terça-feira, 5 de março de 2024

‘Questão do racismo tem a ver com a sobrevivência do capitalismo’, diz intelectual negra de MG

“A despeito da rigidez da estrutura de dominação, eu sou uma mulher de muita esperança.” É assim que a jornalista, cientista política, ativista e intelectual de Minas Gerais Diva Moreira escolheu se apresentar. Há 20 anos, Diva pesquisa e escreve sobre a temática da reparação. Ainda em 2024, no mês de novembro, ela pretende fazer o lançamento público de seu próximo livro Justiça racial e reparações: o caminho para a democracia no Brasil.

“Nós vivemos uma situação social, econômica, habitacional e nutricional, infelizmente, muito semelhante à que vivíamos no período da escravização. Ao longo da república, o país não teve o interesse de nos incluir, de nos considerar povo, cidadãs”, avalia.

Com a proximidade do Dia Internacional de Luta das Mulheres, comemorado anualmente no dia 8 de março, ela fala ao Brasil de Fato MG sobre os desafios enfrentados pelas mulheres negras, a persistência das estruturas patriarcal e racista na sociedade e a necessidade da luta pelo poder.

>>> Leia a entrevista completa:

•        Quais são os principais desafios enfrentados pelas mulheres negras na sociedade brasileira?

Diva Moreira: Quando falamos das mulheres pobres, são desafios básicos, que o nosso povo enfrenta desde a escravidão, como sobreviver, ter alimentação de qualidade, ter uma moradia que preste. Nós vivemos uma situação social, econômica, habitacional e nutricional, infelizmente, muito semelhante a que vivíamos no período da escravização. Ao longo da república, o país não teve o interesse de nos incluir, de nos considerar povo, cidadãs.

As mulheres negras foram retiradas dos grandes centros urbanos. Eu tenho usado o conceito de ‘desterro’. É como se dissessem ‘Saiam daqui. Nós não queremos vocês’. Enfrentamos questões muito básicas, como a fome, mulheres sem absorventes durante seu período menstrual e a falta de uma casa que não vá desmoronar no próximo período de chuvas. É tudo tão elementar, é tão simples.

Nós, mulheres negras, precisamos conquistar poder político, econômico, social

O inominável [ex-presidente Jair Bolsonaro] chegou a perguntar como é que a gente gosta de morar nesses lugares. Ora, esses lugares foram os únicos a nós reservados, porque até mesmo das favelas foram nos retirando.

Por exemplo, antigamente, em Belo Horizonte, havia favelas nos bairros Santo Antônio e São Pedro e o povo foi retirado desses territórios. Só não conseguiram retirar totalmente do Morro do Papagaio porque em outro momento histórico, em que nós, mulheres negras, homens negros, junto com os nossos aliados brancos progressistas, já estávamos organizados, de forma a não permitir mais que aquela população saísse dali.

Quando isso acontece, somos obrigadas a ir para lugares mais deteriorados e distantes, o que traz outra questão, a do transporte. São mulheres que fazem serviços pesados e que ficam quase 4 horas por dia no transporte coletivo, que deveria ser público, mas não é.

O sistema não pode deixar de ser racista porque ele depende  disso para sobreviver

Nós, mulheres negras, precisamos conquistar poder político, poder econômico, poder social e capacidade de mobilizar. A gente vive em uma situação que eu acho uma lástima. O Brasil perde a maior parte do seu povo e só celebra esse povo durante o período do carnaval, quando todo mundo fica encantado com a pujança, com a capacidade de criar, de inovar, de transformar a nossa tragédia em estética, em beleza. Mas, ao longo do ano isso não acontece.

•        No último período tivemos avanços? Quais são as principais bandeiras de luta das mulheres negras na atualidade?

Como nós não temos poder, as nossas demandas não são acolhidas. Veja só, eu estou com um panfleto recente que fala sobre a luta “pró-creches”. Quando eu vi esse papel eu fiquei chocada e resolvi inclusive deixá-lo separado, porque eu participei de lutas pró-creche há quase 40 anos.

Então, a gente vê como essa sociedade não tem o menor interesse por seu povo, não constrói cidadania, não promove direitos elementares. A reforma agrária, por exemplo, é um pleito desde sempre e nunca aconteceu no Brasil. A consequência disso é que um dos mais graves problemas que temos é com a alimentação e sabemos quem passa fome neste país. Sem reforma agrária a gente não resolve nem 50% dos nossos problemas.

Eu não acredito que teremos democracia enquanto a população negra continuar na margem

Esse entupimento nas cidades e a “urbanização enlouquecida” têm a ver com isso. A população não quer sair do campo porque pensa “eu quero conhecer São Paulo e andar na Avenida Paulista”, mas principalmente, por falta de acesso à terra e a condições dignas.

Além disso, tudo de bom que acontece com a gente, que nos beneficia, quando muda o governo, é desconstruído com o apoio da mídia comercial, que é contra nós. Quem não tem poder não controla os meios de comunicação de massas. As nossas rádios comunitárias, que estão nas favelas e poderiam construir cidadania, e que são majoritariamente organizadas por mulheres e homens negros, não têm apoio nenhum.

É preciso mudar esse país estruturalmente e institucionalmente. É na base. Eu terei morrido, mas eu vou guardar esse papelzinho [panfleto pró-creche] para que, daqui a 30 anos, quem pegá-lo possa dizer “felizmente, isso não é mais necessário”. Tomara que isso aconteça, mas para acontecer temos que fazer mudanças enormes em nosso país, gigantescas, de todas as naturezas.

•        Diante desse contexto, qual é a importância da reparação?

A ideia de reparação é milenar e significa que, quando alguém ou uma comunidade sofre um dano ou uma perversidade, ela deve ser ressarcida. Simples assim e isso está na Bíblia, no Antigo Testamento, eu não estou inventando nada. Isso aconteceu com os judeus, por exemplo. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi obrigada a reparar os danos causados às famílias judaicas.

Mas tudo para nós é muito difícil, porque a questão do racismo tem a ver com a sobrevivência do capitalismo. O sistema não pode deixar de ser racista porque ele depende disso para sobreviver. Desde sempre, fomos nós que sustentamos a sociedade.

Em meu livro, eu defendo as reparações a partir da história, que precisa ser contada. Os judeus foram reparados porque tinham uma história anterior. Se não contar a história, a população, a sociedade brasileira, os políticos e a mídia vão dizer “a Diva enlouqueceu! Reparar o quê? Já passou”. O problema é que as consequências do que passou estão aí até hoje.

Eu não acredito que teremos democracia enquanto a população negra continuar na margem, na miséria, sem voz, sem poder político, sem poder econômico, sem força social para transformar esse país.

No meu livro eu também desconstruo todas as mentiras que falaram sobre nós, que somos preguiçosos, que nosso trabalho é improdutivo e de baixa qualidade, por exemplo. Também queremos mostrar nossa capacidade, nossa resiliência e nossa criatividade. O samba, por exemplo, era um espaço de cultura, de sociabilidade, alegria e saúde mental. Eu também falo sobre isso.

 

       Diretora pede censura a livro sobre racismo em escola no Rio Grande do Sul

 

Vencedor do Prêmio Jabuti de 2021 de romance literário, o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, é alvo de polêmica em uma escola de Santa Cruz do Sul, cidade no estado do Rio Grande do Sul.

Na sexta (1º), a diretora da Escola Ernesto Alves, Janaina Venzon, classificou a obra como inadequada aos estudantes de ensino médio. Em vídeo postado em seu perfil do Instagram, Venzon lê trechos do livro.

“Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio. Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados para a escola. Prezamos pela educação dos nossos estudantes e não pela vulgaridade”, escreveu a diretora na legenda da postagem.

“Para mais uma informação, deixando claro: Os professores não escolheram esta obra literária. A escola não escolheu nenhuma obra literária. As obras literárias estão sendo escolhidas pelo Governo Federal. Desconheço o critério de escolha por parte do Governo, só penso que deveriam analisar antes, para depois enviar para as escolas trabalharem”, segue o texto.

O livro havia sido selecionado via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), programa que, junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), compra e distribui livros e materiais didáticos para professores e estudantes de escolas públicas de todo o país.

As editoras se inscrevem para participar do PNLD em prazos definidos pelo FNDE e divulgados em edital. As obras inscritas passam por triagem técnica, física e pedagógica feita por especialistas. Os professores devem participar da análise e escolha dos livros, e o registro das obras escolhidas é feito pelo diretor da escola.

O vereador Rodrigo Rabuske (PRD), de Santa Cruz do Sul, também divulgou um vídeo em suas redes sociais na sexta (1º) em que repudia a obra.

Contatada, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) do Rio Grande do Sul diz que “ninguém da coordenadoria regional de educação mandou recolher os livros”.

Em nota oficial, informa que “a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas. Elas integram um catálogo previsto no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC).”

O Ministério da Educação também enviou nota oficial. “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é uma relevante política do Ministério da Educação com mais de 85 anos de existência e com adesão de mais de 95% das redes de ensino do Brasil. A permanência no programa é voluntária, de acordo com a legislação, em atendimento a um dos princípios basilares do PNLD, que é o respeito à autonomia das redes e escolas”, começa o texto.

“A aquisição das obras se dá por meio de um chamamento público, de forma isonômica e transparente. Essas obras são avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se inscrito no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas.”

“O Avesso da Pele” conta a história de Pedro, um rapaz de 22 anos, que escreve em primeira pessoa a “verdade inventada” sobre o seu pai, Henrique, professor de literatura assassinado pela polícia em Porto Alegre. A obra joga luz sobre a fratura íntima causada pelo racismo.

A Companhia das Letras, que publicou “O Avesso da Pele”, disse repudiar qualquer ato de censura e fez uma postagem em seu perfil do Instagram. Segundo o texto, o livro “foi aprovado por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e língua portuguesa juntamente com outros 530 títulos”.

“Para chegar ao colégio em questão, ainda precisou passar por aprovação da própria diretora, que assinou o documento de ‘ata de escolha’ da obra e agora contesta o conteúdo do livro. Esses dados são transparentes e públicos”, diz a legenda do post.

“A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. O que se destaca em ‘O Avesso da Pele’ não é uma cena, tampouco a linguagem, mas sim a contundente denúncia do racismo que se imiscui em todas as nossas relações, até as mais íntimas.”

O autor da obra também se manifestou em suas redes. “Após repercussão e de uma moção de um vereador, a 6° CRE mandou recolher os exemplares das escolas e bibliotecas até que governo federal se manifeste (…). As distorções e fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”, escreveu.

Jeferson Tenório também é autor de “O Beijo na Parede” e “Estela sem Deus”, além de escritor e professor de literatura. Em 2022, ele usou suas redes sociais para dizer que vinha sofrendo ameaças de morte após anunciar uma palestra que faria em uma escola de Salvador. Segundo ele, se trataria de uma represália a “O Avesso da Pele”.

 

Fonte: Brasil de Fato/FolhaPress

 

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