As
raízes liberais da extrema-direita
Nem só
de governantes e parlamentares se faz o campo da política. Diversos atores
organizaram-se para influenciar, pressionar e determinar os rumos das políticas
públicas e das leis que orientam um país ou uma região. Dos anos 1980 para cá,
conforme a historiadora e cientista política María Julia Giménez, os think
tanks (“laboratórios de ideias”) passaram a desempenhar um papel importante
nesse cenário.
No
livro Um Atlântico Liberal: Think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva da direita
na América Latina, recém-lançado pela Editora da Unicamp, a pesquisadora
analisou a atuação da Fundación Internacional para la Libertad (FIL), entidade
que congrega organizações da Espanha, dos Estados Unidos e de países
latino-americanos em uma rede voltada para a defesa e difusão do liberalismo.
Presidida
pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, falecido no dia 13 de abril, a FIL
surgiu em reação ao avanço de governos progressistas na América Latina no
início dos anos 2000. Nas palavras de seus fundadores, a entidade nasceu a fim
de “defender o elementar perante a irracionalidade que parece ter se apoderado
de extensas camadas da opinião pública mundial”.
Para
Giménez, nesse contexto, uma série de organizações recuperaram algumas das
gramáticas políticas da Guerra Fria centradas no “perigo vermelho” e traduziram
esses esquemas para o presente, incorporando novos problemas e novos inimigos,
como o marxismo cultural, os movimentos populares e camponeses e os defensores
e defensoras dos territórios originários.
“Vargas
Llosa era uma figura que exemplificava esse processo histórico. Após ganhar
destaque como um dos grandes escritores latino-americanos do boom do realismo
mágico, já nos anos 70 ele se afastou do apoio ao processo revolucionário
cubano, colocando-se como um ator anticastrista, abraçou o neoliberalismo e,
graças ao apoio de uma vasta rede de think tanks liberais, se converteu em uma
referência na defesa do liberalismo no mundo”, diz a autora.
Os
think tanks, indica a autora, são uma forma política, assim como os partidos, e
podem ser articulados em qualquer espectro político, embora sejam mais
preponderantes e efetivos na direita. “Trata-se de um mercado de ideias”,
sintetiza.
Em
entrevista ao Jornal da Unicamp e reproduzida pelo Correio da Cidadania,
Giménez aborda também a relação dessas organizações com a emergência da extrema
direita na América Latina, citando como exemplo o caso do seu país de origem, a
Argentina.
O livro
resulta do doutorado em ciência política da autora, realizado na Unicamp. <><>
Confira a entrevista.
·
O que são os think tanks e por que estudar a FIL?
María
Julia Giménez: Os
think tanks, sob uma perspectiva gramsciana, são um tipo de aparelho privado de
hegemonia que se desenvolve no correr do século 20, chegando, nos anos 1980, a
uma forma de advocacy, de defesa de ideias, trabalhando principalmente na
incidência sobre um público específico, como consumidores, parlamentares, CEOs
[diretores-executivos de empresas], grandes proprietários etc., criando e
divulgando enquadramentos para a compreensão da realidade.
Trazendo
aportes da teoria dos campos de Pierre Bourdieu, podemos dizer que eles
articulam alguns elementos dos campos da comunicação, do empresariado, das
universidades, do conhecimento científico e da política. Com isso, vão fazendo
malabares entre esses capitais, dando uma forma própria à sua atuação, a
depender de seus objetivos: defender valores, definir diretrizes na formulação
de uma política pública, formar quadros políticos, incidir sobre processos
eleitorais, entre outros.
É
importante falar, no entanto, que os think tanks não são exclusivos da direita
liberal. Eles são uma forma política cuja efetividade possivelmente tem a ver
com o neoliberalismo. Mas existem think tanks de esquerda, existem think tanks
conservadores, existem think tanks de grupos religiosos etc. Pode haver think
tanks de várias correntes, porque são uma forma política.
Lembro
que o falecido professor Reginaldo de Moraes, que me orientou no início do
doutorado na Unicamp, dizia que, se a forma política do partido começou a se
consolidar no decorrer do século 19 e foi efetiva para o regime político no
século 20, a forma think tank vai se articulando ao longo do século 20 e parece
que se torna muito efetiva já no início do século 21.
Podemos
afirmar que, na especificidade do campo liberal latino-americano, a
consolidação dos think tanks situa-se nos anos 1980, mas dá um salto
qualitativo e quantitativo a partir dos anos 2000. Em ambos os momentos,
verifica-se a importância desses institutos e de suas articulações
internacionais. Daí meu interesse por estudar a FIL.
Uma
série de estudos anteriores mostra que a rede estadunidense Atlas Network,
criada em 1981, teve e tem um papel muito importante na constelação dos think
tanks liberais em nível internacional, apoiando a criação de think tanks,
vinculando-os e unificando as pautas em defesa do liberalismo. A América Latina
foi um cenário-chave da expansão dessa rede internacional liberal. Numerosos
think tanks nasceram em países como Chile, Argentina, Brasil, Peru, Equador,
Guatemala, Venezuela, México, e alguns desses ainda estão ativos.
No
começo dos anos 2000, é possível verificar a renovação dessa trama defensora do
liberalismo, com a incorporação de novos think tanks e a ampliação das redes de
articulação. Nesse contexto, nasce em Madri (capital da Espanha) a FIL,
presidida por Mario Vargas Llosa até sua morte.
O que
mostram os estudos como o do livro é que a explosão de think tanks liberais no
começo do século 21 está atrelada a uma resposta sobre os processos populares
de impugnação do neoliberalismo e ao surgimento do ciclo de governos
progressistas em alguns países importantes da região: Venezuela, Brasil,
Argentina, Bolívia, Paraguai, Equador. Meu interesse pela FIL surge da busca
por compreender o papel dos interesses espanhóis nesse tipo de articulação
atuante na América Latina, historicamente organizada desde os Estados Unidos.
Além
dos vínculos coloniais com a maioria dos países da região, é importante
destacar que o capital espanhol foi um dos grandes beneficiários das reformas
neoliberais e principalmente das privatizações dos anos 1990, com a presença de
grandes corporações como Repsol, Telefónica, Red Electrica España, Banco
Santander, BBVA.
No
livro, buscou-se entender a atuação dessa rede de defesa de ideais liberais
para fazer frente às mudanças do contexto político regional, vistas por essas
pessoas como uma ameaça à ordem regional. Isso, porém, não apenas dependeu dos
interesses externos à região, mas de uma articulação que vincula intelectuais,
empresários, ex-mandatários, jornalistas, acadêmicos, escritores, ativistas e
think-tankers da Espanha, dos Estados Unidos e da América Latina.
·
Essa forma é mais efetiva para a direita pelo poder
econômico e pelas relações que mobilizam, por exemplo, com os grandes meios de
comunicação?
Em
parte tem a ver com isso. Os liberais, imbuídos da defesa do capitalismo,
conseguem mobilizar o grande empresariado, que dá apoio material, sim. Mas,
também, porque trabalham sobre uma razão política que é a incidência e não
necessariamente a formação.
Podemos
dizer que eles precisam manter um senso comum que é dominante, que já está a
um, dois, três passos à frente de outras formas de entender o mundo, em
disputa. E porque eles não trabalham necessariamente sobre o livre dissenso, em
tentar criar sujeitos livres de pensamento.
·
Qual a diferença entre a incidência e a formação
política?
Se,
desde a perspectiva da formação política, o desafio é que os povos possam
escrever a sua própria história e participar dos processos políticos
incorporando diversas formas de compreender e atuar no seu presente, com esse
tipo de aparelhos centrados na incidência e na persuasão, a ação política
depende da mobilização e da efetividade de enquadramentos prontos para serem
usados. Trata-se de um mercado de ideias. Na formação, há uma lógica que se
afasta do mercado das ideias para trabalhar a partir do diálogo e da própria
experiência do povo, da sua realidade concreta. Os think tanks prescindem
disso.
Eu
considero que a forma think tank, independentemente do campo político a que
esteja vinculada, trabalha principalmente na lógica da incidência, e essa
forma, por sua vez, une-se à razão neoliberal, trabalhando a partir da oferta
de uma série de ideias ou enquadramentos limitados e prontos para serem
consumidos. Assim, a sociedade se divide entre os bons e os maus, entre os
comunistas e os anticomunistas.
A
construção política vai além disso, tem a ver com os próprios desejos do povo,
e isso se faz com um diálogo concreto e que se desenrola no território, com as
próprias experiências da população, e não de forma persuasiva.
·
Como você observa, a FIL diz que surge para “defender o
elementar perante a irracionalidade”, em alusão ao avanço dos governos
progressistas na América Latina. Diante disso, como você avalia a construção
desse inimigo pela FIL e por outras organizações liberais? Qual a importância
das bandeiras do anticomunismo e do antipopulismo?
A
gramática política centrada na ideia do anticomunismo foi chave durante a
Guerra Fria tanto na disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética como
para as ditaduras militares que se instauraram na América Latina. A Doutrina de
Segurança Nacional, coluna vertebral das ditaduras latino-americanas dos anos
1960 e 1970, traz a ideia de um inimigo comunista que estaria se infiltrando e
precisava ser erradicado, um assunto de segurança nacional e internacional.
Às
vezes entendemos que, com o fim daquele confronto entre os norte-americanos e
os soviéticos e das ditaduras, isso teria acabado. De fato, acabou. Mas isso
não significou um completo “virar a página”, segundo mostram os planos de
segurança hemisférica para a América Latina, vindos dos Estados Unidos no final
da Guerra Fria. A ideia do “perigo vermelho” fica em um estado de latência,
servindo a outros propósitos e à apresentação de novos perigos, como o
narcoterrorismo, os movimentos camponeses, o indigenismo, as migrações. Essa
ideia-força, porém, volta a se erguer de forma pungente nos anos 2000, atrelada
à ofensiva contra o processo de impugnação do neoliberalismo e à consolidação
do ciclo de governos progressistas em parte da região.
Vargas
Llosa era uma figura que exemplificava esse processo histórico. Após ganhar
destaque como um dos grandes escritores latino-americanos do boom do realismo
mágico, já nos anos 70 ele se afastou do apoio ao processo revolucionário
cubano, colocando-se como um ator anticastrista, abraçou o neoliberalismo e,
graças ao apoio de uma vasta rede de think tanks liberais, se converteu em uma
referência na defesa do liberalismo no mundo.
Diante
da tentativa falida de alcançar a presidência do Peru, em 1990, Vargas Llosa se
radica na Espanha, onde se transforma em uma reconhecida referência cultural na
defesa dos valores e princípios do liberalismo. Isso devido ao apoio encontrado
entre as fileiras do Partido Popular da Espanha, comandado por José María
Aznar, e ao impulso dado por uma vasta rede de think tanks liberais que hoje em
dia contam com um alcance mundial.
A
recuperação dessa gramática anticomunista e o avanço das direitas na
atualidade, inevitavelmente, têm de nos fazer refletir sobre a insuficiência
dos processos de memória, verdade e justiça, importantes para a construção da
democracia. Contudo, mesmo em lugares onde, sim, houve esse processo, é
possível a aparição de figuras como Milei [Javier Milei, atual presidente da
Argentina]. Evidentemente, os processos de memória, verdade e justiça precisam
avançar mais.
·
Falando de Milei e de outras lideranças da extrema
direita, qual o papel dos think tanks liberais na emergência desses quadros?
No caso
de Milei, ao longo da campanha e até hoje, ele trata Alberto Benegas Lynch
(filho) como seu herói político. Benegas Lynch (filho) é o criador da Eseade
[Escuela Superior de Economía y Administración de Empresas], um think tank
voltado à formação de economistas e administradores de empresas, além de ser
uma escola de negócios, fundada no final dos anos 1970, em Buenos Aires
[capital argentina]. No entanto foi o pai dele quem, no final dos anos 1950,
criou um dos primeiros think tanks liberais da América Latina, uma entidade
fundamental para estabelecer os primeiros contatos com e organizar uma série de
viagens e intercâmbios envolvendo figuras como o economista austríaco Ludwig
Von Mises e, posteriormente, Friedrich Hayek.
Assim,
Milei apoia-se em alguém que cria um dos primeiros think tanks da região e que
é filho de alguém fundamental para a divulgação do pensamento neoliberal na
América Latina. Ou seja, não há uma completa novidade nessa extrema direita. O
que vimos foi que, em um processo de crise, também da hegemonia liberal, essas
pessoas foram ao extremo. Há princípios de uma postura antissistema nessas
figuras que trazem novidades importantes, mas que não são uma completa
novidade.
Podemos
determinar a historicidade do surgimento de uma série de condições que serviram
de fermento para Milei ou para [o ex-presidente Jair] Bolsonaro. O chamado
bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita – dos
militares, do fundamentalismo religioso, dos liberais, dos ruralistas, dos
armamentistas etc. Ou seja, isso que alimentou Bolsonaro em 2018 não é uma
novidade. Porque, por exemplo, a linha do ex-ministro [da Economia Paulo]
Guedes nos leva para trás, aos Chicago Boys [referência a um grupo de
economistas pioneiros do pensamento neoliberal, que formularam, por exemplo, a
política econômica da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile]. O mesmo
poderíamos fazer se observamos a trajetória do entorno militar ou ruralista.
Ate que ponto essa extrema direita é uma novidade?
A forma
extrema como as coisas estão sendo levadas representa, sim, uma novidade, mas
no livro eu termino com uma anedota. O ex-presidente argentino Mauricio Macri,
que alguns analistas consideram uma direita “menos extrema” que Milei, se
encontra com Vargas Llosa, que o recrimina. O governo Macri já estava em crise
e era quase evidente que o então mandatário não seria reeleito. A questão
girava em torno do gradualismo, da velocidade do programa neoliberal, não em
torno da mudança desse programa. Tratava-se de saber se esse programa tinha que
pisar no acelerador e ir para cima dos direitos do povo argentino ou se tinha
que se fazer um pouco mais moderado e fingir ser democrático.
Segundo
penso, o que muda de um para o outro é fingir ou não fingir ser democrático, o
que não significa que Macri seja mais democrático que Milei. No caso da
Argentina, veremos figuras importantes do governo Macri dentro do governo
Milei. E Macri é um produto também da atuação de organizações próximas da FIL.
A promoção de Macri também ocorre muito em uma chave internacional via esses
institutos. Milei é desbocado, é descompensado na forma como se expressa. Mas a
verdade é que, no governo Milei, a estrutura do aparelho econômico e do
aparelho de segurança, dois eixos fundamentais de um Estado liberal, vêm do
governo Macri. Assim como a referência política principal de Milei é uma
família fundamental na estrutura desses aparelhos em nível regional.
Os
think tanks trabalham não sobre a visibilidade de si mesmos e, sim, criando e
divulgando enquadramentos e as figuras que os defendem. Macri ou Milei em parte
são produtos desses empreendimentos. María Corina Machado, na Venezuela,
também. Os think tanks e seus think-tankers, porém, não buscam fama, nem votos.
Por exemplo, Alex Chafuen é um economista argentino naturalizado estadunidense
e, durante 30 anos, o diretor da Atlas Network, a maior rede internacional
liberal do mundo. Na Argentina, contudo, não passa um completo desconhecido.
Alberto Benegas Lynch (filho) começou a ser conhecido na Argentina depois que
Milei passou a falar sobre ele. Do contrário, ninguém, a não ser os que
estudaram isso ou os próprios liberais, saberia quem Lynch era.
·
Você poderia falar mais sobre o papel da Espanha e dos
Estados Unidos na FIL?
O lugar
dos Estados Unidos no controle do seu “quintal”, a América Latina, vem desde a
Doutrina Monroe, de 1823, sob o mote “América para os americanos”. Os EUA
posicionam-se como uma espécie de tutor de nossa região, o que se repete no
combate contra o inimigo comunista, contra a União Soviética.
Uma das
transformações ocorridas após o fim da Guerra Fria na América Latina é o
processo de transição das ditaduras para as democracias burguesas e restritas.
No caso da Europa, a saída dos fascismos consolida outras burguesias nacionais
mais ligadas a interesses liberais. Claro, aí há uma historicidade, não é o
mesmo ser burguês na Europa e ser burguês na América Latina. Há uma diferença
sobre onde está o botão para apertar e tomar decisões.
Assim,
ao histórico colonial que nunca se desagregou na região, une-se, nos anos 1980
e 1990, o desenvolvimento de um programa neoliberal de restrição das funções do
Estado, em um projeto de Estado voltado principalmente para garantir a
propriedade individual, a extração de recursos naturais, a livre circulação de
mercadorias e o controle sobre a população.
A
burguesia espanhola, apoiada nessa relação cultural que mantém com a América
Latina, começa a ser, de alguma forma, a “embaixadora” dos interesses europeus
na América Latina, em consonância com os Estados Unidos, que, digamos, é quem
domina não só o território latino-americano como também o território europeu
ocidental e principalmente o sul da Europa. A saída do fascismo, do franquismo,
da Espanha também está vinculada, como no caso da América Latina, à construção
de uma série de democracias burguesas e restritas, sob o controle do capital
financeiro, que facilitaram, por essa relação já desigual entre a Europa e a
América Latina, essa forma “embaixadora” da Europa como um segundo lugar no
domínio sobre a região.
Poderíamos
dizer que, se os Estados Unidos eram o principal investidor, no sentido de que
a América Latina recebia principalmente capital norte-americano no processo de
privatização e destruição do Estado, o segundo país nesse processo era a
Espanha, como representante da Europa. O capital espanhol, produto dessa
burguesia que se fortalece no processo de transição do fascismo para as
democracias restritas, será o principal beneficiário das privatizações na
América Latina, manifestando um forte interesse em preservar essa ordem na
região.
A
ocorrência do processo de impugnação do neoliberalismo e de ciclos de governos
progressistas que colocam em questão os interesses do Norte Global, seja dos
Estados Unidos, seja da Espanha, e que colocam em questão as privatizações – em
alguns casos, esse processo até culmina na nacionalização de empresas de
setores estratégicos privatizadas nos anos 1990 – faz com que se consiga
fortalecer esses vínculos atlânticos para por um freio às transformações na
América Latina.
Fonte:
PorLiana Coll, no Jornal da Unicamp

Nenhum comentário:
Postar um comentário