'Podemos estar causando nossa própria
extinção': por que sul-coreanas não estão tendo filhos?
Numa tarde de
terça-feira chuvosa, Yejin prepara o almoço para as amigas em seu apartamento,
onde mora sozinha, nos arredores de Seul, feliz e solteira.
Enquanto comem, uma
delas mostra em seu telefone um meme popular com um dinossauro que diz “tenha
cuidado”. E "não se deixe extinguir como nós."
Elas riem.
“É engraçado, mas é
sombrio, porque sabemos que podemos estar causando a nossa própria extinção”,
diz Yejin, de 30 anos, produtora de televisão.
Nem ela nem as amigas
pretendem ter filhos. Elas fazem parte de um grupo crescente de mulheres que
escolhem uma vida sem eles.
A Coreia do Sul tem
a taxa de natalidade mais baixa do mundo, que continua caindo, batendo o
próprio recorde surpreendentemente baixo ano após ano.
E os números
divulgados na última quarta-feira (28/2) mostram que essa caiu mais 8% em 2023,
para 0,72.
Esse é o número de
filhos que se espera que uma mulher tenha durante a vida. Para que uma
população se mantenha estável, ele deveria ser 2,1.
Se a tendência
continuar, estima-se que a população da Coreia do Sul cairá pela metade até o
ano 2100.
·
Uma 'emergência
nacional'
Globalmente, os países
desenvolvidos assistem a uma queda de suas taxas de natalidade, mas nenhum
deles de forma tão extrema quanto a Coreia do Sul.
E as projeções não são
boas.
Dentro de 50 anos, o
número de pessoas em idade ativa terá caído pela metade, o número de cidadãos
elegíveis para o serviço militar obrigatório terá reduzido em 58% e quase
metade da população terá mais de 65 anos.
Os números soam tão
mal para a economia, o fundo de pensões e a segurança do país, que os políticos
declararam tratar-se de uma “emergência nacional”.
Durante quase 20 anos,
sucessivos governos investiram dinheiro na questão - 379,8 bilhões de wons (R$
1,4 bilhões).
Casais que têm filhos
recebem muito dinheiro. Desde quantias mensais, até moradia subsidiada e táxis
gratuitos. Contas hospitalares e até tratamentos de fertilização in vitro são
cobertos, embora apenas para os casados.
Mas os incentivos
financeiros não deram resultado, levando a classe política a debater soluções
mais "criativas", como contratar amas do Sudeste Asiático e pagá-las
abaixo do salário mínimo, e isentar do serviço militar os homens que tiverem três
filhos antes de completarem 30 anos.
Não é de surpreender
que os responsáveis por políticas públicas tenham sido acusados de não ouvir os jovens -
especialmente as mulheres - sobre suas necessidades.
Ao longo do ano
passado, viajamos por todo o país para conversar com mulheres e entender as
razões por trás da decisão de não ter filhos.
Quando Yejin decidiu
morar sozinha, aos 20 e poucos anos, ela desafiou os padrões sociais. Na
Coreia, viver sozinha é considerado uma fase passageira.
Então, há cinco anos,
ela decidiu não se casar e não ter filhos.
“É difícil encontrar
um homem para namorar na Coreia – alguém que compartilhe as tarefas e os
cuidados com os filhos de forma igualitária”, ela me diz. “E as mulheres que
têm filhos sozinhas não são julgadas com gentileza”.
Em 2022, apenas 2% dos
nascimentos ocorreram fora do casamento na Coreia do Sul.
·
‘Um ciclo perpétuo de
trabalho’
Yejin optou por focar
em sua carreira na televisão, o que, ela argumenta, não lhe dá tempo suficiente
para criar um filho. As horas de trabalho coreanas são notoriamente longas.
Yejin trabalha em
horário tradicional, das 9h às 18h (o equivalente coreano das 9h às 17h), mas
diz que geralmente não sai do escritório antes das 20h e que ainda faz horas
extras. Ao chegar em casa, só resta tempo para limpar a casa ou fazer
exercícios antes de dormir.
“Eu amo meu trabalho,
ele me traz muita realização”, diz ela. “Mas trabalhar na Coreia é difícil,
você está preso em um ciclo perpétuo de trabalho.”
Yejin diz que também
há pressão para estudar nas horas vagas, para crescer no trabalho: "Os
coreanos têm essa mentalidade de que, se você não trabalhar continuamente no
autoaperfeiçoamento, ficará para trás e se tornará um fracasso. Esse medo nos
faz trabalhar duas vezes mais."
“Às vezes, nos fins de
semana, vou tomar soro intravenoso, só para ter energia suficiente para voltar
ao trabalho na segunda-feira”, acrescenta ela casualmente, como se isso fosse
uma atividade normal de fim de semana.
Ela também compartilha
o mesmo medo de todas as mulheres com quem conversei: que se parar para ter
filhos, talvez não consiga voltar.
“Há uma pressão
implícita das empresas de que, quando tivermos filhos, devemos deixar os nossos
empregos”, diz ela. Ela viu isso acontecer com a irmã e suas duas
apresentadores de TV preferidas.
·
'Eu sei demais'
Uma mulher de 28 anos,
que trabalhou em RH, disse ter visto pessoas serem forçadas a deixar seus
empregos ou preteridas em promoções após tirarem licença maternidade, o que foi
suficiente para convencê-la a nunca ter filhos.
Homens e mulheres têm
direito a um ano de licença durante os primeiros oito anos de vida dos filhos.
Mas em 2022, apenas 7% dos novos pais aproveitaram parte da licença, em
comparação com 70% das novas mães.
As mulheres coreanas
são as mais qualificadas dos países da OCDE e, ainda assim, o país tem as
piores disparidades salariais entre homens e mulheres, além de uma proporção
superior à média de mulheres desempregadas em comparação com os homens.
Pesquisadores dizem
que isso prova que elas estão diante de uma escolha: ter uma carreira ou ter
uma família. E cada vez mais elas estão optando pela carreira.
Conheci Stella Shin em
um clube de atividades após a escola, onde ela ensina inglês para crianças de 5
anos.
"Veja as
crianças. Elas são tão fofas", disse. Mas, aos 39 anos, Stella não tem
filhos. Não foi uma decisão ativa, diz ela.
Ela está casada há
seis anos e ela e o marido queriam um filho, mas estavam tão ocupados
trabalhando e se divertindo que o tempo passou. E ela aceitou que seu estilo de
vida torna um filho “impossível”.
“As mães precisam
abandonar o trabalho para cuidar dos filhos em tempo integral durante os
primeiros dois anos, e isso me deixaria muito deprimida”, disse ela. “Eu amo
minha carreira e cuidar de mim mesma.”
Nas horas vagas,
Stella frequenta aulas de dança K-pop com um grupo de mulheres mais velhas.
A expectativa de que
mulheres fiquem dois a três anos afastadas do trabalho ao ter um filho é comum.
Quando perguntei a Stella se poderia dividir a licença parental com o marido,
ela me lançou um olhar e disse:
“É como quando eu faço
ele lavar a louça e ele não faz direito, eu não poderia contar com ele”.
Mesmo que quisesse
desistir do trabalho ou conciliar família e carreira, ela disse que não tinha
condições de o fazer porque o custo da moradia é muito alto.
Mais da metade da
população vive na capital Seul ou nos arredores, onde está a grande maioria das
oportunidades, criando uma enorme pressão sobre os apartamentos e os recursos.
Stella e o seu marido foram gradualmente empurrados para cada vez mais longe da
capital, para as províncias vizinhas, e ainda não são capazes de comprar a
própria casa.
A taxa de natalidade
de Seul caiu para 0,55, e é a mais baixa do país.
Além disso, há o custo
da educação privada. Embora a habitação seja um problema no mundo todo, é a
educação que faz da Coreia um caso verdadeiramente único.
A partir dos quatro
anos, as crianças são matriculadas em uma série de aulas extracurriculares
caras – desde matemática e inglês até música e taekwondo.
A prática é tão
difundida que optar pela exclusão é visto como um passo para o fracasso do seu
filho, uma noção inconcebível em um país hipercompetitivo. E isso tornou a
Coreia do Sul o país mais caro do mundo para se criar um filho.
Um estudo de 2022
descobriu que apenas 2% dos pais não pagaram aulas particulares, e 94% disseram
ser um peso nas finanças.
Como professora em um
desses cursinhos, Stella entende muito bem o fardo. Ela vê os pais gastarem até
R$ 4.500 por filho por mês, muitos deles sem condições.
“Mas sem essas aulas,
as crianças ficam para trás”, disse ela. “Quando estou perto das crianças,
quero ter um, mas sei demais (sobre o assunto).”
Para alguns, este
sistema de ensino privado excessivo impacta para além do custo.
“Minji” queria
compartilhar sua experiência, mas não publicamente. Ela não está pronta para
que seus pais saibam que não terá filhos. “Eles ficarão muito chocados e
decepcionados”, disse ela, da cidade costeira de Busan, onde mora com o marido.
Minji confidenciou que
sua infância e seus 20 anos foram infelizes.
“Passei a vida inteira
estudando”, disse ela. Primeiro para entrar em uma boa universidade, depois
para os exames para o funcionalismo público e depois para conseguir o primeiro
emprego aos 28 anos.
Ela lembra da infância
passada em salas de aula até tarde da noite, estudando matemática, algo que ela detestava e era ruim, enquanto sonhava em ser
artista.
“Tive que competir
incessantemente, não para realizar meus sonhos, apenas para viver uma vida
medíocre”, disse ela. "Foi tão desgastante."
Só agora, aos 32 anos,
Minji se sente livre e capaz de se divertir. Ela adora viajar e está aprendendo
a mergulhar.
Mas o que mais pesa em
sua decisão é que ela não quer fazer com que uma criança passe pelo que passou.
“A Coreia não é um
lugar onde as crianças possam viver felizes”, concluiu ela. O marido dela
gostaria de ter um filho e eles já brigaram muito por causa disso, mas ele
passou a aceitar a vontade dela. Ocasionalmente, o coração vacila, ela admite,
mas depois lembra os motivos por trás da decisão.
·
Um fenômeno social
Na cidade de Daejon,
Jungyeon Chun está no que ela chama de “casamento com pais solteiros”. Depois
de pegar a filha de 7 anos e o filho de 4 na escola, ela percorre os
playgrounds próximos, passando o tempo até o marido voltar do trabalho. Ele
raramente chega em casa antes da hora de as crianças dormirem.
“Não senti que estava
tomando uma grande decisão ao ter filhos, pensei que seria capaz de voltar ao
trabalho muito rapidamente”, disse ela.
Mas logo as pressões
sociais e financeiras surgiram e, para sua surpresa, ela se viu sendo mãe
sozinha. O marido, sindicalista, não ajudava nos cuidados dos filhos nem nas
tarefas domésticas.
“Fiquei com tanta
raiva”, disse ela. “Fui bem educada e fui ensinada que as mulheres eram iguais,
por isso não podia aceitar isso.”
Isso está no cerne do
problema.
Ao longo dos últimos
50 anos, a economia da Coreia do Sul desenvolveu-se a uma velocidade
vertiginosa, impulsionando as mulheres para o ensino superior e para a força de
trabalho e expandindo suas ambições. Mas os papéis de esposa e mãe não
evoluíram no mesmo ritmo.
Frustrada, Jungyeon
começou a observar outras mães. "Eu vi ‘Ah, minha amiga que está criando
um filho também está deprimida e minha amiga do outro lado da rua também está
deprimida' e eu pensei, 'isso é um fenômeno social'."
Ela começou a rabiscar
suas experiências e publicá-las online. “As histórias estavam saindo de mim”,
disse ela. Seu webtoon se tornou um grande sucesso, à medida que mulheres de
todo o país se relacionavam com seu trabalho, e Jungyeon já tem três livros de
histórias em quadrinhos publicadas.
Agora ela diz que já
passou da fase da raiva e do arrependimento. “Eu só queria saber mais sobre a
realidade da criação dos filhos e o quanto se espera que as mães façam”, disse
ela. “A razão pela qual as mulheres não têm filhos hoje é porque elas têm coragem
de falar sobre isso.”
Mas Jungyeon fica
triste, diz, por as mulheres estarem sendo negadas a alegria da maternidade por
causa da “situação trágica a que serão forçadas”.
Minji, no entanto, diz
que está grata pelo poder de escolha. "Somos a primeira geração que pode
escolher. Antes, tínhamos que ter filhos. E então optamos por não ter filhos
porque podemos."
·
'Eu teria 10 filhos se
pudesse'
De volta ao
apartamento de Yejin, depois do almoço, suas amigas estão discutindo seus
livros e outras coisas.
Cansada da vida na
Coreia, Yejin decidiu partir para a Nova Zelândia. Ela acordou uma manhã com a
clareza de que ninguém a forçava a morar aqui.
Pesquisou quais países
tinham uma classificação elevada de igualdade de gênero, e a Nova Zelândia
surgiu como um claro vencedor. “É um lugar onde homens e mulheres recebem
salários iguais”, diz ela, quase incrédula, “Então estou partindo”.
Pergunto a Yejin e
suas amigas o que poderia convencê-las a mudar de ideia, se é que alguma coisa.
A resposta de Minsung
me surpreende. "Eu adoraria ter filhos. Teria 10 se pudesse." Então,
o que a impede, pergunto. A jovem de 27 anos me diz que é bissexual e tem um
parceira do mesmo sexo.
O casamento entre
pessoas do mesmo sexo é ilegal na Coreia do Sul, e as mulheres solteiras
geralmente não têm permissão para usar doadores de esperma para engravidar.
“Espero que um dia
isso mude e eu possa me casar e ter filhos com a pessoa que amo”, diz ela.
As amigas apontam a
ironia, dada a situação demográfica precária da Coreia, de que algumas mulheres
que querem ser mães não possam ser.
Mas parece que os
políticos estão lentamente aceitando a profundidade e complexidade da crise.
Este mês, o presidente
da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, reconheceu que as tentativas de resolver o
problema "não funcionaram" e que a Coreia do Sul era "excessiva
e desnecessariamente competitiva".
E disse que seu
governo passaria a tratar a baixa taxa de natalidade como um "problema
estrutural" - embora ainda não se saiba como isso será traduzido em
políticas públicas.
No início deste mês,
conversei com Yejin da Nova Zelândia, onde está morando há três meses.
Ela comentou sobre a
nova vida e amigos, e sobre seu trabalho na cozinha de um pub. “Meu equilíbrio
entre vida profissional e pessoal está muito melhor”, disse ela, que agora pode
marcar de encontrar amigos durante a semana.
“Sinto-me muito mais
respeitada no trabalho e as pessoas julgam menos”, acrescentou ela.
"Não me dá
vontade de ir para casa."
Fonte: BBC News Mundo
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