Para
reaprender a caminhar nas cidades
A
cidade começa no que se ouve e se vê — mas também no que se reconhece como
familiar, mesmo no desconhecido. É no gesto de cruzar experiências (sensoriais
e narradas) que se inicia qualquer possibilidade de convivência. Talvez esse
seja o princípio mínimo de uma política urbana viva: fazer da presença uma
forma de escuta e da circulação uma forma de vínculo. Contra o enclausuramento
dos corpos e das palavras, é preciso afirmar uma ideia de cidade como espaço de
reconexão — menos como promessa de ordem, mais como campo de reinvenção
cotidiana. Uma revolução discreta, feita de gestos simples, percursos
imprevisíveis e vínculos reconstruídos na escala do comum.
Jane
Jacobs, jornalista, pensadora urbana autodidata, ativista comunitária e crítica
dos planejamentos modernistas, dizia que os olhos da rua eram fundamentais para
a vitalidade urbana. Não apenas como sistema de vigilância ou garantia de
segurança, como tantos urbanistas passaram a interpretar, mas como
possibilidade de presença mútua, reconhecimento, convivência. Os olhos que se
cruzam na calçada dizem: estamos aqui, juntos, mesmo sem palavra. Talvez seja
por aí que devamos começar a pensar a cidade. Pelo que ainda resta de
possibilidade de troca, de vínculo, de enunciação cotidiana.
Gosto
de falar da cidade. Da cidade que conheço andando, entrando em ônibus,
atravessando ruas, errando caminho. São Bernardo, São Paulo, bairros distantes
uns dos outros, centros que se evitam, zonas que não se tocam. Gosto de
entender a cidade na prática, rua a rua. Descrever tudo. É só uma tentativa de
pensar por que tanta gente passou a viver sem ver, sem conversar, sem se
deslocar de verdade. Há um silêncio estranho no cotidiano urbano. Muita
presença, pouca troca. A cidade perdeu alguma coisa — e talvez tenha sido o que
dava sentido a estar nela.
Essa
percepção se intensifica no cotidiano. Nas ruas, no transporte, nas praças, há
um jeito comum de estar ausente. O andar apressado, os olhos que desviam, o
corpo que não quer contato. Como se as pessoas caminhassem não para ir, mas
para escapar. Fones nos ouvidos, olhos grudados na tela, passos rápidos, como
se não houvesse chão sob os pés. Tudo parece calculado para evitar o encontro.
Os gestos são de proteção e, se possível, de ausência. Mas isso cobra caro:
empobrece a cidade, silencia o cotidiano, transforma presença em algo fugidio.
Não é
só uma questão de pressa ou tecnologia. Dizem que a gente está saturado de
informação e temor. Pode ser. Mas o que vejo na rua é outro tipo de saturação:
um cansaço que vem de não viver nada que se sustente como experiência. Tudo
passa rápido, nada se elabora. As histórias não circulam. Os aprendizados não
sedimentam. Como se a cidade já não oferecesse mais o que ensinar. E talvez não
seja só ela — talvez sejamos nós que já não sabemos como aprender com o que
está diante dos olhos.
Essa
dificuldade em aprender parece estar ligada à dificuldade em narrar. Às vezes
penso que esse silêncio que observo nas cidades tem algo de mais profundo. Não
é só cansaço, distração e medo. É como se a experiência tivesse se tornado
difícil de ser contada. Um tipo de mutismo que não vem da falta de assunto, mas
da falta de escuta e de elaboração. Walter Benjamin, em O Narrador, escreveu
que os combatentes da Primeira Guerra voltavam mudos do front: sua experiência
era intransmissível, sem forma comunicável. A guerra, disse ele, empobreceu
radicalmente o valor da experiência. Penso se não estamos diante de algo
semelhante: uma cidade onde ninguém passou por guerra, mas onde quase ninguém
consegue mais dizer o que vive. As vivências não encontram mais forma, nem
audiência.
Talvez
tudo comece pelo corpo. Se narrar é difícil, viver também está mais rarefeito.
A cidade foi se tornando inabitável para o encontro. O corpo urbano virou um
corpo blindado. Ele se desloca, mas não se move. Não se atrita, não encontra,
não se deixa marcar. Ainda nos anos 1970, Richard Sennett, em O Declínio do
Homem Público, mostrou como a cidade deixou de ser um espaço de confronto entre
diferenças e passou a ser um somatório de vidas paralelas. Para ele, o espaço
público perdeu sua função formativa porque o corpo perdeu a disposição para a
fricção. A falta de envolvimento não é só emocional, é física: um corpo que não
se depara com o outro não constrói sentido. O que temos hoje é o contrário da
cidade viva: do carro fechado e ônibus lotados à entrega por aplicativo, tudo é
feito para que se passe por ela sem precisar habitá-la. E, aos poucos, o corpo
vai se tornando inútil para conhecer o mundo.
A
experiência do espaço urbano depende de um certo envolvimento sensível. Georg
Simmel, em seu ensaio As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903), observou
como a modernidade urbana exigia do sujeito um tipo de endurecimento
psicológico. Para lidar com o excesso de estímulos e a multiplicidade de
interações, o indivíduo desenvolvia a atitude blasé: uma indiferença protetora.
Simmel não romantizava o passado, mas já via, ali no início do século XX, que a
sensibilidade estava em risco. Que o excesso não gera necessariamente riqueza —
pode gerar apatia. E que a cidade, se não cuidada, vira campo de ruído, não de
sentido.
Falo
disso também por experiência. Na adolescência, eu andava muito. Passava horas
nos sebos, nas lojas de discos, nas bancas de rua. Às vezes saía com um livro,
às vezes com um vinil, às vezes com as mãos vazias. Mas sempre voltava com
alguma coisa que não cabia na sacola. Uma conversa, uma descoberta, uma rua que
eu não conhecia. O centro de São Paulo era um mundo. As ruas escondidas de São
Bernardo, Santo André, e até do meu bairro também. Eu não procurava nada
específico. Só andava. E aprendia mais assim do que em muita aula. Não
supervalorizo essa experiência, nem a transformo em modelo. Havia dificuldades,
havia exclusões, havia medos — apenas eram outros, mais localizados, talvez
menos intensos em sua escala. Era outro momento, outro ritmo de cidade, outra
relação com o tempo e com o espaço. Mas foi real. E deixou marcas.
Caminhar,
errar, experimentar o espaço: talvez aí ainda reste uma fresta. O gesto de
andar pode ser um modo de se reapropriar da cidade. Michel de Certeau, em A
Invenção do Cotidiano, escreveu que os passos na cidade são também uma forma de
fala. Ele sugere que caminhar não é apenas deslocar-se, é escrever no chão da
cidade uma narrativa silenciosa, feita de desvios, atalhos, astúcias. Caminhar
é inventar percursos onde o planejamento urbano só vê funções e trânsito. Não
se trata de romantizar a deriva, mas de reconhecer que há uma inteligência do
corpo que sabe escapar, improvisar, criar sentido mesmo no espaço mais
controlado. É esse tipo de gesto que salva um dia, uma rua, uma memória.
Esse
tipo de aprendizado não enfeitou currículo, mas formou o que penso. Andar sem
destino, se perder por ruas sem nome, conversar com gente que não tem cargo nem
crachá. Tudo isso era parte do que me ensinava a viver em cidade. Não tinha
método, mas tinha valor. O tempo urbano foi tomado por pressa, eficiência,
produtividade e ausência. Se não serve pra render, não serve pra nada. A cidade
passou a ser vista como obstáculo — e não como território de formação.
Tenho
pensado que, talvez, estejamos perdendo algo essencial: a capacidade de contar
o que vivemos. Não como grandes relatos ou teorias, mas como fragmentos que se
tornam compartilháveis. Walter Benjamin dizia que narrar é uma arte que vem de
longe, feita de pausas, escutas e vínculos. Não é algo automático — é uma forma
de cuidado. Ele acreditava que contar histórias era uma forma de conservar a
experiência no tempo, de proteger o vivido do esquecimento. E isso exige uma
cidade disposta a escutar e pessoas dispostas a se demorar. Mas hoje, quase
tudo se esvai antes de virar palavra. A cidade ainda oferece encontros, sim.
Mas poucos se tornam memória. E, sem memória partilhada, a vida urbana vai se
tornando muda.
A
cidade foi ficando assim aos poucos. O excesso de estímulo, o barulho, a
pressa, a violência — tudo isso foi levando as pessoas a se protegerem.
Primeiro como defesa, depois como hábito, regra e ponto de fuga. A indiferença
virou uma forma de viver. O corpo aprendeu a não se envolver, a não olhar, a
evitar. E com isso foi perdendo a capacidade de aprender também. Porque quem
não se mistura, não conhece. E quem não conhece, não narra. É como se a cidade
tivesse deixado de ser espaço de formação e virado apenas cenário de
deslocamento.
Não
acho que a cidade vá voltar a ser cadente. E nem sei se deve. Mas acho que
ainda dá para reaprender a andar, a olhar, a escutar. Não como um programa de
salvação urbana, mas como um gesto simples de recusa. Recusar o automatismo, o
medo, a indiferença. Recusar a ideia de que não há mais o que viver de verdade
fora dos espaços protegidos. Talvez narrar seja isso: não salvar ninguém, mas
lembrar que ainda há coisa viva na cidade para ser contada. E que vale a pena
prestar atenção. É preciso que ganhemos a cidade, mesmo que ela resista em nos
receber.
Fonte:
Por Ricardo Queiroz Pinheiro, em Outras Palavras

Nenhum comentário:
Postar um comentário