Luz,
temperatura e tempo de armazenamento da alface interferem na contaminação por
Salmonella
Salmonella
enterica sorovar Typhimurium é uma bactéria que infecta humanos através do
consumo de alimentos ou água contaminados, atingindo principalmente crianças,
idosos e imunodeprimidos. Ao alcançar o epitélio intestinal, o patógeno pode
desencadear diversas gastroenterites — a mais grave delas sendo a febre
tifoide, cujos sintomas incluem septicemia (infecção generalizada), febre alta,
diarreia e vômitos.
Apesar
das vastas informações sobre a contaminação de alimentos por salmonelas no
Brasil, há uma lacuna no conhecimento dos riscos no ramo da pós-colheita de
vegetais. Este foi o ponto de partida para a pesquisa de doutorado no programa
de pós-graduação em Sistemas Integrados em Alimentos (SIA) de Daniele Faria,
integrante do Food Research Center (FoRC), centro de pesquisa avançada da
Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) e agora um Cepix da USP. A alface foi
escolhida para o experimento pois é o vegetal cru mais consumido no País. “A
contaminação pode vir de qualquer ponto da cadeia de produção, do campo até o
consumo”, alerta Bernadette D. G. M. Franco, orientadora do trabalho e
coordenadora do FoRC.
A
pós-colheita refere-se ao conjunto de técnicas e tecnologias aplicadas após a
separação de uma cultura vegetal do seu ambiente de origem. Segundo dados da
Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), para
garantir a durabilidade e a qualidade do produto agrícola, três aspectos devem
ser considerados: desacelerar a respiração do vegetal, diminuir a perda de água
por transpiração e impedir que microrganismos ataquem.
Os
processos de adesão — colonização da
superfície — e internalização — entrada e proliferação dentro das células do
hospedeiro — da bactéria foram estudados considerando três fatores abióticos:
luminosidade, temperatura e tempo de armazenamento. As variáveis de luz e
temperatura foram analisadas ao longo de todo o período de armazenamento do
vegetal contaminado, e não apenas pré-condicionadas, como descrito previamente
em artigos internacionais. A pesquisadora notou que, quanto maior o tempo,
maior a fixação do microrganismo.
Em
relação à temperatura, testes foram realizados a 4°C, 12°C e 25°C. Daniele
Faria aponta que a adesão ocorreu em todas as condições, mas foi maior a 25°C:
“Salmonella é uma bactéria mesófila”, frisa, o que significa que seu
crescimento ideal ocorre entre 20 e 45ºC. A temperatura mais alta também
enfraquece o mecanismo de defesa do vegetal e provoca o aumento da transpiração das folhas, facilitando a
fixação e entrada do patógeno.
Salmonelas
penetram nas folhas através de suas estruturas naturais, como os estômatos, que
se abrem em condições de luz para a realização da fotossíntese e se fecham no
escuro. “O estômato funciona como uma válvula; quando ele abre, abre uma porta
para a luz e para tudo mais que estiver por lá, inclusive para patógenos”,
realça a professora Bernadette Franco. “Queríamos ver se o estômato iria abrir
e se a bactéria iria internalizar ao longo do armazenamento.”
Nos
resultados, houve uma surpresa: o armazenamento do vegetal no escuro favoreceu
a adesão da bactéria. “Salmonella parece conseguir contornar o sistema de
defesa da planta”, ressalta Daniele Faria. Sua principal hipótese sugere que o
patógeno possui mecanismos capazes de impedir o fechamento do estômato,
aproveitando-se desse processo mesmo na ausência de luz.
Ao
invés de basear-se somente na contagem convencional de bactérias empregando
meios de cultura adequados, a pesquisa utilizou a microscopia eletrônica de
varredura (MEV). “A MEV realiza uma análise detalhada, capturando imagens
sequenciais que revelam o comportamento e as transformações sofridas pela
bactéria”, explica Daniele Faria. “O feixe de elétrons que incide sobre a
superfície gera um sinal que o microscópio de varredura consegue visualizar”,
acrescenta Bernadette Franco. O uso da MEV na área de alimentos é recente no
Brasil, e nunca havia sido utilizado para visualizar a adesão e penetração de
salmonelas em folhas de vegetais usados para alimentação.
• Biofilme: estratégia bacteriana
Um
mecanismo importante do patógeno para sobreviver e proliferar em condições
adversas é a sua capacidade de formar biofilmes. Os biofilmes bacterianos
tornaram-se uma questão-chave na pesquisa, pois são altamente resistentes a
vários estresses, incluindo antimicrobianos usados como desinfetantes na
indústria alimentícia.
As
bactérias de interesse em alimentos possuem um ciclo de vida extremamente
curto, em torno de 30 minutos, o que as leva a desenvolver mecanismos de
proteção no próprio ambiente em que se encontram.”, explica Daniele Faria. “Se
o ambiente se torna hostil, elas se agrupam em comunidades e criam estruturas
moleculares complexas.” A cientista pontua que esse processo pode ocorrer nos
tanques, nas indústrias, ou em qualquer local que tenha resíduos alimentícios —
e eliminá-los é uma tarefa muito difícil. “O trabalho mostrou que o patógeno
internaliza dentro do estômato, que funciona como um esconderijo”, complementa
Bernadette Franco.
• Práticas de manuseio
Uma
parceria crucial para o desenvolvimento deste artigo foi Daniele Maffei,
docente da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Um
estudo prévio da professora apontou uma associação entre o aumento do comércio
de vegetais minimamente processados prontos para o consumo (VPC) e a ocorrência
de surtos de doenças transmitidas por alimentos (DTAs).
Durante
o processamento industrial dos VPCs, a desinfecção é a principal etapa de
inativação de microrganismos. Porém, após a internalização da S. Typhimurium,
processos de higienização tornam-se ineficientes, pois ela já foi internalizada
nos sistemas radiculares da planta. Além disso, Daniele Maffei comprovou que,
muitas vezes, a lavagem mal feita pode tornar os vegetais suscetíveis à
contaminação cruzada.
Bernadette
Franco afirma que a regulamentação e fiscalização do manuseio de vegetais no
Brasil deixa a desejar, tanto no campo quanto na indústria. No campo, o esterco
utilizado como fertilizante, os animais, o solo de cultivo, a água de irrigação
e os equipamentos de plantio são potenciais fontes de salmonelas. Na
pós-colheita, descuidos durante a manipulação, transporte, armazenamento,
embalagem e preparo dos vegetais podem propiciar a contaminação.
“Sou
membro da Comissão de Alimentos e Bebidas do Conselho Regional de Química
(CRQ-IV Região) e ministro diversos treinamentos sobre boas práticas de
fabricação para equipes da área de Segurança de alimentos. Se na indústria já
há lacunas na aplicação dessas práticas, imagine no campo”, conta Daniele
Faria.
Ela
ressalta que, nos Estados Unidos, a questão da pós-colheita já está sendo
discutida, especialmente após uma série de surtos de DTAs associados ao consumo
de vegetais crus. “No Brasil, não se observam tantos casos, possivelmente
porque nosso órgão responsável não tem capacidade para detectar todas as
ocorrências”, diz. Daniele Faria relata que o projeto da professora Maffei
englobou um contato direto com os produtores nas fazendas, avaliando a água e
os materiais utilizados na lavagem das folhas.
O
armazenamento refrigerado de vegetais no varejo também é uma questão crítica no
Brasil. O risco é ainda maior para VPCs, que têm maior prazo de validade.
Bernadette Franco comenta que “[as hortaliças] são expostas a temperaturas
inadequadas, como ocorre nas barracas de feiras”, condição propícia para a
proliferação de Salmonella. Apesar de existir uma legislação sobre as condições
adequadas de comércio, as normas nem sempre são cumpridas.
O
trabalho reforça que instruir as pessoas responsáveis pela colheita e
pós-colheita é primordial para a redução de riscos, além de monitorar a
qualidade da água, a condição do processamento das hortaliças e o método de
desinfecção. “Nós abrimos um pouco a porta para desenvolver novas medidas de
controle que garantam a segurança do consumidor”, finaliza Daniele Faria.
Fonte
Jornal da USP

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