Moscou supera choque da guerra e vive
renascimento ambíguo
Passados mais de dois
anos do início da Guerra da Ucrânia, Moscou absorveu o choque inicial do conflito,
driblou inconveniências cotidianas e vive um renascimento de sua vida social
--não sem ambiguidades inerentes às incertezas acerca do futuro.
Quando a reportagem
esteve mais recentemente na capital russa, em outubro de 2022, a guerra de
Vladimir Putin ainda tinha oito meses. Não fazia parte explícita do cotidiano,
e a população se adaptava a situações como a falta de produtos ocidentais e o
veto a viagens à Europa.
De lá para cá, muita
coisa mudou. Se a renda segue estagnada apesar de a economia ter sobrevivido
bem às sanções ocidentais, os principais impactos no dia a dia foram superados.
A prosaica falta de
Coca-Cola nos "produkti", mercadinhos onde todo russo médio faz suas
compras, deixou de ser suprida pelos duvidosos refrigerantes locais. A Coca
agora vem de lugares como Geórgia e Cazaquistão, assim como as estantes de cervejas
e vinhos estão lotadas de produtos importados.
As triangulações
garantem também gôndolas ricas em queijos e azeites europeus, como já acontecia
após as sanções iniciais decorrentes da anexação da Crimeia, em 2014. A oferta
de restaurantes parece maior do que nunca.
Há também o fato de
que a fuga avassaladora de marcas ocidentais, tão ao gosto dos russos mais
abastados, na realidade não se consumou inteiramente. Antes fechadas, as lojas
de grifes italianas como a MaxMara reabriram no mais famoso shopping da cidade,
o GUM, na praça Vermelha.
O fenômeno atestado
pela reportagem em outubro de 2022, com lojas desertas exibindo vitrines cheias
de produtos velhos, foi esvaziado. Em outros shoppings, como o Cholkovski,
distante 15 km a nordeste do centro da capital, marcas como a sul-coreana Samsung
e a francesa L'Occitane en Provence seguem firmes e fortes.
Aos poucos, carros e
celulares chineses tomam o lugar de modelos ocidentais, que dependem do mercado
ilegal de peças. Sites estrangeiros considerados indesejados são acessados por
VPN, e o sinal de GPS fica embaralhado perto de prédios do governo devido a
contramedidas eletrônicas antidrones.
Algumas empresas
ficaram, outras passaram a ter sócios russos e mudaram de nome --o caso mais
conhecido é a do ex-McDonald's, agora chamado Gostoso e Ponto. Segundo o
projeto Deixe a Rússia, da Escola de Economia de Kiev, 1.646 firmas ocidentais
ficaram na Rússia, enquanto só 373 saíram totalmente e 1.746 reduziram de
alguma forma sua pegada no país.
O turismo está
estagnado. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Econômico, em 2023 8,5
milhões de estrangeiros visitaram a Rússia, a maioria da aliada China. É um
crescimento marginal, de 3,5%, sobre 2022, e dificilmente a meta de chegar a 16
milhões de pessoas em 2030 será atingida.
Sinal da ausência de
dinheiro estrangeiro circulando, as antes onipresentes lojinhas de câmbio
paralelo desapareceram, e a troca de moeda agora ocorre quase só em bancos.
Por outro lado, o
turismo interno cresceu, na casa dos 35% no ano passado. E os russos seguem
viajando para onde são bem-vindos, com um crescimento de 50% em 2023, chegando
a 14 milhões de viagens. Sudeste Asiático, Egito e Emirados Árabes são destinos
preferenciais: é impossível andar pelo maior shopping do mundo, o Dubai Mall,
sem ouvir russo.
Também é perceptível
algo que não se via: um aumento da presença de africanos. Isso é resultado da
política de Putin para o continente, que aumentou de 2020 para cá em 150% a
oferta de bolsas a estudantes, chegando a cerca de 5.000 neste ano. O racismo veio
junto: um grupo de empresários da capital criou uma associação para combater o
emprego a africanos.
O desligamento da
Rússia do sistema financeiro global, simbolizada pela morte dos cartões de
crédito internacionais, gerou uma situação inusitada. Portadores de cartões de
bandeiras como Visa e Mastercard emitidos antes da guerra ganharam validade
eterna para o plástico que carregam, agora assumido por bancos locais.
Nesses dois anos,
houve desmonetização do país. Redes populares, como a dos cafés Chokoladnista,
têm menus em pequenos tablets na mesa em que é possível fazer o pedido e pagar
por ele com cartão.
"A gente tinha
medo de que poderia faltar algo, mas as coisas entraram rapidamente no eixo. Os
preços subiram um pouco, mas agora voltaram a um patamar normal", diz o
jornalista brasileiro Fábio Aleixo, que mora desde 2017 na cidade.
Com efeito,
restaurantes e bares parecem tão lotados quanto no "mês de ouro",
como comerciantes como o dono de restaurante italiano Micha apelidam o período
da Copa de 2018. A reportagem o havia visitado em 2022 e voltou à sua casa para
saber como andam as coisas.
"O movimento
subiu uns 40% desde 2022. Mas a guerra... É uma coisa terrível, e ninguém sabe
o que vai acontecer", diz ele, que pede para não ter o sobrenome
divulgado. Micha tem parentes na Ucrânia, e diz que alguns já morreram sob fogo
russo. Isso dito, voltou a votar em Putin na eleição presidencial, como fizera
em 2018. "Aqui, trabalhamos com a realidade", diz.
A angústia fica algo
longe da superfície. Um diplomata ocidental relata que a vida cultural da
cidade está em franca expansão. Há, claro, ofertas associadas ao
"Zeitgeist", o espírito do tempo: o Museu de História Contemporânea
da Rússia tem em destaque uma mostra celebrando os dez anos da volta da Crimeia
ao domínio de Moscou.
Para o cientista
político Andrei Kolesnikov, morador de Moscou e ligado ao Centro Carnegie, que
fechou na capital e segue operando em Berlim, tudo isso é uma bolha ilusória.
Em postagem recente no X, ele chamou a ideia de uma Rússia em festa de
"Barbielândia de Putin", em referência ao cenário idealizado da
boneca do filme homônimo.
A guerra foi
incorporada de forma discreta à paisagem. Antes havia alguns cartazes
homenageando os caídos na Ucrânia; agora, os "defensores da pátria"
são exaltados e há outdoors convidando jovens a assinar contratos como soldados
profissionais --até uma linha telefônica dedicada, o número 117, foi
estabelecida.
A melhoria no sistema
de defesa antiaérea fez com que a ameaça de drones ucranianos, que provocou
grande estragos em refinarias pelo país, ficasse para trás --até algum sucesso
ocorrer, claro. Como Micha diz de forma ambígua, "em Moscou se vive dia após
dia". Barbielândia ou não, a cidade segue em frente.
Ø
'Mundo não percebeu que Putin é um Hitler
com novas tecnologias', diz Nobel Svetlana Aleksiévitch
Exilada na Alemanha
desde setembro de 2020, a escritora belarussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora
do Nobel de Literatura em 2015, fala com um misto de melancolia e indignação
sobre a Guerra da Ucrânia e o crescente autoritarismo na região. Às vésperas de
Vladimir Putin se encaminhar para a reeleição, ela considera que o Ocidente não
faz o bastante para ajudar Kiev contra as tropas do presidente russo, a quem
chama de "Hitler com novas tecnologias".
No apartamento onde
mora, em Berlim, Svetlana, 75, disse à Folha que não tem esperanças de voltar
tão cedo a Minsk, capital da Belarus, onde foi criada —filha de pai belarusso e mãe ucraniana, nasceu na Ucrânia soviética. Ela se exilou para escapar da repressão do ditador Alexander Lukachenko, no poder
desde 1994. À época, a autora foi uma das líderes da oposição na sociedade civil que acusava o líder de fraudar as eleições para se perpetuar.
A autora coleciona uma
extensa obra de não ficção que documenta as experiências e emoções das pessoas
comuns durante o ápice, a crise e o colapso da União Soviética (1922-1991). Em
2015, levou o Nobel "pela sua escrita polifônica, um monumento ao sofrimento
e à coragem no nosso tempo", de acordo com a Academia Sueca, que concede a
premiação.
A mesa da sua sala
está repleta de manuscritos para um novo livro. Arrependida de ter clamado o
fim do homem soviético, Aleksiévitch agora documenta o fracasso do projeto
democrático desde a reabertura da URSS ao Ocidente.
>>>> A
seguir, a entrevista.
* Estamos às vésperas
da reeleição de Vladimir Putin. Como a sra. enxerga este momento? A Guerra na
Ucrânia pode ser determinante para o futuro político do presidente russo?
Svetlana Aleksiévitch
- Há diferentes versões do que está acontecendo, e não sei ao certo. Só posso
falar por mim mesma sobre o que desejo. Eu desejo que o mundo faça Vladimir
Putin parar com essa situação. Caso contrário, se tornará muito perigoso.
P. - O Ocidente tem
feito o possível em ajuda financeira e militar para a Ucrânia?
S. V - Claro que não.
Vejo que o mundo ainda não compreendeu totalmente o perigo, e eles não percebem
que Putin é um novo Hitler, mas equipado com novas tecnologias, e que isso pode
ser ainda mais terrível do que antes. Por um lado, o mundo fez muito. Por
outro, não fez o suficiente, especialmente em fornecer à Ucrânia mais do que
armas.
* O presidente Lula
foi criticado por Volodimir Zelenski por não reconhecer explicitamente a
responsabilidade de Putin pelo início da guerra. Como a sra. vê essa posição?
S. V - Você só pode
considerar isso de uma perspectiva muito crítica. Apenas reafirma o que acabei
de dizer, que o mundo não entendeu completamente quem é Putin e quão perigoso
ele é. Este medo de perder o petróleo leva a uma grande cautela por parte do Ocidente,
e é por isso que muito tempo foi perdido. Enquanto isso, Putin se torna ainda
mais poderoso. Os políticos são míopes porque não entendem quem é Putin. Porque
ele vai se tornar um Hitler com novas tecnologias, alguém com armas nucleares
também no espaço. Por isso Putin tem todos os motivos para chantagear.
* Após os protestos
reprimidos pelo ditador Lukachenko em 2020 e 2021, quais são as chances de um
movimento democrático ter sucesso na Belarus?
S. V - Houve muito
silêncio nos últimos anos porque muitas pessoas simplesmente têm muito medo, e
algumas delas estão na prisão. Temos cerca de 2.000 presos políticos no país, e
muitos outros com quem ninguém sabe o que aconteceu. (...) Mas não acho que as
pessoas tenham esquecido o que ocorreu em 2020 e 2021. Pesquisas mostram que o
número de pessoas pró-Lukachenko é igual ao de pessoas contra ele, mas a zona
cinzenta é muito grande. E as pessoas simplesmente continuam vivendo suas
vidas. Claro, não podemos conversar com elas e tentar convencê-las.
O que houve com [o
opositor russo, Alexei] Navalni, com a sua morte, (…) só mostra que as ditaduras na Rússia e na Belarus estão apenas se fortalecendo. Está se tornando cada vez menos viável lutar contra. E muita gente viu seu estilo de vida melhorar
ao longo dos anos, portanto tem muito a perder. Compraram casas e apartamentos,
têm bons empregos,
viajam pelo mundo, compram roupas boas, têm boa comida. Por isso, estão dispostos até a suportar a humilhação.
* A sra. sempre
enfatizou o desejo de voltar à sua pátria. Quando acha que isso vá ser
possível?
S. V - Infelizmente,
não acontecerá em breve. (...) As ditaduras ainda têm muitas reservas. Claro
que sinto falta da minha casa e gostaria de ir para lá. Sou proprietária de um
apartamento com vista para o rio [Svislach, que corta Minsk]. Quando criança,
costumava morar em um apartamento perto do rio, então esse era o meu sonho. Uma
vez que recebi o Prêmio Nobel, finalmente pude comprar este apartamento. Mas,
se algum dia estarei lá novamente… não sei. Lukachenko
ainda ameaça me tirar isso.
* Seus livros mostram
como a utopia soviética permeou o cotidiano e foi substituída por um sentimento
de fracasso nos anos 1990. Após a utopia e o fracasso, que capítulo da história
vive a região?
S. V - As pessoas
falavam sobre liberdade, gritavam por liberdade nas grandes praças [durante a
perestroika]. Mas ninguém entendeu que é um processo longo. Leva muito tempo.
Não havia poder suficiente para manter essa liberdade, porque na verdade a
perestroika foi liderada pelo [último líder soviético, Mikhail] Gorbatchov
(1931-2022) e um pequeno grupo de pessoas. Mas as pessoas não estavam realmente
prontas.
Estou escrevendo um
livro chamado "Na Presença da Barbárie" (tradução livre). Porque
aconteceu o que ninguém esperava. Esperávamos que passo a passo nos
aproximaríamos da democracia, mas aconteceu o completo oposto. Agora temos a
KGB [antigo serviço secreto soviético, cujo espólio se tornou a atual FSB
russa] no poder, e ninguém entende o que eles realmente querem. Querem a Grande
Rússia? Querem restabelecer a URSS? É uma completa loucura. (...) Fomos muito
ingênuos de pensar que o comunismo estava morto. Estávamos tão errados. Agora
ele está sendo restabelecido e volta para uma nova batalha.
* A memória dos tempos
soviéticos agora prevalece como trauma ou nostalgia? As novas gerações se
esqueceram dela?
S. V - No início,
quando falávamos do passado soviético, parecia mais uma experiência traumática
por causa de memória do gulag [campo de concentração soviético] e tudo o mais.
Mas depois a nostalgia começou a prevalecer, porque talvez a vida fosse difícil,
e as pessoas ansiavam pelo passado. Especialmente a geração mais antiga começou
a sentir essa nostalgia, mas também os mais jovens.
Lembro-me de uma
história no meu livro "O Fim do Homem Soviético" (2013). Um homem do
Tadjiquistão me disse: "Meu pai vinha para a Rússia, ele estudou na
Universidade do Estado de Moscou e era considerado um amigo. Agora eu moro na
Rússia e trabalho em um canteiro de obras. Fui tratado mal, as pessoas mentem
para mim, tentam me usar. Minha esposa está limpando banheiros. O que diríamos?
Era melhor naqueles dias?". (...) O capitalismo assume uma forma muito
horrível hoje na Rússia. (...) Acho que esta seja uma das razões pelas quais
tantas pessoas apoiam Putin. Elas podem não ser a favor da guerra, mas
simplesmente apoiam Putin.
* Já se noticiou que a
sra. trabalhava em obras sobre outros temas. A sra. agora mencionou um novo
livro. Será sua próxima publicação?
S. V - Eu tinha minhas
ideias [para escrever] sobre amor e envelhecimento. Mas esses manuscritos
ficaram em casa, e não tenho acesso a eles. Não sei se algum dia conseguirei
pegá-los. Então, o novo livro ["Na Presença da Barbárie"] é sobre
como o homem vermelho [soviético] não está morto e está aqui entre nós. É sobre
as disputas, a luta, o sangue que nos cercam no nosso mundo, em nossas vidas. É
sobre como encontrar o poder para lutar contra ele.
* O que gostaria de
que acontecesse no futuro próximo?
S. V - (...) Vejo
muito desespero entre as pessoas com quem falo, e falo com muitas pessoas
porque estou reunindo material para meu novo livro. Todo mundo está lutando.
Para quem saiu do país, é muito difícil se integrar, mas não há volta para
casa. Todos esperam uma mudança, e é claro que ninguém sabe quando vai
acontecer. (...) Estas ditaduras estão lutando contra a modernidade, tentando
parar o tempo. Mas é claro que isso é impossível, e esta é a única esperança.
Fonte: FolhaPress
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