Lula é 'um gerente muito ruim' de sua
coalizão de poder, diz cientista político
O segundo ano de
mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começa marcado por reveses para o presidente.
Apesar do desempenho acima do esperado da economia, o petista vê sua
popularidade cair nas pesquisas de opinião e sofre derrotas no Congresso, como
a eleição de nomes da oposição para a presidência de comissões estratégicas na
Câmara dos Deputados.
Seria um sinal de
fracasso do presidencialismo de coalizão, modelo político em que a
governabilidade é garantida através da distribuição de cargos e verbas aos
diferentes partidos?
Carlos Pereira,
professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que
não.
"O
presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o
presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande
demais – tem 16 partidos, é uma coalizão gigante, muito difícil de
coordenar", diz Pereira, em entrevista à BBC News Brasil.
Para o analista, a
queda de popularidade de Lula se deve principalmente à inflação resiliente, que
é impactada pela política fiscal frouxa adotada pelo governo. A boa notícia é
que ainda dá tempo de mudar, diz Pereira.
"Ainda é cedo.
Início do segundo ano de mandato, o governo ainda tem tempo para recuperar. Mas
ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável do
ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado
que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto", critica.
Em meio ao avanço das
investigações sobre suposta tentativa de golpe conduzida pelo ex-presidente
Jair Bolsonaro (PL), o cientista político tem sido uma das poucas vozes a
defender reiteradamente que não houve chance real de ruptura ou mesmo
fragilização da democracia no governo Bolsonaro.
"Minha
interpretação é de que os generais se recusaram [a embarcar no golpe] porque os
custos políticos, institucionais e reputacionais, para qualquer um que pudesse
enveredar em uma tentativa de ataque à democracia, são impagáveis",
afirma.
"No momento em
que esses generais peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados pelas
suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque estão
inseridos em um contexto institucional que os constrange."
Pereira discute este e
outros temas no livro Por que a democracia brasileira não morreu?, escrito em
coautoria com Marcus André Melo, e que deverá ser lançado pela Companhia das
Letras em maio.
Para o cientista
político, o cenário que se coloca para as eleições municipais com Lula com a
popularidade em queda e Bolsonaro pressionado pela Justiça é de oportunidade.
"Bolsonaro, com
os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai
perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o
beneficia", afirma.
"Com um dos polos
se tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade
para os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda
nacional polarizada."
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Confira os principais trechos da entrevista.
• O senhor tem defendido que não houve
chance real de ruptura no governo Bolsonaro, devido à resiliência das
instituições brasileiras. À luz dos depoimentos dos comandantes das Forças
Armadas que revelaram que o ex-presidente chegou a conduzir reuniões para
discutir documentos com teor golpista, o senhor ainda avalia que a democracia
do país não correu risco?
Carlos Pereira - Sim.
Acredito que os depoimentos confirmam exatamente o que eu venho defendendo.
• Por quê?
Pereira - Porque
existem duas avaliações nisso. Quanto a esse general e esse tenente-brigadeiro
[os ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da
Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior] que foram os
que deram depoimentos e que, de certa forma, se opuseram à ideia golpista de
Bolsonaro, uma interpretação é percebê-los como heróis.
O próprio presidente
Lula disse isso na reunião ministerial [realizada na segunda-feira, 18/3]. Ele
faz uma análise individual, como se o Brasil tivesse escapado do risco porque
esses generais se recusaram a embarcar no golpe.
Já a minha
interpretação é de que esses generais se recusaram porque os custos políticos,
institucionais e reputacionais para qualquer um que pudesse enveredar em uma
tentativa de ataque à democracia são impagáveis.
A sociedade brasileira
é uma sociedade muito sofisticada, que tem múltiplos interesses, mas que tem a
democracia como um valor de agregação importante e revela essa agregação em
vários momentos.
• Quais momentos, por exemplo?
Pereira - Por exemplo,
quando o governo Bolsonaro se recusou a compartilhar os dados de contaminação e
mortes na pandemia, ocorreu um movimento espontâneo de competidores no mercado
de mídia – Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL –
todos eles montarem um consórcio de imprensa em que eles se responsabilizaram
por pesquisar dados sobre contaminação e morte das pessoas na pandemia.
Isso mostra uma
capacidade absurda, mesmo de competidores, de abrir mão da sua competição
diante de um bem coletivo maior.
Outro exemplo
importante foi quando Bolsonaro chamou aquela fatídica reunião com os
embaixadores contra a urna eletrônica e organizou uma parada militar em
Brasília no dia da votação [na Câmara dos Deputados da proposta de emenda
constitucional] do voto impresso.
A sociedade deu uma
resposta fortíssima, com mobilizações puxadas pelo departamento de Direito da
USP, em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram a carta em defesa da
democracia, mostrando que uma diversidade enorme de pessoas que pensam
diferente, que têm ideologias diferentes, que têm preferências políticas e
partidárias diferentes, se agregaram em torno da democracia.
• E quanto às instituições?
Pereira - Você tem o
multipartidarismo, que torna muito difícil para um populista, seja ele de
esquerda ou de direita, fazer valer sua preferência de forma autoritária. Ele
vai ter que convencer muita gente, porque são muitos partidos, com vários
pontos de veto em potencial.
Temos o federalismo,
constituições estaduais, judiciários estaduais, governadores.
Quer dizer, é um gama
tão grande de atores que um populista tem que convencer em torno de um projeto
autoritário, que esse projeto não tem chance de vingar.
Então, no momento que
esses generais se recusam e peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados
pelas suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque
eles estão inseridos em um contexto institucional que os constrange e que
restringe o leque de opções que esses caras teriam para atuar fora do campo
democrático.
Então o golpe
fracassou porque esse conjunto complexo de instituições da sociedade impõe
custos muito altos – custos impagáveis – para quem decide trilhar um caminho
dessa natureza.
• O senhor citou a questão do
multipartidarismo e como é difícil para um populista fazer valer suas
preferências nesse cenário. Isso leva à minha próxima pergunta: por que o
presidencialismo de coalizão parece não ter sido capaz de moderar Bolsonaro, já
que ele aparentemente cogitou a possibilidade de golpe até o fim do governo?
Pereira - Eu acredito
que moderou sim. Veja, Bolsonaro foi eleito negando a própria política. Ele fez
uma associação direta entre o presidencialismo de coalizão e a corrupção do PT
no passado.
Com poucos meses de
governo, em que ele não tinha maioria [no Congresso], não tinha coalizão, ele
saiu de seu próprio partido [então o PSL] e governou por quase um ano e meio
sem qualquer partido.
Nesse momento,
Bolsonaro era muito perigoso, porque ele estava negando as instituições e
surfando de forma não institucional.
Mas veio a pandemia e
uma série de pedidos de impeachment começaram a chegar na mesa do presidente da
Câmara – ainda um presidente da Câmara hostil a Bolsonaro, que era Rodrigo Maia
[então do DEM-RJ] na época. E Bolsonaro saiu desesperado tentando construir uma
coalizão.
No momento em que
Bolsonaro faz uma coalizão com o Centrão, ele se domestica, ele perde esse
discurso antipolítica, e ele começa a fazer política.
Entretanto, todo bom
populista não pode abrir mão na sua totalidade do discurso que o faz viável
eleitoralmente.
Então ele foi nesse
fio da navalha até o final de seu governo, namorando com o perigo, mas com as
instituições o tempo inteiro dando limites para ele.
Por exemplo, o governo
Bolsonaro foi o governo que mais enfrentou derrotas sucessivas no Judiciário e
derrotas sucessivas no Legislativo.
Isso significa que as
instituições estavam muito atentas e muito vigilantes, a despeito de ele ficar
namorando com o perigo não institucional o tempo inteiro, enquanto também
jogava o jogo institucional o tempo inteiro.
Foi esse jogo duplo
que Bolsonaro jogou a partir do momento em que procurou o Centrão em 2020.
• Falando então de derrotas do governo,
mas agora puxando para o governo atual. O governo petista tem enfrentado
sucessivas derrotas no Congresso, sendo a mais recente a vitória da oposição
para o comando de comissões estratégicas, como CCJ [Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania] e Educação. Na sua visão, ainda faz sentido falar em
presidencialismo de coalizão na conjuntura atual ou isso parou de funcionar?
Pereira - O
presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o
presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande
demais – tem 16 partidos na sua coalizão, é uma coalizão gigante, muito difícil
de coordenar.
E ele chamou 16
partidos muito heterogêneos, completamente diferentes um do outro, com
preferências ideológicas e políticas muito díspares.
Há desde a extrema
esquerda, como Psol, PCdoB, até partidos de direita, como União Brasil, PSD,
como partidos de centro, como o MDB.
Então o presidente
Lula enfrenta altíssimos custos de coordenação. Além disso, o governo Lula
também não compartilha poder e recursos com os parceiros, levando em
consideração o peso proporcional de cada um deles no Congresso.
Por exemplo, dos 37
ministérios do governo Lula atual, o PT tem 22 ministérios.
Então se coloque na
posição do União Brasil, que tem mais ou menos o mesmo número de cadeiras do PT
no Congresso, e tem três ministério. Por que que ele vai ser disciplinado na
coalizão, se não está sendo recompensado?
Isso obviamente vai
criar animosidades entre os parceiros, vai criar ressentimentos. E esses
parceiros vão se posicionar estrategicamente a cada votação.
Quando o presidente
sinaliza que precisa muito aprovar alguma coisa, esse é o momento por
excelência de um parceiro que está sendo sub recompensado de tentar equilibrar
o jogo.
Então o problema não é
do presidencialismo de coalizão, o problema é do gerente. O problema é que o
gerente é muito ruim.
• Como o senhor avalia o cenário atual do
governo Lula? Esse momento de perda de popularidade do presidente, que realizou
até essa reunião ministerial na última segunda-feira.
Pereira - Nos meus
estudos, a popularidade impacta muito pouco sobre a taxa de sucesso do
presidente no Congresso, bem como sobre o custo de governabilidade. A
popularidade não é a variável mais importante. Entretanto, ela é fundamental
para a relação do presidente com a sociedade.
Então é um momento em
que o governo sinaliza vulnerabilidade. Em que, de certa forma, a política
econômica do governo está em xeque, porque, em última instância, a população
está reagindo à inflação de alimentos. Acho que esse é o ponto-chave.
Normalmente, a
popularidade tem duas variáveis-chaves: a inflação e o desemprego. O eleitor
brasileiro é avesso à inflação. E o governo Lula tem tido políticas frouxas do
ponto de vista fiscal, e isso tem gerado déficits crescentes, que têm um
impacto inflacionário.
Então é uma escolha
também do presidente namorar com o perigo.
Ainda é muito cedo.
Início do segundo ano [de mandato], o governo ainda tem tempo para recuperar.
Mas ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável
do ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado
que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto.
Então essa é uma lição
de casa que o PT e o governo Lula não aprenderam. Porque eles já viveram isso
no passado e eles continuam se comportando do mesmo jeito, acreditando que o
Estado tem um papel importante na economia. E essa postura mais frouxa em relação
ao controle das contas públicas tem um preço.
Cedo ou tarde, [a
conta] vai chegar. A grande oportunidade do governo Lula é que tenha chegado
cedo. Então dá tempo para o governo fazer ajustes no sentido de sinalizar mas
crivelmente compromissos com o equilíbrio macroeconômico.
• E como essa questão da popularidade em
queda pesa sobre as relações entre Executivo e Legislativo?
Pereira - Eu
interpreto isso muito mais com uma restrição do que com um impeditivo. Então
vai dificultar, vai criar mais um barulho, mas não vai impedir o presidente de
desenvolver uma relação boa com o Legislativo, se ele fizer as escolhas certas
de como se relacionar com seus parceiros.
O problema é que, como
o presidente Lula não sinaliza nenhuma reforma ministerial que pudesse acomodar
melhor os seus parceiros, e cortar na própria carne, no próprio PT, esses
problemas vão estar presentes sempre no governo.
Vai ter momentos em
que o governo vai conseguir aprovar mais, gastando mais, e vai ter momentos que
vai aprovar menos.
O custo de
governabilidade vai ser diretamente proporcional à necessidade que o governo
terá de aprovar essa ou aquela matéria.
Quanto mais o governo
sinalizar que precisa muito que o legislador vote com ele, mais o Legislativo
vai se posicionar de forma estratégica, inflacionando o custo do voto dele.
• E que cenário Lula com popularidade em
queda e Bolsonaro pressionado pelas investigações sobre a tentativa de golpe
colocam para as eleições municipais desse ano?
Pereira - Estamos com
um cenário muito polarizado. Tem algumas pessoas até defendendo a ideia de que
essa polarização está calcificada.
Mas um cenário em que
Bolsonaro muito provavelmente vai enfrentar punições judiciais daqui a algum
tempo, e com Lula perdendo conexões eleitorais, é uma oportunidade para os
partidos que não estão diretamente vinculados a esses dois polos e para que o
eleitorado busque alternativas.
Então talvez seja uma
oportunidade boa para diminuir essa polarização entre Lula e Bolsonaro.
Porque Bolsonaro, com
os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai
perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o
beneficia, porque ele também nutre essa polarização.
E quanto mais o jogo é
polarizado, mais difícil é para uma alternativa aos polos se tornar
competitiva.
Com um dos polos se
tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade para
os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda nacional
polarizada.
É uma oportunidade
para os outros partidos se livrarem desse karma, se livrarem desses pesos.
Porque, se por um lado Lula e Bolsonaro são um ativo, uma ferramenta, são
ferramentas muito pesadas. A esquerda já teve chance de se livrar de Lula no
passado e não conseguiu.
Está se aproximando
uma oportunidade para a direita se livrar de Bolsonaro e buscar outros
candidatos melhores, mais comprometidos com a democracia, com as instituições,
então pode ser uma chance, pode ser uma oportunidade.
Ainda é muito cedo
para dizer, mas talvez abra-se essa janela para que os partidos considerem
outras estratégias, ao ancorar suas candidaturas a prefeito em 2024 em outros
temas e outras alternativas.
Fonte: BBC News Brasil
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