sexta-feira, 16 de maio de 2025

Dora Incontri: Duas mortes, duas reflexões - Mujica e Divaldo

Já estava preparando minha homenagem a Pepe Mujica, para o texto de hoje, quando chegou a notícia da morte do conhecido médium baiano Divaldo Pereira Franco, aos 98 anos de idade. Como espírita, assinante de uma coluna que fala sobre espiritualidades e espiritismo, de forma crítica e progressista, não posso deixar de me manifestar sobre esta desencarnação – para usar um termo que nos é caro.

Mujica, era um ateu (que dizia graciosamente que não acreditava em Deus, mas esperava estar errado) e Divaldo, um espírita, portanto da comunidade em que me enraízo existencialmente. Entretanto, eu me identifico muito mais com o líder político uruguaio do que com o líder espírita baiano.

Divaldo teve longa e ampla atuação no movimento espírita hegemônico – leia-se conservador, inclinado à direita, institucional, que, para nós progressistas, representa um afastamento da visão mais aberta e progressista do próprio Kardec. O que foi sempre objeto de reflexão crítica de minha parte e de outros pensadores de um espiritismo mais de vanguarda, é o fato de o movimento ter se organizado aqui no Brasil com foco em lideranças mediúnicas, acima de qualquer possível diálogo crítico – o que se deu também com Chico Xavier. Kardec sequer mencionava o nome dos médiuns, que seriam para ele apenas intermediários. A liderança no espiritismo estaria muito mais diluída e recairia sobre pessoas com conhecimento, pesquisadores, pensadores – como ele próprio, Kardec – do que sobre detentores de dons mediúnicos, sempre sujeitos a um crivo de racionalidade crítica. A análise das obras de Divaldo (e de Chico Xavier) nunca foi feita publicamente. Mas há leitores mais aguçados que apontam problemas graves do ponto de vista da própria filosofia espírita e mesmo do conhecimento científico – como é o caso da famosa série psicológica espírita de sua mentora espiritual, Joanna de Ângelis.

Mais recentemente, desde o golpe contra Dilma e a história triste da Lava-Jato e depois do avanço da extrema direita e a ascensão do bolsonarismo, Divaldo infelizmente ficou do lado errado da história. Falta de letramento político? Ingenuidade? Tudo isso, entende-se. O que não se pode aceitar é fazer de uma adesão pessoal uma representação do pensamento espírita. E então, houve de fato uma rachadura, e mesmo muitos, que admiravam Divaldo, se afastaram.

De qualquer modo, é um ser humano, digno de nosso respeito, que teve uma obra social grandiosa na Bahia, cuidando dos mais vulneráveis por muitas décadas. Assim, como boa espírita, já fiz minha prece por ele, com os votos de que vá em paz e seja bem recebido do lado de lá.

Agora, Mujica. Por esse tenho enorme admiração. Camponês, revolucionário, guerrilheiro, prisioneiro da ditadura militar uruguaia durante quase 15 anos, no total. Por anos em solitária, por anos torturado física e psicologicamente, até sem poder ter acesso a livros – entendo como isso pode ser uma tortura. E depois de tudo, não se deixou capturar pelo ódio, não deixou de acreditar na possibilidade de mudar o mundo através da ação política – e então não mais através da revolução armada, mas pelas vias democráticas, pelas vias possíveis.

E foi eleito deputado, senador e depois presidente do Uruguai, pelo Movimento de Participação Popular – que integrou a Frente Ampla, uma coalisão de esquerda no país. Fez o que pôde, o que devia e o que alcançou. O que me encanta, porém, em Mujica é sua simplicidade, sua coerência de vida, jamais cedendo ao luxo, aos encantos do poder, ao consumismo. Um ateu à moda franciscana, um socialista real. Suas falas de convocação ao despojamento, ao usufruto da vida e do amor, em detrimento da busca desenfreada de posição e dinheiro são exemplares e inspiradoras. Muito próximas do outro grande, que se foi recentemente, o Papa Francisco.

A visão crítica e transformadora da sociedade, embora haja sempre as nuanças de cada corrente e de cada pessoa, é um caminho determinante para minha admiração. Penso que tais vidas contribuem mais para o mundo do que as conservadoras e reacionárias. Embora nenhuma vida seja sem significado, nenhuma vida seja isenta de contribuições, dentro da boa fé e do engajamento sincero.

E aqui deixo meu voto para Mujica: vá em paz e se descobrir que estava errado sobre Deus, volte para contar!

¨      Partiram dois gigantes que alimentavam a esperança. Por Maria Luiza Falcão Silva

A América Latina, marcada por desigualdades sociais históricas, perde, em pouco tempo, dois líderes que dedicaram suas vidas às causas dos pobres: o Papa Francisco, líder espiritual da Igreja Católica, e José "Pepe" Mujica, ex-presidente do Uruguai. Apesar de atuarem em esferas distintas, ambos compartilharam um compromisso visceral com a humanidade, deixando marcas que transcendem fronteiras e crenças. Francisco e Mujica foram símbolos de uma simplicidade revolucionária. O Papa, conhecido por rejeitar ostentações, optou por morar em residências modestas e enfatizou a "Igreja pobre para os pobres".

Mujica, enquanto presidente, doava 90% de seu salário para projetos sociais e vivia em uma chácara humilde, longe do luxo do poder. Para ele, o verdadeiro sentido da política era servir ao povo e combater as desigualdades. Durante sua presidência promoveu avanços significativos na educação, na inclusão social e na ampliação dos direitos dos cidadãos.

Mujica e Papa Francisco desafiaram a cultura do consumo, provando que a autoridade moral não depende de riqueza”. “O dinheiro deve servir e não governar, dizia Francisco. “Se vivêssemos dentro de nossas necessidades as sete bilhões de pessoas no mundo teriam tudo o que precisam”, defendia Mujica.

Seus discursos e ações sempre priorizaram os excluídos. Francisco denunciou a "globalização da indiferença" e abraçou migrantes, refugiados e comunidades periféricas. Mujica, por sua vez, lutou por políticas progressistas, como a descriminalização do aborto e da maconha, sempre com foco na inclusão e na redução das desigualdades. 

Ambos criticaram o sistema econômico que idolatra o lucro em detrimento da dignidade humana. Defenderam mudanças dos modos de produção e consumo preocupados com as questões sociais e ambientais. A encíclica *Laudato Si'*, do Papa, ecoou o apelo de Mujica por um desenvolvimento sustentável. Enquanto Francisco alertava sobre a "casa comum" em crise, Mujica questionava o consumismo desenfreado em discursos memoráveis, como na ONU: "Não venham falar de pobreza: lutem contra o luxo".

Embora um guiasse uma instituição milenar e o outro fosse um líder político laico, ambos enfrentaram críticas por romperem com tradições rígidas. Francisco promoveu diálogos inclusivos, enquanto Mujica desafiou tabus com pragmatismo e humanismo. Suas vidas lembraram que é possível governar, liderar e inspirar sem perder a essência ética. Ao partirem deixaram um vazio imenso, mas também um chamado à ação.

“Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade” (Mujica). “Não podemos permanecer insensíveis diante da desigualdade que afeta tantos irmãos e irmãs”(Francisco).

Que suas trajetórias nos inspirem a construir sociedades mais solidárias, onde a compaixão supere a indiferença e a simplicidade seja sinônimo de grandeza.

¨      Mujica, um homem e suas circunstâncias. Por Ricardo Queiroz Pinheiro

“Eu sou eu e minhas circunstâncias.”

A frase de Ortega y Gasset, tantas vezes usada para justificar ambivalências, aqui ganha peso real. José Mujica morreu hoje. E com ele vai uma das figuras mais singulares da política latino-americana recente — não por ser exceção, mas por ter atravessado o tempo com coerência e contradição, lado a lado.

Mujica foi guerrilheiro, preso político, senador, presidente. Viveu em silêncio forçado e aprendeu a falar devagar. Governou um país marcado por uma longa tradição republicana, que também conheceu uma ditadura violenta, com censura, repressão e tortura que ele sofreu na pele. Um país peculiar, com população reduzida e com uma escala específica de problemas. Suas decisões foram marcadas por prudência, e não por medo. Sabia que a política é terreno minado — e preferiu não pisar em todas as minas de uma vez.

Seu pragmatismo não foi apenas por cálculo — foi respeito pelas reais condições, pela experiência, pela conjuntura, pela sobrevivência coletiva. Fez reformas sociais importantes, sem prometer o que sabia não poder entregar. Não enfrentou os grandes interesses econômicos, e talvez por isso tenha conseguido avançar onde tantos naufragaram. Conciliação, ali, era tática e convicção. Gostemos ou não.

É por isso que Mujica foi transformado em símbolo: porque pareceu possível ser decente e eficaz, sem perder a humanidade no caminho. Mas o fascínio que ele desperta — sobretudo numa esquerda de classe média deslumbrada com gestos éticos e biografias limpas — chega a ser injusto para sua trajetória política muito mais complexa. Mujica é visto pelas coisas das quais abriu mão — o velhinho folclórico do fusca —, mas o que o diferencia é que nunca negou a política e seus percalços e abraçou a luta com lealdade e inteligência.

Compará-lo a Lula, como alguns fazem de modo apressado, é ignorar o essencial: o Uruguai não é o Brasil. Existe uma assimetria enorme. Mujica presidiu um país de três milhões de habitantes. Lula, um continente desigual de duzentos milhões, conseguiu alguns avanços e uma oposição implacável. Ambos conciliaram. Ambos vieram de baixo. Mas a escala, o conflito e a ferocidade são outras. Um país permite certos gestos simbólicos; o outro exige permanente reinvenção.

Hoje, Mujica se despede. Morre com ele parte de uma geração que radicalizou, se reinventou e envelheceu. Não foi herói nem mártir. Foi político — no melhor sentido da palavra. E isso, em tempos de ódio cínico, arrivismo e performance vazia, é raríssimo.

O lema dos Tupamaros, o grupo armado marxista pelo qual atuou, era claro em sua politização e contradições:

“Palabras nos dividen, acciones nos unen.”

Boa viagem, camarada.

¨      Dois dedos de prosa com Pepe. Marcos Antonio Corbari

Conheci Pepe Mujica na praça de fronteira, entre Santana do Livramento (BR) e Rivera (UR). Estava sentado na quina do palco, aguardando a chegada de Lula, Dilma Rousseff e Rafael Correa para uma conferência conjunta. Um colega aproximou-se e pediu uma foto. A resposta foi um sorriso aberto e o braço estendido chamando o jovem para o retrato. Foi a senha para que nos aproximássemos, todos, e acontecesse um dedo de prosa inesquecível.

Pepe foi um intérprete do mundo com uma sensibilidade ímpar e uma capacidade de desprendimento incomparável. Quando o chamaram a subir ao palco, nos abraçou um a um e com olhos alegres aconselhou: “vocês contam as histórias e por isso são responsáveis pelo modo como as histórias serão compreendidas depois. Esse é um trabalho muito importante. O que acontece aqui, o que falamos, depende de vocês para chegar até quem precisa saber, até quem precisa ouvir. Tenham carinho na escuta e gentileza no olhar, para que possam contar boas histórias para quem vem depois de nós”.

Em sua fala no palco, enfatizou a necessidade de unidade entre os setores progressistas latino-americanos para enfrentar a ofensiva da direita. O neofascismo, naquele período, mostrava os primeiros sinais concretos de sua face vil. Pepe lembrou que as derrotas recentes do período eram causadas sobretudo por nossas próprias divisões. E criticou fortemente a incapacidade de muitos companheiros e companheiras em olhar para o outro dando prioridade aos pontos de divergência que nos afastam e não aos pontos de convergência que nos deveriam trazer comunhão.

Mujica também alertou sobre a crescente prioridade dada à economia em detrimento da sensibilidade social. Este, segundo ele, é um mal não apenas de governos, mas das próprias relações no meio social. Questionou se o crescimento econômico está sendo acompanhado de uma distribuição justa e se as pessoas estão, de fato, felizes com suas vidas. Sobre o campo político repetiu uma afirmativa de vida: a democracia precisa de partidos políticos fortes, mas eles somente são viáveis se formados a partir de uma militância social ativa. Pepe sempre deixou clara sua crença de que as mudanças não podem depender de figuras individuais, pois a luta sempre deve continuar, mesmo após a saída dessas lideranças.

A segunda vez que encontrei pessoalmente Pepe foi em Foz do Iguaçu, na fronteira entre Brasil e Paraguai. Na companhia dos companheiros de luta Tairi Felipe e Eulália Sá, tivemos um rápido encontro com ele ainda no hotel, antes da conferência da Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos, em fevereiro de 2024. Seu carinho ao nos ouvir e receber os símbolos do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) – a bandeira, a publicação do Plano Camponês e o símbolo coletivo de diversidade – mais uma vez mostrou a generosidade de seu coração e uma imensa capacidade de escuta e acolhimento. Nos chamou de companheiros, sorrindo com os lábios e com os olhos.

Naquele encontro Pepe alertou que a verdadeira integração não pode ser alcançada apenas por meio de acordos entre governos, e sim pela via da participação popular. “A história não é feita por grandes caudilhos, a história é feita pelas massas", disse. Ações concretas de solidariedade entre os países latino-americanos não devem esperar, devem ser implementadas imediatamente e em caráter contínuo, como elo central de uma grande pátria comum, formalizada através de novos símbolos de unidade – uma única bandeira, um único hino, uma única data referencial, até mesmo uma capacidade de unificação das negociações privilegiando as moedas locais em detrimento do domínio do dólar.

Em Foz do Iguaçu, Mujica dedicou boa parte de sua fala ao chamamento aos jovens, procurando encorajá-los a adotar causas significativas, a assumirem o engajamento social e evitarem o conformismo com as injustiças do mundo. A verdadeira liberdade, disse ele, está em viver com um propósito.

"Não se cansem de lutar por um mundo melhor. Vocês não fazem isso pelos outros, vocês fazem isso por vocês mesmos, para serem menos egoístas do que a civilização de mercado em que temos que viver nos impõe. Lute pela vida, lute por uma sociedade melhor. Quando você cometer erros, assuma-os, porque os erros são inevitáveis, o que é evitável é mentir”.

Pepe sempre me pareceu profundamente próximo, profundamente humano. “Não há nada mais importante que o amor”, disse tanto em Foz do Iguaçu quanto em Santana do Livramento/Rivera, como que repetindo o Che quando ensinou que o amor precede qualquer ação verdadeiramente revolucionária. “Gracias, Dom Pepe”, falou um colega. “Obrigado, mestre!”, disse outro. “No me llames don o maestro. Somos compañeros”, respondeu. Obrigado Pepe, obrigado por tanto! Presente! Semente!

 

Fonte: Brasil 247

 

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