Luís Nassif: O dia em que a Folha rompeu a
aliança com a ditadura
Nos últimos dias foram divulgados trabalhos
relevantes sobre a participação da Folha na ditadura. Dois artigos importantes
relataram as primeiras tentativas de Otávio Frias de se livrar do jugo militar
e ocupar um espaço de mercado que ele antevira como promissor: a do leitor
progressista.
Relato importante foi feito por Rubens
Glasberg.
E também por Beatriz Kushnir
Participei – meio que a contragosto – do
momento de corte, quando a Folha se livrou dos últimos resquícios da ditadura,
e se transformou no jornal mais influente do país pelos anos seguintes, até
perder o vigor.
Na época, montou um enorme passaralho,
demitiu Antonio Aggio – o policial que comandava a Folha da Tarde – e deu
início à era Otávio Frias Filho.
Por partes.
Fui para a Folha em meados de 1984. Sai da
Veja em 1979, fui para o Jornal da Tarde. Lá, criei o Jornal do Carro e o Seu
Dinheiro. Mesmo com resultados vitoriosos, não consegui emplacar mais projetos.
Decidi, então, ir para a Folha.
Lá, lancei a seção Dinheiro Vivo e acelerei a
campanha em favor dos mutuários, contra os reajustes do BNH, que acabou
alcançando repercussão nacional. O jornal montou seus primeiros comerciais
comigo, ensinando as contas do BNH. Depois, uma campanha para que aposentados
conseguissem se ressarcir, na Justiça, de um golpe que tinha sido aplicado
neles por Francisco Dornelles, Secretário da Receita Federal.
Em função disso, e de algumas reportagens de
impacto – como uma sobre as disputas no Comind (Banco do Commércio e Indústria
de São Paulo) acabei recebendo um convite incômodo – que me foi transmitido por
Carlos Eduardo Lins da Silva, em nome de Otávio Filho.
O velho Otávio decidiu reassumir novamente o
comando formal da Folha, colocando o filho como diretor responsável. Mas a
condição do filho era a de que eu assumisse a Secretaria de Redação do jornal.
Havia dois secretários, um de produção, outro de edição. O de edição era Caio
Túlio Costa.
No princípio recusei. Já tinha embalado na
Dinheiro Vivo e detestava o clima de redação. Além disso, assumira uma
diretoria do Sindicato dos Jornalistas, em uma chapa que reuniu a esquerda
independente com o PT. Também eram membros do sindicato Ricardo Kotscho e
Joelmir Betting. Otavinho bateu pé, ficou de arrumar repórteres para me ajudar
na Dinheiro Vivo, e não tive como recusar.
Quando fomos falar com Frias, ele mencionou a
necessidade de eu pedir demissão do sindicato. Consultei os colegas de
diretoria do Sindicato, entusiasmados com a possibilidade de ter alguém do
grupo na diretoria, contrabalançando a influência que o Partidão tinha em O
Globo. Mas dizendo que eu não deveria pedir demissão do sindicato. Como um bom
soldado, não pedi.
A Folha ensaiava os primeiros voos contra a
ditadura, mas ainda de forma acanhada. A cada 15 dias, o Secretário de Produção
fechava o jornal de domingo. No meu primeiro fechamento, impulsivo, diria até
imprudente, avancei muito além das chinelas.
Veja tinha soltado uma entrevista de Página Amarela com Golbery do Couto
e Silva, assinado por Elio Gaspari.
Desde a eleição de Figueiredo, Gaspari tinha
se tornado o principal cabo eleitoral da ditadura junto à imprensa. Na campanha
de Figueiredo, vendeu a versão de que Figueiredo era um “intelectual”, grande
especialista em matemática.
Depois, toda semana recorria a altas fontes
do Planalto para passar recados através da Veja. E foi o editor da capa infame
que explorou os encontros clandestinos de um deputado da oposição com a esposa
de um senador da oposição. O encontro foi gravado pelo SNI, que era o dono
oculto de um motel em Brasília e virou capa da Veja.
Agora, com o governo fazendo água, e
crescendo a campanha de Tancredo Neves para a presidência, Golbery tentava
lançar Paulo Maluf. Como as declarações em off não tinham mais impacto, Golbery
saiu das sombras para uma entrevista em que aparecia de carne e osso.
Decidi por conta própria, no meu primeiro
fechamento, rebater a entrevista da Veja. Para ilustrar a matéria encomendei
uma charge em que aparecia alguém pequeno, mas projetando uma enorme sombra.
Foi uma página de pancadaria na entrevista, em Golbery e no Gaspari
Na segunda-feira, os dois Otávios me chamaram
para conversar. Foi uma conversa educada, no qual os dois – com toda razão –
disseram que tinham que ser consultados em temas de tamanha gravidade. Fiz
minha autocrítica, disse que tinha sido impulsivo e eles estavam cobertos de
razão.
Mas, porém, contudo, todavia, o jornal
recebera uma enchente de telegramas saudando a matéria. O público que Frias
sempre perseguiu – o leitor mais progressista, para fazer contraponto ao
público mais conservador do Estadão – saía da toca e saudava o jornal que
nascia.
Na conversa, fiz ver aos Frias que a
repercussão da matéria mostrava que a Folha já pertencia ao primeiro time da
imprensa, nada devendo, em repercussão, ao Estadão e à Veja – até então o
veículo de maior peso editorial da imprensa.
Pouco tempo depois, estourou o passaralho.
Foi um dos grandes passaralhos da imprensa. Apenas Aloysio Biondi – editor de
Economia -e eu ficamos contra o tamanho da dispensa. Nas reuniões com Frias, e
do Conselho Editorial, alertava que de nada adiantaria substituir dezenas de
jornalistas por outros, melhores, se destruísse a cultura interna do jornal.
A redação sabia de minha posição.
Mas no dia do passaralho, os jornalistas
rumaram para a sede do sindicato. Na sala Vladimir Herzog, o homem do DOPS –
Antonio Aggio, o representante do DOPS -, também demitido, fez um discurso
pedindo minha cabeça, como diretor do Sindicato.
Esses movimentos de torcida organizada são
terríveis. Mesmo amigos meus temeram sair em minha defesa. A única voz
lembrando que eu tinha sido contra o passaralho foi de Cecília Pires, uma amiga
querida que nunca mais revi.
Fiquei mais uma semana naquele tiroteio.
Cheguei a perder uns cinco quilos. Já tinha passado outros momentos assim, como
na greve da Abril, mas do lado dos grevistas. Do outro lado da linha, era
terrível. Entrava na redação, amigos evitavam até me cumprimentar.
Mas jamais me esqueço de uma repórter, Jane
Soares, cujo marido Dirceu Soares havia sido demitido. Numa das vezes,
atravessou o corredor da redação e me deu um baita abraço de reconhecimento
pela minha resistência. Em toda minha vida profissional, jamais recebi
solidariedade igual.
Uma semana depois do episódio, fiz o que
prometera para mim desde o início. Numa segunda feira fui a uma reunião do
Sindicato, pedi demissão. Depois, fui para a Folha e também pedi demissão. E
voltei para minha coluna Dinheiro Vivo.
Nos meses seguintes, Otavinho e os novos
jornalistas que ele levou, promoveram a revolução da Folha, trazendo um novo
modo de vida para o jornal.
• O
Datafolha e a eleição de Tancredo
Quando pedi demissão da Secretaria de Redação
da Folha, fui convidado a me tornar uma espécie de diretor de conteúdo do recém
criado Datafolha.
Até então, o jornal já fazia pesquisas
eleitorais, tocados para Mara Kotscho. Mas Otávio Frias percebera o potencial
de uma agência de pesquisas, ainda mais tendo a retaguarda da Folha.
Continuei com a seção Dinheiro Vivo, e
despejando ideias para o novo Datafolha para o engenheiro Pedro Pincirolli, o
diretor administrativo do jornal.
Indiquei o novo diretor da agência e preparei
um memorando com cópia para o Frias com todas as ideias que me brotavam. O
Datafolha poderia levantar preços de computadores, fazer pesquisas em
supermercados, montar estatísticas sobre esportes e tudo o que a nova maravilha
tecnológica – o microcomputador – permitiria fazer. O único investimento
necessário seria a Folha adquirir dois microcomputadores Prológica, um para o
Datafolha, outra para a seção Dinheiro Vivo.
Pedro me ligou assustado.
• Nassif,
antes de enviar qualquer coisa ao Frias, me consulte. Ele me ligou assustado
com as exigências que você fez de compra de microcomputadores.
Era risível. A Folha poderia fazer permutas
com algum fabricante, não precisando desembolsar nada. Mas, provavelmente,
Frias pensava em computadores grandes. O único que a Folha tinha era um velho
mastodonte, que foi presentado por Amador Aguiar quando o Bradesco renovou seu
parque de computação.
Mas a pesquisa de maior impacto que fizemos
foi quando a Câmara se preparava para votar no próximo presidente, em regime de
eleição indireta.
Preparei um questionário para ser preenchido
por repórteres políticos, não por pesquisadores comuns. Eles deveriam consultar
deputado por deputado e, depois do voto dado, colocar sua avaliação sobre o
político:
(. ) Confiável
(. ) Não confiável.
Com os votos, dividi a apuração em grupos.
1. Resultado
nominal.
2. Tancredo:
votos confiáveis em Tancredo, e não confiáveis em Maluf.
3. Maluf:
votos confiáveis em Maluf e não confiáveis em Tancredo.
No cenário menos desfavorável, Tancredo
vencia.
Preparei a análise para a edição de domingo.
Sabia que haveria alguma resistência, já que Frias tinha boa afinidade com
Maluf.
Antes de sair a matéria, Otavinho me
telefonou. Perguntou se eu tinha certeza do resultado. Disse-lhe que sim. Então
queria que eu assinasse a matéria, para tirar a responsabilidade da Folha.
A matéria saiu como manchete principal do
jornal, com ampla repercussão.
Na semana seguinte, o jornal repercutiu por
vários dias o furo dado pela Folha.
• Acionistas
da Scania alemã pedem investigação sobre colaboração da empresa com ditadura
brasileira
Em moção publicada no site da Traton SE
(Grupo Traton), subsidiária da Volkswagen, acionistas da Scania alemã exigem
uma investigação sobre a colaboração da empresa com a ditadura militar do
Brasil.
A exigência será reforçada no próximo dia 14
de maio, quando acontecerá a reunião de acionistas do grupo.
Sem os devidos esclarecimentos, eles afirmam
que não poderão aprovar as ações dos Conselho de Supervisão da Traton SE,
relativos ao ano fiscal de 2024.
Os acionistas pertencem à Associação de
Acionistas Éticos da Alemanha e alegam que o Conselho de Supervisão da Traton
SE não cumpriu sua responsabilidade de reconhecer totalmente as violações de
direitos humanos na história da empresa.
O pedido é semelhante ao realizado décadas
atrás por acionistas da Volkswagen, que levou à investigação da colaboração da
empresa com a ditadura militar brasileira.
Com a ação e as descobertas da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), o Ministério Público de São Paulo conseguiu
processar a Volkswagen do Brasil por sua colaboração com a ditadura, o que
resultou em um termo de ajustamento de conduta da empresa.
A Volkswagen pagou uma indenização aos
perseguidos políticos e criou um fundo para reparações históricas.
<><> Confira a íntegra da moção:
O Conselho de Supervisão da Traton SE não
cumpriu sua responsabilidade de reconhecer totalmente as violações de direitos
humanos na história da empresa.
No ano passado, a Associação de Acionistas
Éticos da Alemanha pediu à TRATON SE que finalmente assumisse sua
responsabilidade histórica e investigasse a colaboração de sua atual
subsidiária Scania Brasil com a ditadura militar brasileira.
Para esse fim, a Associação se referiu a
várias evidências históricas, apresentadas em sua contribuição verbal durante a
AGM HV 2024, durante a qual solicitou à TRATON SE que tomasse providências.
Em sua resposta, o Presidente do Conselho de
Supervisão da TRATON SE, Hans Dieter Pötsch, concordou em realizar uma
investigação histórica. A Associação de Acionistas Éticos da Alemanha espera
que os resultados dessa investigação sejam apresentados na AGM 2025 deste ano.
Em 2020, após anos de persistentes apelos por
parte da Associação de Acionistas Éticos da Alemanha, entre outros, a
Volkswagen do Brasil concordou em pagar uma combinação de reparação individual
e coletiva para as vítimas da colaboração entre a VW do Brasil e a ditadura
militar brasileira.
A mesma ação deve ser tomada pela Scania.
As provas apresentadas pela Associação de
Acionistas Éticos da Alemanha mostram como os funcionários foram espionados e
confirmam a demissão ilegal de funcionários dissidentes, a preparação e a
distribuição das chamadas listas “sujas”, com base nas quais os trabalhadores
em questão foram demitidos e, como seus nomes apareciam nessas listas, não
conseguiram encontrar emprego em outras empresas.
A acusação mais grave diz respeito ao papel
histórico do diretor-presidente de longa data da Scania Brasil, João Baptista
Leopoldo Figueiredo, que, de acordo com uma reportagem do jornal conservador O
GLOBO, esteve pessoalmente envolvido na arrecadação de fundos para o centro de
tortura OBAN (mais tarde conhecido pelo nome DOI-CODI) e que supostamente
ajudou a organizar essas campanhas de arrecadação de fundos no Clube
Paulistano.
Investigações realizadas por historiadores
renomados indicam que 66 pessoas foram assassinadas na OBAN/DOI-CODI, 39 das
quais morreram em decorrência das terríveis torturas.
A última notícia que se teve de outras 19
pessoas foi que estavam sendo presas e levadas para o DOI-CODI. Desde que foram
sequestradas à força, elas continuam desaparecidas.
Há muito tempo a TRATON SE deveria assumir
total responsabilidade histórica por esse assunto e não se permitir mais uma
vez invocar erroneamente o argumento de um perpetrador individual, como no caso
da Volkswagen do Brasil (essa postura também foi criticada pelo Prof.
Christopher Kopper).
Em vez disso, é uma questão de reconhecer a
participação sistêmica da Scania na repressão e sua colaboração explícita nos
crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar brasileira.
www.kritischeaktionaere.de
Colônia, 29 de abril de 2025.
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PIX 75981805156 (Francklin R. de Sá)
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DESDE JÁ AGRADECEMOS
Fonte: Jornal GGN/Opera Mundi

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