segunda-feira, 25 de março de 2024

Carlos Wagner: Golpe de estado de Bolsonaro falhou porque brasileiro é viciado em liberdade

Durante as mais de quatro décadas em que estou na lida de repórter fiz uma longa lista de amigos que conheci pelos rincões do mundo enquanto fazia cobertura de conflitos agrários, migrações e crime organizado. Muitos deles, inclusive eu, esquecem do fuso horário e ligam durante a madrugada para colocar os assuntos em dia. Foi em uma conversa numa noite de sexta-feira (15/03) que pintou a história do envolvimento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) com a tentativa do golpe de estado que tem como símbolo o quebra-quebra que seus seguidores realizaram, em 8 de janeiro de 2023, nos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Em depoimento à Polícia Federal (PF), os ex-comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Força Aérea, tenente-brigadeiro do ar Carlos Almeida Baptista Júnior, colocaram as digitais de Bolsonaro em toda a articulação da tentativa do golpe.

Na conversa, concordamos que foi fundamental os depoimentos terem atirado a bronca do colo do ex-presidente. Até porque não era segredo para ninguém a disposição de Bolsonaro de tentar um golpe de Estado. Ele sempre defendeu às claras os saudosistas do golpe de 1964. E começou a articular o golpe no dia seguinte ao que tomou posse na Presidência da República. Em 7 de julho de 2021 tratei do assunto no post “Sonho de menino de Bolsonaro era ser um general nos tempos da ditadura militar”. Nos dias atuais, há um fato que contribuiu para o fracasso do golpe que precisa ser lembrado na cobertura da imprensa, que é o seguinte. Os militares governaram o país de 1964 a 1985. Foram anos duros, sem liberdades individuais, com censura à imprensa, prisões, tortura e morte de presos políticos. A reação da sociedade civil à ditadura é uma longa história que pode ser encontrada em livros, documentos e muitas reportagens. Uma dessas histórias é a dos grandes movimentos populares que começaram a surgir e tomar corpo da década de 1970, como o Movimento Feminino pela Anistia, em 1975, fundado pela advogada e ativista pelos direitos humanos Therezinha Zerbini (1928-2015). Em 1979, a Lei da Anistia trouxe de volta ao país lideranças políticas que viviam exiladas em vários países. Anos depois, na década de 1980, o então senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1983) deu o chute inicial no que se tornaria um dos maiores movimentos de massa do Brasil: a campanha das Diretas Já, que mobilizou milhões de pessoas em todo o país pela aprovação do que ficou conhecido como “emenda constitucional Dante de Oliveira”, porque levava o nome do deputado mato-grossense que apresentou o projeto que reinstalava as eleições diretas para presidente da República. Esses movimentos de massa serviram para conscientizar várias gerações de brasileiros de seus direitos políticos. O regime militar acabou em 1985. Em 1988 foi publicada a nova Constituição.

No golpe militar de 1964 eu tinha 14 anos e vivia no interior do Rio Grande do Sul. Na década de 1970, nas lutas pela democratização do país, era um jovem de 20 e poucos anos. Tive quatro filhos, que foram educados dentro de um ambiente de plena liberdade política. Imagina chegar para os meus netos e dizer que eles não podem fazer tal coisa porque o governo proíbe. A geração dos meus filhos e netos é viciada em liberdade e não tem como recuar. Se alguém desse um golpe militar hoje haveria uma guerra civil no Brasil. Na ocasião em que o ex-presidente intimou o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista a apoiá-lo no golpe, eles recusaram. Mas o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, concordou. Uma pergunta que os repórteres precisam fazer para o almirante: no caso da população civil reagir aos golpistas, ele daria a ordem para os navios bombardearem as cidades costeiras do país, como o Rio de Janeiro? Recomendo para os meus colegas e para quem não é jornalista a leitura de um livro. Chama-se Todo aquele imenso mar de liberdade: a dura vida do jornalista Carlos Castello Branco. Castelinho (1920-1993), como era conhecido, foi o maior colunista político que já apareceu na imprensa brasileira. Tive a honra de conhecê-lo em Brasília. Estava lá para receber um prêmio jornalístico e houve um atraso na entrega. Ficamos conversando sobre política agrária por uma hora. Ele falava de modo pausado e preocupado se quem o ouvia estava entendendo. O livro revela os cantos escuros da política nacional. Não interessa se a tecnologia mudou a nossa maneira de escrever as reportagens. O fato é que ainda contamos uma história que tem início, meio e fim. E a liberdade imprensa é tão fundamental para a nossa existência de repórter como o oxigênio é para todos os seres vivos.

A democracia é fundamental para o Brasil se perfilar entre os países desenvolvidos do mundo, fui lembrado pelo meu amigo na conversa de sexta. Ele disse que, no seu entendimento, a caminhada do país já enfrentou algumas barreiras. Mas continua avançando. Respondi que durante a pandemia de Covid (2020 a 2021), quando Bolsonaro transformou em política de governo o seu negacionismo em relação ao poder de contaminação e letalidade do vírus, escrevi que a democracia no Brasil era jovem. Mas tinha musculatura para sobreviver às investidas autoritárias do governo federal e garantir a sobrevivência dos brasileiros. Não deu outra. Os ministros do STF enquadraram o governo e asseguraram a compra de vacinas e a instalação no país das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS). A derrota da tentativa de golpe de Bolsonaro começou lá nos anos 60, quando os estudantes saíram às ruas e lutaram pela democracia. O sacrifício deles, dos que lutaram pela anistia e pelas diretas não pode ser esquecido pela imprensa. Temos um passado de lutas pela democracia que não pode ser esquecido.

 

       Mauro Cid lamenta ter tido a vida destruída por Bolsonaro

 

Áudio divulgado na noite de quinta-feira (21), pela Revista Veja, o tenente-coronel Mauro Cid desabafa com um conhecido a respeito dos últimos anos de sua vida, em que serviu como ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e acabou preso por conta de uma série de crimes do mandatário que, pela sua função, o ajudou a cometer. Entre esses crimes está a tentativa de golpe de Estado que impediria a posse de Lula (PT) e manteria o capitão reformado no poder.

Foi graças à delação premiada de Mauro Cid, que aparentemente acaba de descobrir como funciona uma investigação e um interrogatório policial, que a Polícia Federal foi fechando o cerco ao próprio Bolsonaro, a seus assessores e comandantes militares que planejavam solapar a democracia brasileira.

No áudio, Cid reclama da abordagem dos policiais e diz que foi induzido a mentir para validar uma narrativa que já estaria posta. No entanto, o desabafo só mostra o quando o ex-ajudante de ordens não conhecia absolutamente nada a respeito de uma investigação policial. Os investigadores fizeram uma devassa nos seus celulares e foram descobrindo, aos poucos, cada detalhe da trama. Durante os seis depoimentos que prestou após fechar o acordo de delação premiada, Cid foi confrontado com as descobertas prévias. Mas como um bom bolsonarista, o tenente-coronel se sente uma verdadeira vítima.

“Eles queriam que eu falasse coisas que eu não sei, que não aconteceram. E não adianta, você pode falar o que você quiser. Eu vi isso ontem. Podia falar o que quisesse, eles não aceitavam e discutiam. Discutiam que a minha versão não era verdadeira, que não podia ter sido assim, que eu tava mentindo. Já estão com a narrativa pronta, não queriam saber a verdade. Só queriam que eu confirmasse a narrativa deles”, afirmou no início do áudio vazado.

A seguir, Cid demonstra mais um pouco do seu desconhecimento acerca da atividade policial. É de conhecimento público que quando as autoridades vão fazer um acordo com um criminoso, seja ele quem for, é comum que a barganha se dê a partir das possíveis penas que o depoente irá cumprir caso seja condenado. Mesmo após muitos anos no Exército, onde provavelmente teve aulas sobre como extrair informações em interrogatórios, Cid simplesmente insiste em fazer uma narrativa persecutória.

“Ele até falou: ‘vacina, por exemplo, você vai ser indiciado por nove negócios de vacina. Nove tentativas de falsificação de vacina, vai ser indiciado por associação criminosa e mais um termo lá’. Daí ele falou assim: ‘só essa brincadeira já são 30 anos pra você’. Senti que já estão com a narrativa pronta e querem o máximo possível de gente para confirmar”, afirma.

Em outro trecho, repete teorias conspiratórias bolsonaristas de que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, seria uma espécie de “monarca” extraoficial do país.

“O Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende e ele solta a hora que quiser. Com ou sem Ministério Público, com ou sem acusação. Quando eu falei naquele encontro do Alexandre de Moraes com o presidente, eles ficaram desconcertados. Eu falei: ‘ó, quer que eu fale? Não vou botar no papel senão eu vou me foder’. Mas o presidente encontrou secretamente o Alexandre de Moraes na casa do Ciro Nogueira. E aí? O Alexandre de Moraes já tem a sentença pronta. Só está esperando passar o tempo, o momento que ele achar conveniente denunciar todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo”, declarou.

A seguir Mauro Cid finalmente tem um lampejo de lucidez e reclama, com todas as letras, sobre a sua vida ter sido completamente destruída por Jair Bolsonaro, a quem serviu de maneira tão fiel como ajudante de ordens por todos esses anos.

“Quem mais se fodeu fui eu, quem mais perdeu coisa fui eu. Pega todo mundo aí. Ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era quatro estrelas, já tinha atingido o topo, né? O presidente teve pix de milhões, ficou milionário. Está todo mundo aí. Pra quem é político é até bom essas porras porque depois ele consegue se eleger fácil. O único que teve pai, filha e esposa envolvidos; o único que perdeu a carreira; o único que perdeu a vida financeira, toda fudida, fui eu”, lamentou.

Por fim, Mauro Cid concluiu dando a entender que não pretende ser a ‘bucha de canhão’ dos preguiçosos golpistas. E que, se necessário for, entregará todo mundo.

“E se eu não colaborar vou pegar 30 ou 40 anos porque estou em vacina, em joia. Então vai entrar todo mundo em tudo. E se somar as penas vai dar mais de 100 anos pra todo mundo. E arrisco dizer que os ‘bagrinhos estão pegando 17 anos, os mais altos vão pegar quanto?”, questionou.

Logo após a divulgação dos áudios, e dada a péssima repercussão para todos os lados, Mauro Cid teria dito a aliados – conforme publicado por Igor Gadelha no Metrópoles – que o áudio é verdadeiro e que se trata e um desabafo feito a amigo próximo. “Foi um desabafo com um amigo. Alguém que teve a vida destruída e está desabando com um amigo”, teria dito. O ex-ajudante de ordens aparentemente não tem muita sorte com suas amizades.

 

Fonte: Observatório da Imprensa/Fórum

 

Nenhum comentário: