhar o empreendedor em vez
de ajudar. Parece que está eliminando a burocracia, mas está atrapalhando,
porque as coisas são conectadas. Eu não posso dar licença para um
empreendimento, uma indústria em área urbana por exemplo, em uma área que for
estritamente residencial. Mas se eu não tiver a certidão municipal de uso do
solo, isso pode acontecer.
• Se aprovado, o PL pode prejudicar
acordos comerciais brasileiros com o exterior, ao contrariar compromissos
internacionais de proteção ao meio ambiente assumidos pelo Brasil?
Olha,
eu acho que o impacto será até mais amplo, porque os compradores vão saber que
os nossos produtos estão sendo gerados sem controle ambiental. Isso vai gerar
desconfiança, vai tirar a credibilidade dos produtos brasileiros.
• Você enxerga esforços do governo para
barrar a aprovação do PL ou para amenizar seu atual teor?
A
ministra Marina Silva [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] tem se manifestado
com muita preocupação sobre as consequências do projeto. Há uma posição da
liderança do governo que aponta problemas no projeto. Mas, na prática, essas
manifestações ainda não têm tido a repercussão necessária. O governo não está
conseguindo colocar obstáculos na votação desse texto. A impressão que dá é que
vai passar de tratorado.
• É possível acelerar os processos de
licenciamento ambiental sem desbaratar a legislação que protege o meio
ambiente?
Processos
mais ágeis serão conseguidos com estudos ambientais melhores. Muitas vezes, no
processo, o que o gestor agroambiental faz é devolver o estudo várias vezes
porque ele faz uma demanda e o empreendedor nunca entrega o material completo.
Isso
está acontecendo, por exemplo, no processo da perfuração do Bloco 59 na Foz do
Amazonas. A Petrobras já teve N oportunidades de completar o estudo. O problema
da incapacidade do empreendedor de entregar estudos completos ou de entregar
estudos bons, robustos, é notório.
Muitos
órgãos ambientais sofrem com esse problema. E vários tipos de empreendedores,
tanto públicos quanto privados. Esse é um problema grave no licenciamento.
Estudos insuficientes, malfeitos, copiados.
Outra
coisa: os órgãos ambientais têm que ter equipe. Não dá para fazer milagre. Você
trabalha com equipes que teriam que ser multiplicadas duas vezes, três vezes,
em termos de número de servidores.
Isso no
Ibama, que ainda tem servidor. Então, se houvesse estudos melhores e equipes
completas, o licenciamento sairia de forma mais ágil.
• Por que, mesmo existindo o licenciamento
hoje, a gente convive com tantos problemas ambientais?
O
licenciamento como é hoje tem problemas, tem dificuldades, mas nós mudamos o
país com o licenciamento ambiental. Antes de ser regra nacional, a gente
convivia com situações como a de Cubatão [cidade na Baixada Santista], com
aquele polo industrial tão grande.
Cubatão
era uma área absolutamente contaminada, com a população sofrendo problemas de
saúde gravíssimos. Era chamado de Vale da Morte. Entre outros problemas que
ocorriam, as crianças nasciam muitas vezes anencéfalas. É isso que o
licenciamento ambiental mudou. O licenciamento mudou a realidade do país, com
todas as suas dificuldades, com todos os seus problemas.
O duro
é ver que em 2025, a gente pode estar voltando à situação como a de Cubatão.
Porque isso ocorrerá se esse projeto for aprovado.
Fonte:
Por Leandro Aguiar, da Agencia Pública

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