quarta-feira, 21 de maio de 2025

Paola Jochimsen: Brasil, país dos medalhões - opiniões fortes, ideias fracas

O brasileiro médio do século XXI parece ter uma especialidade: falar com convicção sobre o que não entende. Opina sobre tudo com a confiança de um prêmio Nobel — mesmo quando mal leu a manchete. Essa figura tão familiar, que desfila certezas ocas e frases feitas, já foi retratada com precisão cirúrgica por Machado de Assis… em 1881.

Naquele ano, Machado publicou na Gazeta de Notícias o conto Teoria do Medalhão. Nele, um pai chama seu filho, Janjão, na noite em que completa 21 anos, e lhe dá conselhos sobre como se tornar alguém importante na sociedade. A conversa começa séria, mas logo mergulha num absurdo bem-vestido de sabedoria. “Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente.”

Na teoria paterna, pensar é perigoso. Ter ideias, arriscado. E o sucesso social está em parecer profundo, basta falar exatamente o que querem ouvir. O tal Janjão é um arquétipo eterno e sua transformação no “medalhão perfeito” é assustadoramente atual. Na construção do medalhão, não bastava apenas parecer sábio; era preciso também ter os acessórios certos: um diploma, algum patrimônio e a retórica ensaiada da respeitabilidade. Na época, o pai dizia que Janjão já possuía tudo o que precisava:

“Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.”.

As “apólices” eram títulos da dívida pública emitidos pelo Império — rendiam juros. Ou seja, garantiam uma vida confortável sem precisar trabalhar. O diploma completava o pacote: status e aparência de saber. E só. Hoje, o jovem brasileiro também tem “apólices” — mas de outro tipo: dívidas. Em vez de receber juros do governo, ele começa a vida adulta devendo ao FIES, aos bancos, às fintechs, ao cartão de crédito e ao aluguel. O diploma, longe de ser passaporte para a elite, virou um papel parcelado em 48 vezes, mais simbólico que eficaz. Mas o espírito do medalhão sobrevive: o importante é parecer. Parecer que sabe, parecer que leu, parecer que entende. A pose continua valendo mais do que o conteúdo.

O pai de Janjão, com seu tom professoral, valoriza a “inópia mental”. Uma expressão que deveria ser hashtag nas redes sociais.

“Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício.”

A inópia mental não é a ausência inocente de saber, é a ausência estratégica, a ignorância instrumentalizada como método de sobrevivência social. Um cérebro vazio, mas um discurso cheio de palavras alinhadas. Não é preciso saber, basta repetir o que ouviu numa esquina, ou hoje, no feed. O importante é dizer com firmeza e cara de quem foi à fonte (mesmo que a fonte seja um TikTok com trilha de saxofone e dancinha reflexiva).

A figura do medalhão migrou das rodas de chá do século XIX para os grupos de WhatsApp e podcasts. Hoje ele tem microfone, fone gamer, perfil verificado e pauta para cada assunto: guerra no Oriente Médio, vacina contra Covid-19, mudança climática, juros do FED, Big Brother Brasil, o show da Lady Gaga no Brasil, o conclave para a escolha do novo papa, a taxação das “brusinhas” da Shein. O leque de possibilidades é enorme — basta saber o tema do momento. São os especialistas de ocasião, que pulam de tema em tema com a confiança de quem já deu aula em Harvard ou, ao menos, assistiu um Reels com alguém que disse que deu.

Instituições como a mídia, a política e até a escola contribuíram para a ascensão do medalhão. A educação que estimula o decoreba em vez do pensamento crítico, o jornalismo que caça a polêmica em vez da profundidade, os debates políticos de TV cronometrados e cheios de frases de efeito: tudo isso fabrica medalhões em série. Gente treinada para vencer pela aparência, não pelo neurônio.

<><> O medalhão digital: entre fake news e discursos vazios

O pai de Janjão orienta: “As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se.” Ou seja: cuidado! Pensar pode ser um risco. E ele alerta: “Urge aparelhar fortemente o espírito”, isto é, treinar-se para jamais deixar escapar uma ideia própria. No Brasil de 2025, conseguimos esse feito com louvor. Criamos uma geração que, com algum treino de selfie e frases prontas, se torna autoridade instantânea. A ignorância de banho tomado, perfumada e pronta para viralizar.

Nesse novo cenário, as fake news são o combustível do medalhão moderno. Não apenas desinformado, mas agora desinformador ativo. Ele não apenas acredita — ele compartilha. Não apenas compartilha — ele comenta, afirma, defende, briga, milita em cima da mentira. E tudo com ar de grandeza. É o medalhão digital, falando com autoridade sobre uma notícia falsa que começa com: “Isso aí ninguém te mostra, mas um amigo meu, que entende, confirmou…”

Na política, o medalhão também brilha. O pai ensina: “Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do scibboleth bíblico.” A recomendação continua atual. O importante não é a coerência, mas a presença. E se der para discursar, melhor ainda, desde que o conteúdo seja vago, rebuscado e metafísico. Não é preciso governar bem. Basta estar lá, de terno escuro, ar sério e discurso cheio de adjetivo.

Mas o pai avisa: há limites. “Somente não deves empregar a ironia […] Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca.” A ironia, esse recurso dos céticos, é perigosa, pois convida à dúvida. Melhor rir da piada fácil, da gafe, do meme e manter as estruturas firmes. Rir com inteligência pode ser revolucionário demais.

E aí está o Brasil: um desfile de medalhões sorridentes, bem-postos, vazios, disfarçados de sábios. Influencers da ignorância, deputados da retórica vazia, especialistas da verdade absoluta baseada em vídeos de três minutos. Uma pátria que idolatra quem parece saber, mas desconfia de quem realmente estuda, reflete, duvida.

Machado escreveu Teoria do Medalhão como sátira, mas também como espelho. E talvez a pergunta mais desconfortável seja: quem nunca foi um medalhão, que poste o primeiro comentário? Quantas vezes preferimos a pose à dúvida, a frase de efeito à escuta, o comentário rápido à leitura profunda? Quantas vezes fomos treinados para fingir saber, quando deveríamos ter aprendido a perguntar?

Pensar, no Brasil, é quase um ato subversivo. E talvez por isso mesmo seja tão necessário.

¨      A sopa, a onça e o presidente Lula. Por Sara Goes

Uma onça parda foi encontrada morta na beira de uma estrada no interior do Ceará. Moradores, sem hesitar, recolheram partes do corpo do animal e levaram para casa. Com os restos, fizeram sopa. Sim, sopa de onça. A cena, ao mesmo tempo grotesca e reveladora, escancara um modo de sobrevivência que beira a barbárie, mas também simboliza algo maior, algo que atravessa o sertão e chega direto à Praça dos Três Poderes.

No Brasil de agora, não é só a fome literal que assombra. É a fome simbólica. A fome política. Uma espécie de canibalismo discursivo, onde todos os grupos parecem disputar pedaços do mesmo corpo. Lula se tornou essa carcaça exposta. Presidente em exercício, mas também entidade devorada. Alimenta a extrema direita, que precisa dele como inimigo onipotente. Alimenta o centrão, que mastiga sua governabilidade. Alimenta a esquerda acadêmica, que exige dele pureza doutrinária. Alimenta a esquerda mística, que quer ver lágrimas e profecias. Alimenta até setores do próprio campo progressista, que não o perdoam por ser humano em vez de mito.

Desde os anos 80, a esquerda tenta produzir um herdeiro político para Lula. Já tentaram forjar um sucessor que o superasse no carisma, na experiência ou na retórica. Nenhum resistiu. Uns afundaram no tecnocratismo. Outros se perderam na vaidade. Nenhum sobreviveu à comparação com a figura que eles próprios ajudaram a construir como insuperável. A mesma esquerda que o chama de pai fundacional sonha com sua aposentadoria. Mas sonha com medo. Porque se Lula ainda está vivo, é porque ninguém foi capaz de ocupar seu lugar.

E talvez seja essa a tragédia. Lula virou a sereia estendida na areia, descrita em A Novidade, dos Paralamas. Metade milagre, metade banquete. Objeto de desejo e de fome. Beleza suspensa entre o sagrado e o utilitário. Os que um dia o exaltaram por suas conquistas agora duelam para decidir se ainda merece crédito. Uns querem seus beijos de deusa. Outros só querem o rabo para ceia. O mesmo corpo que antes inspirava canções agora é estraçalhado por quem precisa sobreviver à própria frustração.

No meio dos esmerados em desossá-lo, há ainda os que preferem conservá-lo. Desde que empalhado. São os que o reduzem a uma fábula edificante, sempre apelando ao passado de retirante nordestino, como se sua intelectualidade fosse um subproduto instintivo, e não uma elaboração crítica e política sofisticada. Transformam sua trajetória em um enredo biográfico sem conflito, domesticado, ornamental. O mesmo expediente que meu colega Mário Vitor Santos observou na construção simbólica de Pepe Mujica, convertido em ídolo velhinho, conselheiro fofo, desprovido de tensão histórica. Lula, nesse enquadramento, não precisa mais pensar nem governar. Basta existir como lembrança.

Enquanto isso, o presente arde. Lula viajou à China e selou acordos comerciais históricos. Tratou de soberania, tecnologia, multipolaridade. Falou como um líder do Sul Global. Mas ninguém prestou atenção. A manchete foi outra. Uma fake news grosseira sobre Janja virou pauta central. Espalhou-se a história de que ela teria causado desconforto com Xi Jinping ao mencionar o TikTok. Nenhum vídeo, nenhum áudio, nenhum indício. Mas bastou. Em poucas horas, a suposta gafe da primeira-dama eclipsou os tratados firmados entre duas potências. Era como se a sereia abrisse a boca para falar e todos se concentrassem apenas no movimento de sua cauda.

É o projeto deliberado da velha imprensa de impedir que o país enxergue o próprio avanço. Globo, Folha e Estadão não erram por distração. Sabem exatamente o que fazem. Como apontado em editorial recente do Brasil 247, essas casas editoriais se converteram nos maiores entraves ao desenvolvimento nacional. Não porque neguem os fatos, mas porque os omitem com método. Sabotam o debate com silêncio. Esvaziam com editoriais. E quando não podem ignorar, preferem ridicularizar.

Foi o poeta que sonhava em cantar o milagre risonho. Mas o esfomeado venceu. Despedaçou a imagem, escarneceu do gesto, descartou o conteúdo.

No meio desse ritual antropofágico, Lula segue. Carrega nas costas um país que finge não depender mais dele, mas que não sabe andar sem sua bússola. É cobrado como um jovem em início de carreira e esvaziado como um velho que já não serve. O que ele faz nunca basta. O que ele não faz vira acusação. A novidade era ele. Ainda é. E justamente por isso, precisa ser sacrificado de novo e de novo. Em praça pública. Em mesa de jantar. Em feed de rede social.

¨      Compadres e comadres estão em polvorosa: Janja não para de falar> Por Moisés Mendes

Mulheres e homens atormentados, sincera ou cinicamente, pelo atrevimento das perguntas feitas por Janja em Pequim devem buscar o conforto das convenções e das normalidades. Vejam onde procurar bons exemplos.

A revista Exame tem apresentado com insistência modelos de mulheres gestoras e/ou empreendedoras que avançam, passam a mandar e até ficam ricas em cenários masculinos. É uma tendência antiga, mas nunca como agora.

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Ganha destaque a prosperidade feminina no ambiente de machos centralizadores e mandões. São mulheres que cuidam do marido, da casa, dos filhos e do empreendimento a que se dedicam, como executivas ou como donas dos negócios.

O que elas fazem é, quase sempre, a reprodução dos métodos dos homens, mas com toques e jeitinho femininos. É bom, é do que o mundo precisa em todas as áreas, e não só a economia. Mas não é transgressor.

Mulheres empreendedoras trabalham para ganhar dinheiro, o que é legítimo. Mas dificilmente afrontam convenções no que essas têm de mais inflexível. Não vislumbram nada à margem do empreendedorismo e raramente questionam estruturas de poder.

Em outros campos, inclusive o da política, há as que ocupam espaços para reproduzir os modos da direita, com tradição, família, propriedade, Deus acima de tudo e, se possível, com bala e boiada.

E há as mulheres que incomodam, transgridem e provocam desconforto, geralmente à esquerda. Janja passou a ser atacada por homens e mulheres por ter saído, em um meio cheio de regras e limites, do modelo do ativismo consentido que ganha aplausos dentro de famílias, empresas, instituições, governos e partidos.

O novo figurino de Janja é não ter figurino. E isso incomoda um mundo que faz apenas concessões, inclusive na imprensa, desde os compadres e as comadres da GloboNews, que se aliaram aos homens da corporação, à velha direita e ao novo fascismo porque são recatadas. Janja precisa ser contida.

Mas o que ela manda dizer, depois do cerco do machismo, que não teria feito o mesmo com um homem – se um macho tivesse levantado a questão do TikTok em Pequim –, é que não vai ficar quieta.

A mesma Exame que exalta as magias da prosperidade feminina noticiou a reação de Janja e deu destaque nessa segunda-feira, em sua versão online, ao recado dela de que não vai se calar.

Mas não esperem que a Exame ofereça a Janja o espaço, em manchete de capa, que concede a empreendedoras descobridoras de novas formas de fazer e vender comida saudável para bebês, de levar grifes do Texas para o agro pop do centro-oeste e de oferecer diplomas que legitimam, por exigências do mercado, a atividade de quem já sabe o que faz.

Capas de revistas são para quase transgressões aceitáveis, bem calculadas, de acordo com os protocolos feitos pelos homens. Janja é de outro time e foi longe demais ao fazer perguntas a Xi Jinping. Era preciso atacá-la, para atacar Lula.

Mas a socióloga não vai desistir, pelo que disse em discurso na abertura da Semana Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Acharam que Lula iria mandar a primeira-dama calar a boca, e Janja foi ao evento para avisar:

“Não há protocolo que me faça calar se eu tiver uma oportunidade de falar sobre isso com qualquer pessoa que seja, do maior grau ao menor grau, do mais alto nível a qualquer cidadão comum”.

Quem da mídia das corporações dará capa para que Janja fale da pauta de Pequim? Quais são as publicações, editadas por homens ou mulheres, que não temem o que Janja pensa, não sobre como ganhar dinheiro com novas comidinhas para crianças, mas sobre a exploração financeira e sexual de crianças pelos adultos nas redes sociais? Não esperem essa capa.

 

Fonte: Brasil 247

 

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