Guerra às drogas na América do Sul
A questão do comércio
de drogas não tem apenas suscitado debates acalorados, apaixonados e muito
divergentes, chegando à perspectiva moral ou mesmo religiosa. Desde as guerras
do ópio, que marcaram a expansão colonial Anglo-Francesa na China e em seu entorno,
entre os anos de 1839 e 1860, essa questão mobilizou os países hegemônicos em
suas disputas pelo controle geoeconômico e geopolítico do mundo. E também
mobilizou os diferentes segmentos de classes dominantes nacionais na manutenção
e reprodução do seu respectivo poder.
O comércio
internacional e seus desdobramentos nos mercados nacionais ganharam um status
maior com a política de “guerra às drogas” do governo Richard Nixon (1969 a
1974) e posteriormente no governo Ronald Reagan (1981 a 1989) nos Estados
Unidos. Nixon instrumentalizou o combate ao comércio de drogas incriminadas
(maconha, cocaína e heroína, dentre outras) como uma forma de ampliar o
controle sobre áreas urbanas efervescentes em ativismos sociais e áreas
industriais com forte presença de segmentos negros e imigrantes que haviam
herdado as lutas pelos direitos civis da década de 1960.
Até então, mais de
dois terços dos homens no sistema carcerário daquele país eram homens brancos.
A revanche contra os direitos civis da década de 1970 se transformou
rapidamente na maior política de Estado penal do mundo contemporâneo. Na virada
do século, quase 1 milhão de homens negros haviam passado pelo sistema
carcerário, um terço dos homens negros entre 20 e 30 anos estava preso ou em
liberdade condicional. Segundo o Bureau of Justice Statistics (BJS), em 2022,
os Estados Unidos mantinham 2,3 milhões de presos, dois terços de ascendência
negra ou latina, invertendo o quadro que havia no início da década de 1970 na
qual os encarcerados não passavam de 200 mil homens e 70% deles eram brancos.
Na era Reagan, a
“guerra às drogas” passou radicalmente a instrumentalizar a geoeconomia, a
geopolítica e as relações internacionais dos Estados Unidos para o mundo, com
especial atenção para a América do Sul. Num pacote híbrido em desmonte dos
Estados desenvolvimentistas da região, militarismo, neoliberalismo e choque
econômico, a “guerra às drogas” substituiu rapidamente a guerra ao comunismo
que havia legitimado as ditaduras militares na década de 1960 e 1970 e
transformou não apenas opositores políticos em inimigos do Estado, mas também
uma quantidade enorme de populações recém-chegadas às áreas urbanas. A face
oculta da agenda de choque neoliberal dos anos 1990 chegou acompanhada do
Estado penal, fazendo, por exemplo, do Brasil, o principal país da região, o
terceiro em população carcerária no mundo, com mais de 800 mil presos, apenas
atrás de Estados Unidos e China.
Com a intensificação
do fluxo de mercadorias, cargas, capitais e pessoas no final da era bipolar,
marcada pelo colapso da União Soviética, novos operadores emergiram e passaram
a exercer uma influência significativa sobre os Estados, seus territórios e suas
áreas urbanas. A abordagem proibicionista claramente instrumentalizou segmentos
dominantes nacionais na região e, simultaneamente, deu um novo fôlego à
influência geoeconômica e geopolítica dos Estados Unidos sobre a América do Sul
entre as décadas de 1990 e 2000.
QUEM GANHA E QUEM
PERDE COM A “GUERRA ÀS DROGAS”?
Em vez de reduzir o
consumo de drogas ilícitas, a “guerra às drogas” o aumentou, alimentando o
mercado ilegal, fragmentando áreas urbanas em microterritórios de organizações
criminosas, ensejando altos índices de violência policial e mortes de
policiais, desdobrando no surgimento de esquadrões da morte e milícias, bem
como criando o cenário para a criminalização de lutas populares. Como
resultado, o narcotráfico tornou-se uma das atividades ilícitas mais lucrativas
do mundo, beneficiando-se de crises econômicas e políticas para expandir seu
comércio, aumentar sua capacidade de regulação territorial e esboçar uma
divisão internacional do trabalho em que os países centrais se tornaram os
principais mercados e os países semiperiféricos e periféricos, os fornecedores.
Os operadores estatais da guerra tornaram sua população doméstica no maior
mercado de consumo de drogas no mundo. Segundo o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (Unodc), os Estados Unidos concentram 20% dos consumidores
de drogas ilícitas de todo o planeta.
Obviamente, estamos
diante de um negócio tipicamente organizado como uma empresa capitalista
orientada para o lucro, envolvendo vários segmentos políticos, sociais e
econômicos para seu desenvolvimento e aprimoramento, muitas vezes necessitando
da colaboração do Estado para garantir condições necessárias, especialmente de
transporte, facilitando a entrada das substâncias e controlando a informação
divulgada pelos meios de comunicação. A corrupção desempenha um papel
fundamental na manutenção desse negócio, com o Estado atuando de forma ambígua,
sendo simultaneamente protetor e impulsionador da violência.
Esse mercado de
lavagem de dinheiro/corrupção é um dos componentes da rede do narcotráfico, que
inclui também o mercado de produção, o mercado de trânsito, os produtos
químicos precursores e o mercado de consumo. Compreender seu funcionamento é
crucial para entender como a América do Sul se integra nesse sistema e qual é o
seu papel na análise das relações internacionais entre os países da América do
Sul e os países hegemônicos.
A cadeia produtiva do
narcotráfico inicia-se com a aquisição de insumos, que podem ser importados ou
transportados, e geralmente a produção ocorre próxima ao local de cultivo,
muitas vezes envolvendo trabalho escravo. Uma característica importante dessa etapa
de produção é o controle militar do território, especialmente em áreas
fronteiriças. Nesse caso, um Estado que não consegue integrar e controlar seu
território, “permitindo” a intervenção de outros Estados constantemente, é
considerado um Estado falido, fragmentado em sua capacidade de regulação
territorial. Desde a década de 1980, isso tem justificado golpes de Estado,
intervenções militares e alocação de bases das Forças Armadas dos Estados
Unidos no Cone Sul. Segundo o Comando do Sul do Departamento de Defesa
(Southcom), a América Latina e o Caribe têm aproximadamente 76 bases militares
em operação, com aproximadamente 1.200 militares e civis atuando. Não obstante,
a Amazônia Internacional concentra as bases militares dos Estados Unidos na
América do Sul.
Ao observar o controle
das fronteiras sul-americanas, é possível notar a presença dessas bases
militares, não somente dos Estados Unidos, embora sejam a maioria, mas de
outros Estados potentes ou hegemônicos, que seguem normas, regulações e
políticas relativas ao tráfico de drogas diferentes das adotadas pelos Estados
nos quais a base de operação militar está instalada. É crucial destacar que um
dos objetivos das organizações que operam no mercado de drogas é conquistar e
dominar territorialmente um espaço específico para a produção e venda de
drogas, disso decorre uma dupla fragmentação da soberania territorial.
Quanto ao mercado de
trânsito, o mais fluido engloba três tipos: trânsito de dinheiro, trânsito para
produtores e trânsito para consumidores externos ou internos. Quanto aos
precursores químicos, um país (ou mais) é identificado como responsável pelo
fornecimento desses produtos, favorecido por sua localização geográfica e
infraestrutura. A geografia da América do Sul influencia a comercialização das
drogas em escala internacional, oferecendo condições geoeconômicas favoráveis
ao narcotráfico por causa do fácil acesso ao Oceano Atlântico e à fragilidade
do domínio estatal sobre seus territórios, em franco processo de fragmentação
no qual os microterritórios do narcotráfico se sobrepõem em alguma medida,
sobretudo em contextos metropolitanos.
O mercado consumidor
surge por último como consequência do trânsito de drogas, principalmente em
países periféricos. Esses países possuem áreas nas quais as autoridades
públicas têm dificuldade em assegurar o controle ou se mesclam com formas de
controle não oficial, levando à transformação do território, sobretudo nos
espaços urbanos, em uma colagem de “microterritórios”, áreas não governadas
pelo Estado, cujo poder é exercido por organizações criminosas de natureza
variada, capturando segmentos populares, segmentos da segurança pública ou das
forças armadas e até segmentos políticos e religiosos. Não se trata de uma zona
autônoma; trata-se de uma fração do território que foi capturada com intenso
exercício da violência na vida cotidiana, intensos laços com a globalização do
capitalismo contemporâneo e com a geoeconomia e geopolítica regional.
É possível constatar
que existe uma relação hierárquica e, ao mesmo tempo, interdependente entre
países produtores, distribuidores e consumidores. A estrutura do narcotráfico
depende da criação, ativação, articulação, evolução e, eventualmente, da destruição
de vínculos sociais entre os envolvidos. Nesse sentido, a divisão do trabalho
no tráfico de drogas em escala global é clara: os países periféricos, como os
da América do Sul, atuam como produtores e distribuidores, buscando manter a
cadeia de produção e circulação por meio de medidas de segurança, corrupção e a
microterritorialização. Por outro lado, os países centrais, como os Estados
Unidos e países da Europa, são os principais consumidores e é onde as drogas
chegam para refinamento, industrialização e consumo.
O PAPEL SUL-AMERICANO
A América do Sul se
tornou parte importante do debate global nessa temática, parte central da
cadeia de produção, circulação e consumo, e laboratório de políticas de
criminalização dos pobres e da pobreza. Os principais países sul-americanos
produtores (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) se integram aos países
distribuidores (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) num ciclo de formulação
de políticas de alto encarceramento, violência armada, fragmentação territorial
e urbana.
O encarceramento em
massa, frequentemente associado à “guerra às drogas”, põe em evidência os
fracassos das políticas de criminalização do consumo e da posse de drogas.
Essas políticas resultaram em um aumento significativo da população prisional,
com um impacto desproporcional nas comunidades marginalizadas, principalmente
em contextos urbanos. Além de não resolver eficazmente o problema do
narcotráfico, o encarceramento em massa levou à sobrelotação das prisões, à
violência dentro do sistema prisional e a uma série de desafios sociais e de
saúde pública, bem como fez emergir organizações criminosas de natureza variada
e complexa, cujos operadores na vida cotidiana não apenas vendem sua força de
trabalho, mas estão dispostos a oferecer a própria vida para que a acumulação
de capital nesse mercado não pare.
O caso brasileiro
chama atenção nessa dimensão. Atualmente, mais de setenta organizações
criminosas atuam no Brasil, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública,
tendo sido originadas dentro do sistema carcerário, algumas delas com
capacidade de atuação internacional e operando em rede com máfias de todo o
mundo. Na última década, houve uma nacionalização das organizações que atuam
como milícias, cuja maior parte dos seus membros são ligados direta e
indiretamente a instituições estatais de segurança pública e das forças
armadas.
O problema é tão
complexo que também chama a atenção o curioso caso de uma das organizações que
atuam no controle de áreas metropolitanas do Rio de Janeiro, que batizou uma
fração da cidade na Zona Norte de “Complexo de Israel”, no qual o domínio
territorial envolve violência armada, colaboração entre organizações que
surgiram nos presídios, grupos de milicianos ligados à segurança pública local
e religiosos neopentecostais. O grupo local se autointitulou com uma referência
bíblica e passou a se chamar de “Tropa de Aarão”, espalhando estrelas de David
em seu microterritório para simbolizar seu poder.
É importante dizer que
o ciclo progressista que se estabeleceu em toda a América Latina na década de
2000 só poderia acenar de fato para a integração latino-americana se tivesse se
desinstrumentalizado da “guerra às drogas”, do seu Estado penal e da criminalização
das lutas populares. Os países da região não foram bem-sucedidos nessa questão,
e exatamente aí abriram espaço para o avanço de grupos políticos híbridos em
fascismos e liberalismos que vêm buscando nos últimos anos desmontar de vez a
capacidade de regulação territorial dos Estados da região.
A “guerra às drogas”
tornou-se um desafio doméstico, econômico, geoeconômico, político e geopolítico
intransponível até este momento. Os governos progressistas da região, esboçando
um novo ciclo para essa década, ainda não despertaram para o fato de que a
“guerra às drogas” e seus desdobramentos são um dos motivos da incompletude do
seu desenvolvimento social recente e um dos limites da integração e soberania
territorial e popular.
Ela representa um
continuum da política externa da hegemonia em declínio dos Estados Unidos, que
teve início com a ideia de “América para os americanos”, passou pela “guerra ao
comunismo” e pela “guerra ao terror”, e desembocou mais recentemente na desestabilização
da Economia Política regional na década de 2010, por meio de ações típicas da
chamada guerra híbrida.
Superá-la é
fundamental, sob pena de permanecermos, como região, em posição de submissão na
Economia Política Internacional e nos percebermos cada vez mais próximos da
experiência distópica do superestado penal e encarcerador que Nayib Bukele
colocou em prática em El Salvador. Ou na anomia e falência provocadas por
gangues de rua e grupos paramilitares no Haiti, que recentemente provocaram a
fuga de 4 mil presos no país e ameaçam com uma guerra civil após terem emergido
na sequência do magnicídio do presidente Jovenel Moïse em 2021 – numa
articulação que envolveu militares colombianos atuando como mercenários, além
de políticos, empresários e lideranças locais do crime organizado. Além disso,
mais recentemente, o premiê Ariel Henry renunciou por pressão das gangues. Ou
mesmo prisioneiros da psicosfera que correlaciona símbolos nacionais, abolição
da democracia, intervenção militar, guerra religiosa, criminalização da
pobreza, Estado penal e ultraliberalismo que vem tensionando o Brasil na última
década e teve seu auge nos episódios de tentativa de golpe de Estado em 8 de
janeiro de 2023.
Fonte: Por Haia Ayman
Shahadeh e André Luís André, em Le Monde
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