Como os super ricos moldam a economia e as sociedades
Se invertermos esse estado de coisas,
vigiando mais de perto os ricos, sustenta Kerr, podemos entender melhor a
desigualdade. Os ricos devem ser obrigados a compartilhar o que sabem,
especialmente quando causam danos sociais, como, por exemplo, ao contribuir de
forma desproporcional para o aquecimento global.
>>>> Eis o artigo.
Os governos fazem o suficiente para enfrentar
as crescentes desigualdades ou se limitam a consentir com as elites da riqueza?
Em dois livros de recente publicação, Max Steuer e Sarah Kerr abordam essa
questão de maneiras diferentes. Enquanto a relação entre os super ricos e o
poder político formal se torna cada vez mais evidente, esses livros explicam
por que uma política econômica responsável é imprescindível para construir
sociedades mais justas.
• Riqueza,
poder e economia
Como avançar para a equidade econômica em uma
sociedade justa? Isso é possível, quando as desigualdades econômicas são
descontroladas e poucos ricos exercem um tremendo poder sobre a maioria?
Dois livros muito diferentes convidam os
leitores a refletirem sobre as questões econômicas como chave para alcançar uma
sociedade justa: Dangerous Guesswork in Economic Policy [Política econômica
baseada em conjeturas perigosas], do distinto economista sênior Max Steuer, e
Wealth, Poverty and Enduring Inequality: Let’s Talk about Wealtherty [Riqueza,
pobreza e desigualdade perdurante. Vamos falar sobre wealtherty], da socióloga
política Sarah Kerr. O que está em jogo na disciplina econômica é tanto a justiça
quanto a democracia, que devem ser arrancadas das garras da minoria rica, no
contexto da ascensão de perigosos populismos. Ambos os autores são pessimistas,
e com razão, pois a riqueza está intimamente ligada ao poder e os ricos
resistirão a políticas que reduzam suas liberdades e influência. O conhecimento
econômico não é suficiente, mas é necessário para nos dar a capacidade de
trabalhar eficazmente em prol de sociedades mais equitativas e um mundo mais
justo.
Além desse terreno compartilhado, os autores
divergem em aspectos importantes. O estilo de Steuer é claro, direto, às vezes
taxativo no tom. Ele sustenta que os economistas são conselheiros técnicos
desinteressados e necessários para uma elaboração responsável das políticas
governamentais: "Os economistas são facilitadores. Me diga o que você
deseja e eu te direi como alcançá-lo". Os economistas teorizam, depois
desenvolvem modelos simplificados e, a partir deles, criam políticas que moldam
nossa vida social em questões tão variadas e vitais como desigualdade,
aquecimento global, pandemias. Precisamos do conhecimento econômico
especializado para nos afastarmos das conjeturas populistas sobre a economia,
que são amadoras, perigosas e, por vezes, francamente desonestas — se ao menos
os conselheiros políticos de alto nível ouvissem.
Em contraste, Kerr escreve com um estilo
elíptico — para ser franca, às vezes complicado —, a partir de uma perspectiva
interdisciplinar. Para ela, a desigualdade, especialmente o problema da alta
concentração de riqueza em meio à pobreza, é um tema para quem elabora
políticas sociais, não para economistas. Com um desejo de alcançar um amplo
público, ela começa e termina com um Manifesto, que inclui declarações como
esta: "A riqueza deve ser transformada em um problema social". Kerr
instiga pesquisadores, formuladores de políticas e o público a deixarem de
focar na pobreza, para entender melhor os ricos e a forma como eles transformam
sua riqueza em poder. Isso significa problematizar nosso estado contemporâneo
de wealtherty (riquezapobreza), um contexto social em que a extrema
concentração de riqueza molda nossa política e legislação, nosso conhecimento e
nossa ignorância, e, por fim, nossas formas de ser. Hoje, os pobres são
vigiados e disciplinados, convocados a falar e divulgar suas experiências. Os ricos,
por sua vez, são deixados em sua privacidade, autorizados a calar-se ou, se
escolhem falar, recebem crédito por oferecer perspectivas importantes. Para
mudar essas realidades injustas, precisamos de uma melhor ciência social —
começando por reconhecer a riqueza como um problema — e uma melhor política
social.
Considerando essas diferenças, quais são as
forças e limitações particulares dos argumentos de Steuer e Kerr? De que forma
eles apresentam as questões econômicas, especialmente a desigualdade, como
importantes para quem se preocupa com uma sociedade justa e democrática?
• A
economia como investigação social
Em Dangerous Guesswork, Steuer se baseia em
décadas de erudição para explicar a disciplina econômica aos políticos. O
mercado não pode ser deixado a si mesmo; a ideia de que os mercados se
autorregulam é uma afirmação indefensável, sendo apenas "ideologia que
enlouqueceu". Os conselheiros que não são economistas costumam ser
perigosos. O sucesso dos empresários é tomado como evidência de sua habilidade
em navegar pelas relações econômicas. Mas, mesmo nos melhores e mais
desinteressados casos, o conhecimento dos empresários geralmente se limita a um
campo particular, ao contrário do economista profissional, que lida com a
economia de forma ampla. Como explica Steuer: "Observar, prever e apreciar
tendências na moda e nas preferências de consumo é diferente de prever
desemprego ou crescimento econômico", e apenas economistas são treinados
para isso.
Na descrição de Steuer, o economista é um
cientista que mantém uma "mente aberta" ao considerar diversas
teorias e modelos, utilizando-os para gerar evidências e, assim, desenvolver
políticas informadas. Quando as políticas econômicas não funcionam, ele
aperfeiçoa as teorias e modelos à luz das evidências.
Os economistas compartilham importantes
pontos de vista básicos. Todas as economias são uma mistura de atividade dos
mercados, políticas governamentais e trocas informais (às vezes ilegais). A
especialização, como o conhecimento sobre comércio internacional, coexiste
necessariamente com o reconhecimento da "economia mais ampla" e de
diferentes tipos de mercados, incluindo as economias rurais e urbanas. As
economias nacionais não são autônomas, mas estão interligadas "através do
comércio, dos movimentos de capital e da migração". Para Steuer, os
economistas profissionais baseiam suas análises nessas verdades compartilhadas,
fazendo isso pelo maior bem-estar das economias e, portanto, das sociedades em
que vivem.
Steuer foca na economia neoclássica, mas
admite que não o faz "por nenhum bom motivo". Muitas teorias
econômicas alternativas são testadas — por exemplo, extraindo lições de
experiências históricas ou focando na complexidade como característica
fundamental da economia — e com razão. Embora Steuer reconheça o pluralismo
necessário na disciplina, ele não reserva seus julgamentos. John Maynard Keynes
está "profundamente errado" ao afirmar que a economia é como a
encanamento, só importando quando não funciona. Ao contrário, a economia é
parte da vida cotidiana e merece atenção séria e constante. As decisões
econômicas, como financiar uma boa educação básica, podem fomentar virtudes
individuais e sociais como curiosidade e coragem.
Pelo mesmo motivo, quando Thomas Piketty
afirma que a disciplina econômica frequentemente está demasiado separada de
outras formas de investigação social, Steuer concorda abertamente, pois "a
economia está intimamente interconectada com o sistema social total". O
economista sofisticado, em oposição ao político ingênuo, ao ideólogo, ou pior,
ao charlatão, compartilha essa visão.
Steuer explica por que a desigualdade
econômica é uma questão chave, inevitável, com sua decisão característica:
"Mas é injusto que 1% da população
possua mais da metade da riqueza? Não é uma pergunta científica, alguém poderia
dizer, equivocadamente. A maioria das pessoas tem algo que se aproxima de um
senso comum de equidade. Se algo transgride esse senso, isso é um fato da vida,
como a velocidade da luz."
As questões econômicas dizem respeito à
sociedade justa, e a sociedade justa não pode tolerar os altos níveis de
desigualdade que caracterizam nossos países e o mundo hoje. Para evitar os
danos e desincentivos decorrentes da extrema desigualdade, são necessárias
políticas tributárias paliativas, entre outras; e para isso, é necessário o
conhecimento especializado dos economistas, e não a influência dos líderes
empresariais ricos.
De maneira geral, Dangerous Guesswork é uma
introdução clara, admiravelmente sucinta e frequentemente vivaz à economia
dominante. Abordagens-chave, como a econometria, e conceitos importantes, como
as vantagens comparativas, são explicados brevemente e ilustrados com exemplos
úteis. A tendência de Steuer ao julgamento terminante é menos atraente e
enfraquece seu argumento de que existe uma pluralidade de abordagens razoáveis
para as questões econômicas. Sua decisão de usar o pronome masculino "quase
em todos os lugares" é desanimadora. No estilo e nas práticas de citação,
Steuer deixa a impressão de que o "clube da economia" é composto por
homens brilhantes, com a adição de Janet Yellen, ex-presidente do Federal
Reserve dos Estados Unidos. Mais oportuno é o argumento apaixonado de Steuer em
defesa do argumento fundamentado e do recurso à evidência contra os populismos,
ou pior, as conspirações, e sua defesa da necessidade de relações econômicas
mais igualitárias para a sociedade justa.
• Estudar
os ricos para confrontar a desigualdade
Em Enduring Inequality, Kerr considera as
longas histórias que moldam o presente, marcado por amplas desigualdades e a
concentração de riqueza nas mãos de poucos. Punimos os pobres, vendo-os como
irresponsáveis e suspeitos por sua pobreza. Isso era assim no século XIX,
quando as mulheres eram vigiadas e punidas nos asilos para pobres. Kerr recorda
de uma mulher, Hannah Joyce, que em 1845 foi acusada de matar seu bebê, porque
se presume que mulheres pobres são más mães; ela foi posteriormente absolvida. De
forma menos extrema, aqueles que buscam emprego são vigiados e punidos,
assumindo-se que são irresponsáveis e provavelmente trapaceiros. O acesso ao
Crédito Universal, disponível apenas para quem tem menos de 16.000 libras
esterlinas (algo em torno de 20.000 dólares), depende de uma “pressão cruel e
constante para assumir mais tarefas”, independentemente de quão mal remuneradas
sejam ou de quantos pequenos empregos diferentes sejam necessários para
completar as 36 horas de trabalho exigidas.
Enquanto isso, os ricos são ou
deliberadamente ignorados ou considerados atores e conselheiros honoráveis e
conhecedores. A informação incorreta fornecida em um formulário de impostos não
é considerada fraude, como seria para uma pessoa pobre, mas sim um
"erro"; um sistema complacente de “cutucões e avisos” fomenta uma
divulgação mais completa e precisa. Os proprietários ricos são deixados em paz,
mesmo que suas práticas de aluguel prejudiquem inquilinos menos favorecidos ao
criar “condições de moradia inseguras”. Eles têm acesso ao Estado, onde são
bem-vindos como interlocutores confiáveis, influenciando diretamente as
políticas estatais.
Se invertermos esse estado de coisas,
vigiando mais de perto os ricos, sustenta Kerr, podemos entender melhor a
desigualdade. Os ricos devem ser obrigados a compartilhar o que sabem,
especialmente quando causam danos sociais, como, por exemplo, ao contribuir de
forma desproporcional para o aquecimento global.
Infelizmente, o livro de Kerr — escrito a
partir de sua tese de doutorado — ainda é lido como uma exploração desordenada
de ideias sobre desigualdade econômica de uma doutoranda entusiasta, mais do
que como um argumento claro e fundamentado. Existem inconsistências
importantes. Kerr insta os leitores sem ambiguidade a "parar de falar
sobre a pobreza", afirmando que "falar sobre a pobreza direciona a
atenção para os sintomas do problema", apenas para, em seguida, apresentar
vários capítulos focados nos pobres, desde os asilos para pobres do século XIX
até as experiências de mulheres que hoje se veem forçadas ao trabalho sexual
para sobreviver. De fato, o que Kerr quer dizer, e diz em outras partes, é que
devemos estudar os ricos em relação aos pobres. Evitar slogans equívocos e
argumentos inconsistentes é importante em um livro que busca intervir nos
debates políticos e persuadir o público.
Infelizmente, Kerr tropeça no uso de
conceitos chave ao longo do texto. Tomando emprestado de outros acadêmicos, por
exemplo, distingue "riqueza ordinária", ou o que é minimamente
necessário para uma boa vida, como "segurança", da "excessiva"
ou "sobrante" riqueza, ou seja, a concentração de ativos muito acima
do necessário para satisfazer as necessidades. Uma vez estabelecida, essa
distinção não se sustenta nem neste capítulo nem no restante do livro. Muitas vezes
Kerr se refere simplesmente a "os ricos" e "os pobres", mas
em outros trechos descreve os ricos como "capitalistas", recorrendo a
uma linguagem marxista da economia política da qual, de outra forma, (em geral)
ela se distancia. Não se trata de um traço inevitável da interdisciplinariedade,
mas de uma confusão significativa em torno de um conceito chave.
A maior parte da discussão de Kerr sobre a
"wealtherty" poderia ter mais impacto se fosse apresentada de forma
mais direta. Considere-se esta afirmação:
"A wealtherty é uma nova estrutura para
o estado em que nos encontramos, pois coloca a análise crítica da riqueza no
centro dos debates de política social. Cria um novo espaço para pensar. Vamos
parar de falar sobre a pobreza e falar sobre a wealtherty se quisermos
confrontar a desigualdade."
Por que não escrever simplesmente: "Em
vez de focar na pobreza, os debates de política social devem considerar a
relação entre riqueza e pobreza, se quisermos confrontar a desigualdade"?
Ou até mesmo: "Em vez de focarmos apenas na pobreza, vamos falar sobre
desigualdade"?
Por fim, o neologismo "wealtherty"
é desnecessário, e o que é pior, distrai ativamente do que (pelo que
interpreto) é o argumento principal de Kerr: vivemos em uma sociedade injusta,
caracterizada por uma alta concentração de riqueza e poder político em meio a
uma terrível pobreza e impotência associada. Estudamos e disciplinamos os
pobres, invocando suas vozes, mas sem ouvir suas perspectivas, enquanto damos
crédito aos ricos como atores conhecedores, quando não os deixamos simplesmente
em paz para que desfrutem de sua privacidade. Isso deve terminar. É necessário
entender melhor a desigualdade e, em particular, os muito ricos e como produzem
e mantêm relações de desigualdade. O livro de Kerr traz ideias importantes; o
original merecia uma revisão mais rigorosa e um processo de edição que apoiasse
seu argumento.
• Conversas
críticas em um mundo desigual
Essas intervenções são oportunas e
necessárias. No Reino Unido, Rishi Sunak (primeiro-ministro entre 2022 e 2024)
possui uma fortuna estimada em 730 milhões de libras esterlinas (cerca de 950
milhões de dólares). Jeff Bezos, Tim Cook, Elon Musk, Sundar Pichai e Mark
Zuckerberg, cinco bilionários, sentaram-se juntos na segunda posse de Donald
Trump à presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2025, diante do
gabinete de Trump. A relação entre os muito ricos e o poder político formal
nunca foi tão evidente. Nesse contexto, os livros de Steuer e Kerr insistem de
maneira proveitosa que a desigualdade econômica é um problema importante e que
as questões econômicas nos dizem respeito a todos. Acertadamente, eles nos
convidam a confrontar as desigualdades e a concentração de riqueza. Se nos
importa viver em sociedades justas e democráticas, é o mínimo que podemos
fazer.
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Fonte: Por Elaine Coburn, em LSE Review of
Books/Nueva Sociedade

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