terça-feira, 19 de março de 2024

Moscou supera choque da guerra e vive renascimento ambíguo

Passados mais de dois anos do início da Guerra da Ucrânia, Moscou absorveu o choque inicial do conflito, driblou inconveniências cotidianas e vive um renascimento de sua vida social --não sem ambiguidades inerentes às incertezas acerca do futuro.

Quando a reportagem esteve mais recentemente na capital russa, em outubro de 2022, a guerra de Vladimir Putin ainda tinha oito meses. Não fazia parte explícita do cotidiano, e a população se adaptava a situações como a falta de produtos ocidentais e o veto a viagens à Europa.

De lá para cá, muita coisa mudou. Se a renda segue estagnada apesar de a economia ter sobrevivido bem às sanções ocidentais, os principais impactos no dia a dia foram superados.

A prosaica falta de Coca-Cola nos "produkti", mercadinhos onde todo russo médio faz suas compras, deixou de ser suprida pelos duvidosos refrigerantes locais. A Coca agora vem de lugares como Geórgia e Cazaquistão, assim como as estantes de cervejas e vinhos estão lotadas de produtos importados.

As triangulações garantem também gôndolas ricas em queijos e azeites europeus, como já acontecia após as sanções iniciais decorrentes da anexação da Crimeia, em 2014. A oferta de restaurantes parece maior do que nunca.

Há também o fato de que a fuga avassaladora de marcas ocidentais, tão ao gosto dos russos mais abastados, na realidade não se consumou inteiramente. Antes fechadas, as lojas de grifes italianas como a MaxMara reabriram no mais famoso shopping da cidade, o GUM, na praça Vermelha.

O fenômeno atestado pela reportagem em outubro de 2022, com lojas desertas exibindo vitrines cheias de produtos velhos, foi esvaziado. Em outros shoppings, como o Cholkovski, distante 15 km a nordeste do centro da capital, marcas como a sul-coreana Samsung e a francesa L'Occitane en Provence seguem firmes e fortes.

Aos poucos, carros e celulares chineses tomam o lugar de modelos ocidentais, que dependem do mercado ilegal de peças. Sites estrangeiros considerados indesejados são acessados por VPN, e o sinal de GPS fica embaralhado perto de prédios do governo devido a contramedidas eletrônicas antidrones.

Algumas empresas ficaram, outras passaram a ter sócios russos e mudaram de nome --o caso mais conhecido é a do ex-McDonald's, agora chamado Gostoso e Ponto. Segundo o projeto Deixe a Rússia, da Escola de Economia de Kiev, 1.646 firmas ocidentais ficaram na Rússia, enquanto só 373 saíram totalmente e 1.746 reduziram de alguma forma sua pegada no país.

O turismo está estagnado. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Econômico, em 2023 8,5 milhões de estrangeiros visitaram a Rússia, a maioria da aliada China. É um crescimento marginal, de 3,5%, sobre 2022, e dificilmente a meta de chegar a 16 milhões de pessoas em 2030 será atingida.

Sinal da ausência de dinheiro estrangeiro circulando, as antes onipresentes lojinhas de câmbio paralelo desapareceram, e a troca de moeda agora ocorre quase só em bancos.

Por outro lado, o turismo interno cresceu, na casa dos 35% no ano passado. E os russos seguem viajando para onde são bem-vindos, com um crescimento de 50% em 2023, chegando a 14 milhões de viagens. Sudeste Asiático, Egito e Emirados Árabes são destinos preferenciais: é impossível andar pelo maior shopping do mundo, o Dubai Mall, sem ouvir russo.

Também é perceptível algo que não se via: um aumento da presença de africanos. Isso é resultado da política de Putin para o continente, que aumentou de 2020 para cá em 150% a oferta de bolsas a estudantes, chegando a cerca de 5.000 neste ano. O racismo veio junto: um grupo de empresários da capital criou uma associação para combater o emprego a africanos.

O desligamento da Rússia do sistema financeiro global, simbolizada pela morte dos cartões de crédito internacionais, gerou uma situação inusitada. Portadores de cartões de bandeiras como Visa e Mastercard emitidos antes da guerra ganharam validade eterna para o plástico que carregam, agora assumido por bancos locais.

Nesses dois anos, houve desmonetização do país. Redes populares, como a dos cafés Chokoladnista, têm menus em pequenos tablets na mesa em que é possível fazer o pedido e pagar por ele com cartão.

"A gente tinha medo de que poderia faltar algo, mas as coisas entraram rapidamente no eixo. Os preços subiram um pouco, mas agora voltaram a um patamar normal", diz o jornalista brasileiro Fábio Aleixo, que mora desde 2017 na cidade.

Com efeito, restaurantes e bares parecem tão lotados quanto no "mês de ouro", como comerciantes como o dono de restaurante italiano Micha apelidam o período da Copa de 2018. A reportagem o havia visitado em 2022 e voltou à sua casa para saber como andam as coisas.

"O movimento subiu uns 40% desde 2022. Mas a guerra... É uma coisa terrível, e ninguém sabe o que vai acontecer", diz ele, que pede para não ter o sobrenome divulgado. Micha tem parentes na Ucrânia, e diz que alguns já morreram sob fogo russo. Isso dito, voltou a votar em Putin na eleição presidencial, como fizera em 2018. "Aqui, trabalhamos com a realidade", diz.

A angústia fica algo longe da superfície. Um diplomata ocidental relata que a vida cultural da cidade está em franca expansão. Há, claro, ofertas associadas ao "Zeitgeist", o espírito do tempo: o Museu de História Contemporânea da Rússia tem em destaque uma mostra celebrando os dez anos da volta da Crimeia ao domínio de Moscou.

Para o cientista político Andrei Kolesnikov, morador de Moscou e ligado ao Centro Carnegie, que fechou na capital e segue operando em Berlim, tudo isso é uma bolha ilusória. Em postagem recente no X, ele chamou a ideia de uma Rússia em festa de "Barbielândia de Putin", em referência ao cenário idealizado da boneca do filme homônimo.

A guerra foi incorporada de forma discreta à paisagem. Antes havia alguns cartazes homenageando os caídos na Ucrânia; agora, os "defensores da pátria" são exaltados e há outdoors convidando jovens a assinar contratos como soldados profissionais --até uma linha telefônica dedicada, o número 117, foi estabelecida.

A melhoria no sistema de defesa antiaérea fez com que a ameaça de drones ucranianos, que provocou grande estragos em refinarias pelo país, ficasse para trás --até algum sucesso ocorrer, claro. Como Micha diz de forma ambígua, "em Moscou se vive dia após dia". Barbielândia ou não, a cidade segue em frente.

 

Ø  'Mundo não percebeu que Putin é um Hitler com novas tecnologias', diz Nobel Svetlana Aleksiévitch

 

Exilada na Alemanha desde setembro de 2020, a escritora belarussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura em 2015, fala com um misto de melancolia e indignação sobre a Guerra da Ucrânia e o crescente autoritarismo na região. Às vésperas de Vladimir Putin se encaminhar para a reeleição, ela considera que o Ocidente não faz o bastante para ajudar Kiev contra as tropas do presidente russo, a quem chama de "Hitler com novas tecnologias".

No apartamento onde mora, em Berlim, Svetlana, 75, disse à Folha que não tem esperanças de voltar tão cedo a Minsk, capital da Belarus, onde foi criada filha de pai belarusso e mãe ucraniana, nasceu na Ucrânia soviética. Ela se exilou para escapar da repressão do ditador Alexander Lukachenko, no poder desde 1994. À época, a autora foi uma das líderes da oposição na sociedade civil que acusava o líder de fraudar as eleições para se perpetuar.

A autora coleciona uma extensa obra de não ficção que documenta as experiências e emoções das pessoas comuns durante o ápice, a crise e o colapso da União Soviética (1922-1991). Em 2015, levou o Nobel "pela sua escrita polifônica, um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo", de acordo com a Academia Sueca, que concede a premiação.

A mesa da sua sala está repleta de manuscritos para um novo livro. Arrependida de ter clamado o fim do homem soviético, Aleksiévitch agora documenta o fracasso do projeto democrático desde a reabertura da URSS ao Ocidente.

>>>> A seguir, a entrevista.

* Estamos às vésperas da reeleição de Vladimir Putin. Como a sra. enxerga este momento? A Guerra na Ucrânia pode ser determinante para o futuro político do presidente russo?

Svetlana Aleksiévitch - Há diferentes versões do que está acontecendo, e não sei ao certo. Só posso falar por mim mesma sobre o que desejo. Eu desejo que o mundo faça Vladimir Putin parar com essa situação. Caso contrário, se tornará muito perigoso.

P. - O Ocidente tem feito o possível em ajuda financeira e militar para a Ucrânia?

S. V - Claro que não. Vejo que o mundo ainda não compreendeu totalmente o perigo, e eles não percebem que Putin é um novo Hitler, mas equipado com novas tecnologias, e que isso pode ser ainda mais terrível do que antes. Por um lado, o mundo fez muito. Por outro, não fez o suficiente, especialmente em fornecer à Ucrânia mais do que armas.

* O presidente Lula foi criticado por Volodimir Zelenski por não reconhecer explicitamente a responsabilidade de Putin pelo início da guerra. Como a sra. vê essa posição?

S. V - Você só pode considerar isso de uma perspectiva muito crítica. Apenas reafirma o que acabei de dizer, que o mundo não entendeu completamente quem é Putin e quão perigoso ele é. Este medo de perder o petróleo leva a uma grande cautela por parte do Ocidente, e é por isso que muito tempo foi perdido. Enquanto isso, Putin se torna ainda mais poderoso. Os políticos são míopes porque não entendem quem é Putin. Porque ele vai se tornar um Hitler com novas tecnologias, alguém com armas nucleares também no espaço. Por isso Putin tem todos os motivos para chantagear.

* Após os protestos reprimidos pelo ditador Lukachenko em 2020 e 2021, quais são as chances de um movimento democrático ter sucesso na Belarus?

S. V - Houve muito silêncio nos últimos anos porque muitas pessoas simplesmente têm muito medo, e algumas delas estão na prisão. Temos cerca de 2.000 presos políticos no país, e muitos outros com quem ninguém sabe o que aconteceu. (...) Mas não acho que as pessoas tenham esquecido o que ocorreu em 2020 e 2021. Pesquisas mostram que o número de pessoas pró-Lukachenko é igual ao de pessoas contra ele, mas a zona cinzenta é muito grande. E as pessoas simplesmente continuam vivendo suas vidas. Claro, não podemos conversar com elas e tentar convencê-las.

O que houve com [o opositor russo, Alexei] Navalni, com a sua morte, () só mostra que as ditaduras na Rússia e na Belarus estão apenas se fortalecendo. Está se tornando cada vez menos viável lutar contra. E muita gente viu seu estilo de vida melhorar ao longo dos anos, portanto tem muito a perder. Compraram casas e apartamentos, têm bons empregos, viajam pelo mundo, compram roupas boas, têm boa comida. Por isso, estão dispostos até a suportar a humilhação.

* A sra. sempre enfatizou o desejo de voltar à sua pátria. Quando acha que isso vá ser possível?

S. V - Infelizmente, não acontecerá em breve. (...) As ditaduras ainda têm muitas reservas. Claro que sinto falta da minha casa e gostaria de ir para lá. Sou proprietária de um apartamento com vista para o rio [Svislach, que corta Minsk]. Quando criança, costumava morar em um apartamento perto do rio, então esse era o meu sonho. Uma vez que recebi o Prêmio Nobel, finalmente pude comprar este apartamento. Mas, se algum dia estarei lá novamente não sei. Lukachenko ainda ameaça me tirar isso.

* Seus livros mostram como a utopia soviética permeou o cotidiano e foi substituída por um sentimento de fracasso nos anos 1990. Após a utopia e o fracasso, que capítulo da história vive a região?

S. V - As pessoas falavam sobre liberdade, gritavam por liberdade nas grandes praças [durante a perestroika]. Mas ninguém entendeu que é um processo longo. Leva muito tempo. Não havia poder suficiente para manter essa liberdade, porque na verdade a perestroika foi liderada pelo [último líder soviético, Mikhail] Gorbatchov (1931-2022) e um pequeno grupo de pessoas. Mas as pessoas não estavam realmente prontas.

Estou escrevendo um livro chamado "Na Presença da Barbárie" (tradução livre). Porque aconteceu o que ninguém esperava. Esperávamos que passo a passo nos aproximaríamos da democracia, mas aconteceu o completo oposto. Agora temos a KGB [antigo serviço secreto soviético, cujo espólio se tornou a atual FSB russa] no poder, e ninguém entende o que eles realmente querem. Querem a Grande Rússia? Querem restabelecer a URSS? É uma completa loucura. (...) Fomos muito ingênuos de pensar que o comunismo estava morto. Estávamos tão errados. Agora ele está sendo restabelecido e volta para uma nova batalha.

* A memória dos tempos soviéticos agora prevalece como trauma ou nostalgia? As novas gerações se esqueceram dela?

S. V - No início, quando falávamos do passado soviético, parecia mais uma experiência traumática por causa de memória do gulag [campo de concentração soviético] e tudo o mais. Mas depois a nostalgia começou a prevalecer, porque talvez a vida fosse difícil, e as pessoas ansiavam pelo passado. Especialmente a geração mais antiga começou a sentir essa nostalgia, mas também os mais jovens.

Lembro-me de uma história no meu livro "O Fim do Homem Soviético" (2013). Um homem do Tadjiquistão me disse: "Meu pai vinha para a Rússia, ele estudou na Universidade do Estado de Moscou e era considerado um amigo. Agora eu moro na Rússia e trabalho em um canteiro de obras. Fui tratado mal, as pessoas mentem para mim, tentam me usar. Minha esposa está limpando banheiros. O que diríamos? Era melhor naqueles dias?". (...) O capitalismo assume uma forma muito horrível hoje na Rússia. (...) Acho que esta seja uma das razões pelas quais tantas pessoas apoiam Putin. Elas podem não ser a favor da guerra, mas simplesmente apoiam Putin.

* Já se noticiou que a sra. trabalhava em obras sobre outros temas. A sra. agora mencionou um novo livro. Será sua próxima publicação?

S. V - Eu tinha minhas ideias [para escrever] sobre amor e envelhecimento. Mas esses manuscritos ficaram em casa, e não tenho acesso a eles. Não sei se algum dia conseguirei pegá-los. Então, o novo livro ["Na Presença da Barbárie"] é sobre como o homem vermelho [soviético] não está morto e está aqui entre nós. É sobre as disputas, a luta, o sangue que nos cercam no nosso mundo, em nossas vidas. É sobre como encontrar o poder para lutar contra ele.

* O que gostaria de que acontecesse no futuro próximo?

S. V - (...) Vejo muito desespero entre as pessoas com quem falo, e falo com muitas pessoas porque estou reunindo material para meu novo livro. Todo mundo está lutando. Para quem saiu do país, é muito difícil se integrar, mas não há volta para casa. Todos esperam uma mudança, e é claro que ninguém sabe quando vai acontecer. (...) Estas ditaduras estão lutando contra a modernidade, tentando parar o tempo. Mas é claro que isso é impossível, e esta é a única esperança.

 

Fonte: FolhaPress

 

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