Do
grito de guerra ao discurso machista: o que está por trás do movimento
Legendários
Após a
explosão dos coachs de masculinidade, os homens descobriram um novo espaço para
a sua “evolução”: ser um legendário. Com a justificativa de buscarem a “melhor
versão” de si mesmos, o encontro promete restaurar casamentos e evangelizar os
participantes. Na prática, eles realizam atividades físicas intensas até
cumprir o objetivo final: escalar uma montanha.
Os
participantes usam uniformes laranjas e um número de identificação individual,
numa experiência que se assemelha a um treinamento militar. Homens gritando em
conjunto “AHU” (que significa Amor, Honra e Unidade), fazendo abdominais com
mochilas pesadas, sendo pisoteados. Além disso, o foco da imersão são os
discursos cristãos feitos durante o acampamento.
E a
experiência pode ter um custo alto: encontramos valores entre R$450 até R$81
mil na internet, e vai depender do “estilo” escolhido, segundo apuração feita
pelo G1. A estética é primordial: ao voltar do Legendários, é preciso uma boa
foto no Instagram, mostrando que participou da nova moda, e um belo texto
motivacional.
O
objetivo é conquistar adeptos para mais encontros do Legendários, que são
chamados de TOP (Track Outdoor de Potencial), formados por homens que se
“encontram” com a própria fé cristã após viverem diversas privações por 72
horas subindo a montanha. A recente participação do ex-BBB Eliezer e a adesão
de outros famosos e políticos ao Legendários têm agitado as redes sociais. E o
debate é: os homens vão mudar? E essas mudanças serão positivas?
O QUE É
O LEGENDÁRIOS
“Legendários”
é um movimento fundado em 2015, na Guatemala, e que hoje já está presente em 13
países. De acordo com o site da organização, somente no Brasil mais de 25 mil
homens participaram até o momento.
O
propósito é encontrar o legendário número #001: Jesus Cristo. Além do Eliezer,
outros famosos participaram, como os influenciadores Thiago Nigro (Primo Rico)
e Gustavo Tubarão, e Pablo Marçal, ex-candidato a prefeito de São Paulo.
Alguns
políticos também já se orgulham de serem um legendário: é o caso do prefeito de
Divinópolis, Gleidson Azevedo (Novo), que é irmão do senador mineiro Cleitinho
Azevedo (Republicanos). Gleidson publicou em suas redes um vídeo defendendo o
grupo das polêmicas que surgiram, como o alto custo das inscrições. O prefeito
rebateu alegando que as acusações seriam do “demônio” e disse que as pessoas
pagam caro para estar no camarote em eventos de rodeio, valor próximo ao de
encontros do Legendários.
O
movimento também já é tema de projetos de lei em Câmaras Municipais e
Assembleias Legislativas pelo país para a criação de um dia municipal ou
estadual de homenagem ao Legendários. Belo Horizonte, Campo Grande e Porto
Alegre são algumas cidades em que essas propostas já estão em tramitação.
INFLUENCIADORES
LEGENDÁRIOS
A
repercussão do movimento é provocada principalmente por seus representantes
líderes, que passam a produzir conteúdo sobre o Legendários e com
aconselhamento para homens e casais. O influencer Ricardo Martins, dono do
canal ‘Casal Legendário’, um dos mais populares sobre o movimento, já disse no
Instagram que só deu “prioridade” para sua esposa Vanessa, após 22 anos de
casamento, com sua ida ao Legendários.
Nos
vídeos do canal, Ricardo conta uma série de traições cometidas antes de “subir
a montanha”. Agora, recuperado e “exemplar”, se diz apto a “restaurar”
casamentos, evitando ao máximo o divórcio. O perfil tem quase 20 mil inscritos
no Youtube, mais de 120 mil seguidores no Instagram e os vídeos somam milhares
de visualizações.
Em
outro vídeo, Ricardo e Vanessa dizem qual o papel do marido e da esposa em um
casamento, segundo “normas divinas”. Sem citar nenhum estudo, Ricardo afirma
que os cérebros da mulher e do homem são diferentes, e elas seriam naturalmente
mais “cuidadosas” para lidar com crianças. Diz ainda que é importante que os
homens sejam “intimidadores”, capazes de defender a esposa de qualquer pessoa.
MILITARISMO
E MASCULINISMO
A
existência de papéis femininos e masculinos em sociedade é uma crença que
aproxima muito o discurso dos Legendários com o de ‘masculinistas’. Os dois
movimentos comumente defendem que as mulheres devem ser submissas e os homens
devem ser líderes, ainda que apliquem tal ideologia de formas distintas.
O
Legendários promete reconciliar casais e restaurar o caráter masculino,
seguindo a ideia de que é preciso “valorizar” a esposa que “edifica o lar”. Ou
seja: existe um respeito que é conquistado a partir do comportamento das
mulheres, se for adequado aos papéis tradicionais de gênero, segundo os homens.
O movimento acredita que é preciso recuperar os moldes dos casamentos dos anos
1950.
É
curioso porque não parece que as relações estejam tão diferentes do passado.
Todo o trabalho de cuidado e de reprodução social ainda está na nossa conta: as
mulheres continuam gastando, semanalmente, 11 horas a mais que os homens com
afazeres domésticos (Ipea, 2023).
Sem
esse trabalho feminino, nem mesmo o Legendários poderia acontecer. Afinal, quem
fica com as crianças enquanto os homens sobem a montanha? Quem troca as fraldas
e prepara o jantar enquanto eles urram seu grito de guerra e fazem seus
abdominais?
‘REABILITAÇÃO’
ÀS CUSTAS DAS MULHERES
As
traições constantes e a ausência desses homens em casa parecem ser os
principais motivos para recorrer ao Legendários. Imagine se a situação fosse
inversa: mulheres traindo seus maridos e buscando uma reabilitação. Nem
chegaríamos nessa parte, seríamos agredidas ou mortas antes. O último Anuário
Brasileiro de Segurança Pública registrou 1.467 feminicídios em 2023, e quase
85% deles cometidos por companheiro ou ex-parceiro da vítima.
O
Legendários se insere dentro de um movimento cristão conservador e parte de uma
proposta que é cada vez mais forte. O pacote inclui adesão a palestras coach,
consumo de vídeos motivacionais, a “família ideal” instagramável, a busca pela
sua “melhor versão”, seguindo na esteira do welness e do fitness, tudo
intimamente ligado ao avanço das igrejas neopentecostais.
E isso
só é possível às custas de mulheres cada vez mais sobrecarregadas, cansadas e
frustradas com a falência do sonho (e da responsabilidade) de “edificar” uma
família perfeita. É diante da agressividade, do comodismo e da falta de
respeito masculina com suas esposas que o Legendários simula um “sopro de
esperança” para mulheres que precisam acreditar que seus maridos podem ser
homens melhores.
Eles
até poderiam, se houvesse alguma disposição para, antes de tudo, ouvir o que
suas esposas têm a dizer. Do que elas já abdicaram pela manutenção de um
casamento, quais sonhos elas têm, o quanto estão exaustas. Se dispôr a
verdadeiramente dividir as responsabilidades domésticas e de cuidado seria um
ótimo passo, mas isso feriria a masculinidade que tentam fortalecer com o
Legendários. Não há espaço para questionar o poder patriarcal, o movimento
parece não estar disposto a romper esse pacto.
MISOGINIA
DÁ LUCRO
Conteúdos
sobre Legendários, igualmente o de masculinistas, geram um bom lucro. Tanto que
em 80% dos canais de conteúdo misógino no Youtube existe pelo menos um recurso
de monetização ativo, segundo levantamento feito pelo NetLab UFRJ e o
Ministério das Mulheres. Além dessa grana, venda de e-books, cursos, mentorias
e assinaturas ajudam a enriquecer esses produtores de conteúdo. O ‘Casal
Legendário’(Ricardo e Vanessa), por exemplo, disponibiliza seu pix para quem
quiser financiar o projeto.
O que
as mulheres precisam perceber é que não há nada de novo no front. São apenas
novas roupagens de dizer o mesmo: volte para o seu lugar, de dependência, de
submissão. É o neoliberalismo, de mãos dadas com o cristianismo, mostrando suas
garras. Precisamos nos manter atentas: o pacto masculino segue intacto.
Fonte:
Por Maria Paula Monteiro, em AzMina

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