Como
adolescentes abastecem mercado online ilegal de animais silvestres
O
estudante de medicina veterinária Tiago (nome fictício), de 24 anos, sempre foi
apaixonado por animais, especialmente os répteis. Em suas palavras, são
"animais magníficos, fáceis de cuidar e não dão o trabalho de um cão ou um
gato."
Tiago é
um criador de diversos animais silvestres, como iguanas e serpentes, e
eventualmente também participa do comércio desses bichos - prática que, por
lei, é ilegal e pode levar a multa e até prisão.
Sob
condição de anonimato e usando um celular com número do Paraguai, ele conversou
com a BBC News Brasil e conta que está no que chama de "hobby" ao
menos desde os 14 anos. "Já tive quati (mamífero da mesma família dos
guaxinins), macaco, papagaio."
Sua
inspiração veio de canais no Youtube, como o Jay Prehistoric Pets, americano
que possui mais de 6 milhões de inscritos.
Dentre
os vídeos mais populares do canal estão um que mostra filhotes de serpente, com
mais de 30 milhões de visualizações, e outro com uma tartaruga de 104 anos de
idade, com 43 milhões de acessos.
Apesar
da inspiração, a reportagem não identificou processos contra o canal americano
relacionados aos animais exibidos.
"Via
no YouTube os gringos criando e sempre queria. Assistia muito e acompanho até
hoje", conta Tiago.
O
estudante é parte de um fenômeno que foi destacado em uma pesquisa finalizada
neste mês pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres
(Renctas), e obtida pela BBC News Brasil: a participação frequente de jovens de
até 30 anos, inclusive adolescentes, no comércio online ilegal de animais
silvestres.
A
organização analisou cerca de 3 mil mensagens com anúncios no Whatsapp de
grupos de comércio de animais silvestres e conseguiu perfilar parte de seus
vendedores.
• 'Um hobby'
São
pessoas que não necessariamente lucram com este comércio nem o gerenciam -
Tiago conta que trabalha em outra área e que o dinheiro que ganha com vendas
acaba sendo usado para comprar outros bichos.
Funciona
como um hobby, em suas próprias palavras.
"Eu
me considero um 'hobbysta'. Por mais que sejam animais ilegais, eu trabalho e
tenho meu serviço, não dependo mais da venda de animais. Tenho meus animais
para aproveitar, apreciar o animal e entender mais sobre ele, qual temperatura
ele necessita, umidade."
O
comércio é feito principalmente pela plataforma Whatsapp, onde há diversos
grupos clandestinos para o comércio e troca de informações, segundo o estudo da
Renctas.
As
negociações são feitas na base da confiança - para conquistá-la, é preciso ser
indicado por alguém que está no meio. Tiago diz que administra ao menos 20
grupos do tipo, que somam cerca de 1 mil membros. "Grande parte é de
curiosos. Não são pessoas que compram ou vendem."
Ele
acredita que há hoje, por consequência das redes sociais, mais jovens neste
mercado ilegal. "É um serviço fácil. Muitos podem até gostar dos animais,
mas pensam que vão enriquecer com isso."
Tiago
diz que terá de deixar o "hobby" ilegal em algum momento,
principalmente depois de formado.
"Estou
saindo do ilegal aos poucos. Pegando animais que tenho e passando. Sei que
estou cometendo crime, mas meu negócio nunca foi tirar animal da natureza e
revender ou comprar. Todos os animais que tenho ilegais foram reproduzidos em
cativeiro. Por mais que eu saiba que é errado, não sou a favor de tirar animais
da natureza."
• VPN, chip internacional e domínio de
redes sociais
A
análise da Renctas mostra que existe "um nível de organização e
cautela" por parte dos contrabandistas.
Os
vendedores usam pseudônimos, como Sonic ou Alemão, chips de celular digitais
(e-sim) com números do exterior e VPN - tecnologia que permite navegação online
de forma segura e privada, o que pode dificultar investigações.
A
organização conseguiu rastrear perfis no Facebook de parte desses comerciantes
e entrevistou alguns deles. Então, para aqueles possíveis de serem
identificados, analisou seus perfis, como idade, gênero e região geográfica.
A faixa
etária predominante tinha entre 21 e 30 anos (254 anúncios), seguida por 11 a
20 anos (246 anúncios).
A
pesquisa identificou até mesmo anúncios de vendas feitos por crianças e
adolescentes. Trata-se de uma página de rede social em que era anunciada a
compra e venda de geckos (um tipo de réptil que lembra um tipo de lagartixa).
Em
alguns anúncios é possível ver que os vendedores criam uma espécie de
identidade online, com apelidos relacionados a personagens de filmes (ex:
Coringa) ou animes (ex: Berserk).
A
predominância de jovens encontrada nesses grupos tem a ver, segundo a
organização, com a familiaridade com o uso de redes sociais, aplicativos de
mensagens e plataformas de e-commerce, diz a organização.
"Essa
faixa etária cresceu em meio à cultura digital e sabe como operar com
discrição, utilizando mecanismos como perfis falsos, linguagens cifradas e
redes criptografadas", diz o relatório.
• Anúncios falsos no Mercado Livre
Uma das
formas de viabilizar essas negociações ilegais tem sido por meio de um esquema
que usa sites de e-commerce, como o Mercado Livre.
Neste
modelo o vendedor do animal silvestre anuncia um objeto qualquer, como um tênis
ou uma bolsa, e alerta o comprador nos grupos para usar aquele link para
efetuar o pagamento.
O
comprador confirma a aquisição pelo site, já sabendo que o que receberá, na
verdade, é o bicho. Esse formato permite até mesmo que o comprador parcele o
animal pelo cartão de crédito, por exemplo.
"Esse
tipo de operação representa um desafio maior para as autoridades e para as
próprias empresas de e-commerce, que nem sempre têm ferramentas eficazes para
rastrear o uso criminoso de seus serviços. Como o anúncio em si não menciona
animais e os pagamento são processados de forma legítima, a transação não
levanta alertas automáticos", diz a Renctas.
Em
nota, o Mercado Livre afirmou que, conforme prevê em seu termo de condições e
uso, é proibida a comercialização e/ou solicitação de animais silvestres na sua
plataforma e que "repudia qualquer uso indevido da plataforma que viola
diretamente" essas políticas.
A
empresa disse que, caso identificado que um anúncio é irregular, este é
rapidamente excluído e o vendedor, penalizado. "A empresa reforça que
trabalha de forma incansável para promover um ambiente digital seguro e
confiável para milhões de usuários a partir da adoção de tecnologia e de
equipes que também realizam buscas manuais. Além disso, atua rapidamente diante
de denúncias, que podem ser feitas por qualquer usuário por meio do botão
'denunciar' existente em todos os anúncios da plataforma."
Já o
Whatsapp disse que "não permite o uso do seu serviço para fins que
instigue ou encoraje condutas que sejam ilícitas ou inadequadas". E que
"nos casos de violação destes termos, o WhatsApp toma medidas em relação
às contas como desativá-las ou suspendê-las."
A
empresa afirmou ainda que "encoraja que as pessoas reportem condutas
inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção
"denunciar" disponível no menu do aplicativo (menu > mais >
denunciar). Os usuários também podem enviar denúncias para o link
www.whatsapp.com/contact detalhando o ocorrido com o máximo de informações
possível e até anexando uma captura de tela."
• 'Eles se colocam como salvadores da
natureza'
Outro
ponto reforçado pelo relatório é que há uma "falta de percepção sobre a
gravidade ambiental e jurídica do tráfico", que faz com que "muitos
desses jovens ingressem nesse mercado criminoso."
Essa
ideia de impunidade é frequente e foi citada pela BBC News Brasil em
reportagens recentes, como no contrabando de tarântulas ou comércio ilegal de
peixes geneticamente modificados — entrevistados disseram não ter conhecimento
da ilegalidade ou duvidar que pudessem ser fiscalizados.
Para
Dener Giovanini, coordenador da Renctas, os mais jovens são considerados um
alvo fácil por traficantes de animais mais experientes, assim como acontece no
tráfico de drogas.
"Quando
eles vão para áreas rurais, onde há grande biodiversidade, o primeiro contato
que fazem é com jovens, seja em comunidades indígenas ou ribeirinhas, por
exemplo. Seduzem os jovens a serem fornecedores de bicho. É a porta de entrada
para o mundo da ilegalidade."
Ele diz
que uma das dificuldades de combater a prática é a aceitação do tráfico como
algo comum, uma forma válida de conseguir dinheiro, inclusive com apoio das
famílias.
"Começa
capturando os animais e a juntar cobra, iguana, passarinho, macaco, para
oferecer isso em troca de valores muito baixos. Já vai embutindo a ideia de que
a ilegalidade é uma coisa aceitável, muitas vezes até mesmo com apoio da
comunidade."
Outro
ponto é que, na visão de alguns contrabandistas, há uma percepção de que o que
eles estão fazendo é positivo para os animais, diz ele. "Eles não encaram
isso como uma atividade legal. Eles até se colocam como salvadores da natureza.
Acham que criando esses animais em casa, tirando da floresta, estão ajudando a
natureza, preservando esses animais. Há uma desconexão com a realidade."
• 'Tio, eu queria um macaco'
O
agente ambiental e chefe-substituto do Núcleo de Fiscalização da Fauna do
Ibama, Bruno Campos Ramos, diz que é comum ver a participação de jovens no
contrabando de animais silvestres, inclusive em feiras em que tradicionalmente
há apreensões de espécies diversas, como a de Duque de Caxias, no Rio de
Janeiro.
"Fazemos
operações lá constantes, praticamente mensais, e apreendemos as mesmas pessoas
lá, recorrentemente. Muitos são jovens. Tem menor de idade, pessoas de 19, 20,
21, até 25 anos, um perfil mais jovem."
Ele
atribui o interesse à grande quantidade de conteúdo divulgada nas redes sociais
por páginas com muitos seguidores que mostram animais silvestres, de forma
ilegal.
"Já
tive ações em que apreendi menores de idade na parte da coleta, captura na
natureza, como já apreendi também na venda e como consumidor final", diz
Ramos.
Ele
conta um caso em que, em uma dessas operações em uma feira, foi abordado por
uma criança que o viu com uma camiseta do Ibama e logo achou que ele seria o
vendedor e o abordou: "tio, eu queria macaco, eu posso?". Quando ele
respondeu que não era permitido, a resposta foi: "mas eu vejo tanta gente
no TikTok com esses animais."
A
empresa responsável pelo TikTok não quis comentar a declaração.
"A
gente percebe que são associações criminosas, existem claramente os
responsáveis pela captura, pelo transporte, mas também os responsáveis pelo
depósito e pela venda, até chegar no consumidor final. Há várias pessoas
ganhando dinheiro com esse comércio."
Uma das
estratégias que tem sido tentada pelo instituto é o diálogo com as redes
sociais e plataformas de e-commerce, para propor bloqueios automáticos em casos
de anúncios de animais silvestres. "Há canais que ensinam até mesmo como
caçar e capturar animais", diz.
• Tráfico é dominado por homens brancos
entre 50 e 59 anos, diz pesquisador da USP
A
pesquisa da Renctas, que olha especificamente para um recorte específico de
mensagens em grupos de WhatsApp, contrasta com outra feita em 2022, por um
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e com
outra metodologia.
Vitor
Calandrini analisou, em sua dissertação de mestrado, apreensões de animais
silvestres no Estado de São Paulo entre 2018 e 2019 e buscou identificar as
características dos traficantes e animais apreendidos em mais de 7,6 mil
ocorrências.
Como
resultado, identificou um perfil de homens que se declararam brancos, casados,
do próprio estado, que têm entre 50 e 59 anos. Identificou ainda que eles
possuem fonte de renda que permitem pagar a multa aplicada e instrução para
entender que o fizeram é ilegal.
Calandrini
diz que a pesquisa apontou que o tráfico ainda acontece, em sua maioria,
pessoalmente, não pela internet. "As pessoas mais velhas confiam ainda na
negociação direta. Existe um ou outro que acaba indo para rede social, mas não
é a maioria."
Giovanini,
da Renctas, complementa, e diz que a internet pode ser só uma parte do
processo. "O tráfico de animais é uma cadeia de eventos, que começa com o
atravessador, passa pelo coletador, pelo transportador, pelo vendedor, pelo
entregador e, por fim, o comprador. Cada uma dessas etapas tem suas próprias
características e modus operandi."
Fonte:
BBC News Brasil

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