sexta-feira, 16 de maio de 2025

Do grito de guerra ao discurso machista: o que está por trás do movimento Legendários

Após a explosão dos coachs de masculinidade, os homens descobriram um novo espaço para a sua “evolução”: ser um legendário. Com a justificativa de buscarem a “melhor versão” de si mesmos, o encontro promete restaurar casamentos e evangelizar os participantes. Na prática, eles realizam atividades físicas intensas até cumprir o objetivo final: escalar uma montanha.

Os participantes usam uniformes laranjas e um número de identificação individual, numa experiência que se assemelha a um treinamento militar. Homens gritando em conjunto “AHU” (que significa Amor, Honra e Unidade), fazendo abdominais com mochilas pesadas, sendo pisoteados. Além disso, o foco da imersão são os discursos cristãos feitos durante o acampamento.

E a experiência pode ter um custo alto: encontramos valores entre R$450 até R$81 mil na internet, e vai depender do “estilo” escolhido, segundo apuração feita pelo G1. A estética é primordial: ao voltar do Legendários, é preciso uma boa foto no Instagram, mostrando que participou da nova moda, e um belo texto motivacional.

O objetivo é conquistar adeptos para mais encontros do Legendários, que são chamados de TOP (Track Outdoor de Potencial), formados por homens que se “encontram” com a própria fé cristã após viverem diversas privações por 72 horas subindo a montanha. A recente participação do ex-BBB Eliezer e a adesão de outros famosos e políticos ao Legendários têm agitado as redes sociais. E o debate é: os homens vão mudar? E essas mudanças serão positivas?

O QUE É O LEGENDÁRIOS

“Legendários” é um movimento fundado em 2015, na Guatemala, e que hoje já está presente em 13 países. De acordo com o site da organização, somente no Brasil mais de 25 mil homens participaram até o momento.

O propósito é encontrar o legendário número #001: Jesus Cristo. Além do Eliezer, outros famosos participaram, como os influenciadores Thiago Nigro (Primo Rico) e Gustavo Tubarão, e Pablo Marçal, ex-candidato a prefeito de São Paulo.

Alguns políticos também já se orgulham de serem um legendário: é o caso do prefeito de Divinópolis, Gleidson Azevedo (Novo), que é irmão do senador mineiro Cleitinho Azevedo (Republicanos). Gleidson publicou em suas redes um vídeo defendendo o grupo das polêmicas que surgiram, como o alto custo das inscrições. O prefeito rebateu alegando que as acusações seriam do “demônio” e disse que as pessoas pagam caro para estar no camarote em eventos de rodeio, valor próximo ao de encontros do Legendários.

O movimento também já é tema de projetos de lei em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas pelo país para a criação de um dia municipal ou estadual de homenagem ao Legendários. Belo Horizonte, Campo Grande e Porto Alegre são algumas cidades em que essas propostas já estão em tramitação.

INFLUENCIADORES LEGENDÁRIOS

A repercussão do movimento é provocada principalmente por seus representantes líderes, que passam a produzir conteúdo sobre o Legendários e com aconselhamento para homens e casais. O influencer Ricardo Martins, dono do canal ‘Casal Legendário’, um dos mais populares sobre o movimento, já disse no Instagram que só deu “prioridade” para sua esposa Vanessa, após 22 anos de casamento, com sua ida ao Legendários.

Nos vídeos do canal, Ricardo conta uma série de traições cometidas antes de “subir a montanha”. Agora, recuperado e “exemplar”, se diz apto a “restaurar” casamentos, evitando ao máximo o divórcio. O perfil tem quase 20 mil inscritos no Youtube, mais de 120 mil seguidores no Instagram e os vídeos somam milhares de visualizações.

Em outro vídeo, Ricardo e Vanessa dizem qual o papel do marido e da esposa em um casamento, segundo “normas divinas”. Sem citar nenhum estudo, Ricardo afirma que os cérebros da mulher e do homem são diferentes, e elas seriam naturalmente mais “cuidadosas” para lidar com crianças. Diz ainda que é importante que os homens sejam “intimidadores”, capazes de defender a esposa de qualquer pessoa.

MILITARISMO E MASCULINISMO

A existência de papéis femininos e masculinos em sociedade é uma crença que aproxima muito o discurso dos Legendários com o de ‘masculinistas’. Os dois movimentos comumente defendem que as mulheres devem ser submissas e os homens devem ser líderes, ainda que apliquem tal ideologia de formas distintas.

O Legendários promete reconciliar casais e restaurar o caráter masculino, seguindo a ideia de que é preciso “valorizar” a esposa que “edifica o lar”. Ou seja: existe um respeito que é conquistado a partir do comportamento das mulheres, se for adequado aos papéis tradicionais de gênero, segundo os homens. O movimento acredita que é preciso recuperar os moldes dos casamentos dos anos 1950.

É curioso porque não parece que as relações estejam tão diferentes do passado. Todo o trabalho de cuidado e de reprodução social ainda está na nossa conta: as mulheres continuam gastando, semanalmente, 11 horas a mais que os homens com afazeres domésticos (Ipea, 2023).

Sem esse trabalho feminino, nem mesmo o Legendários poderia acontecer. Afinal, quem fica com as crianças enquanto os homens sobem a montanha? Quem troca as fraldas e prepara o jantar enquanto eles urram seu grito de guerra e fazem seus abdominais?

‘REABILITAÇÃO’ ÀS CUSTAS DAS MULHERES

As traições constantes e a ausência desses homens em casa parecem ser os principais motivos para recorrer ao Legendários. Imagine se a situação fosse inversa: mulheres traindo seus maridos e buscando uma reabilitação. Nem chegaríamos nessa parte, seríamos agredidas ou mortas antes. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou 1.467 feminicídios em 2023, e quase 85% deles cometidos por companheiro ou ex-parceiro da vítima.

O Legendários se insere dentro de um movimento cristão conservador e parte de uma proposta que é cada vez mais forte. O pacote inclui adesão a palestras coach, consumo de vídeos motivacionais, a “família ideal” instagramável, a busca pela sua “melhor versão”, seguindo na esteira do welness e do fitness, tudo intimamente ligado ao avanço das igrejas neopentecostais.

E isso só é possível às custas de mulheres cada vez mais sobrecarregadas, cansadas e frustradas com a falência do sonho (e da responsabilidade) de “edificar” uma família perfeita. É diante da agressividade, do comodismo e da falta de respeito masculina com suas esposas que o Legendários simula um “sopro de esperança” para mulheres que precisam acreditar que seus maridos podem ser homens melhores.

Eles até poderiam, se houvesse alguma disposição para, antes de tudo, ouvir o que suas esposas têm a dizer. Do que elas já abdicaram pela manutenção de um casamento, quais sonhos elas têm, o quanto estão exaustas. Se dispôr a verdadeiramente dividir as responsabilidades domésticas e de cuidado seria um ótimo passo, mas isso feriria a masculinidade que tentam fortalecer com o Legendários. Não há espaço para questionar o poder patriarcal, o movimento parece não estar disposto a romper esse pacto.

MISOGINIA DÁ LUCRO

Conteúdos sobre Legendários, igualmente o de masculinistas, geram um bom lucro. Tanto que em 80% dos canais de conteúdo misógino no Youtube existe pelo menos um recurso de monetização ativo, segundo levantamento feito pelo NetLab UFRJ e o Ministério das Mulheres. Além dessa grana, venda de e-books, cursos, mentorias e assinaturas ajudam a enriquecer esses produtores de conteúdo. O ‘Casal Legendário’(Ricardo e Vanessa), por exemplo, disponibiliza seu pix para quem quiser financiar o projeto.

O que as mulheres precisam perceber é que não há nada de novo no front. São apenas novas roupagens de dizer o mesmo: volte para o seu lugar, de dependência, de submissão. É o neoliberalismo, de mãos dadas com o cristianismo, mostrando suas garras. Precisamos nos manter atentas: o pacto masculino segue intacto.

 

Fonte: Por Maria Paula Monteiro, em AzMina

 

Nenhum comentário: