A imigração de precarizados no Brasil de
argentinos
O caso de um grupo de
argentinos resgatado em condições análogas à de escravo no Rio Grande do Sul,
ocorrido no fim de janeiro, chama atenção para uma nova tendência migratória
vinda do país vizinho. O movimento já era notado, mas se intensificou na colheita
da uva no começo do ano, gerando filas em postos da Receita Federal para a
emissão de documentos que permitam trabalhar no Brasil. Os estrangeiros – em
sua maioria da Argentina – foram 9% dos trabalhadores identificados em
fiscalização ocorrida nesta safra da fruta, de acordo com o Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE).
‘‘Como dizem os
mexicanos, o sonho americano. Para nós, o sonho [é] brasileiro’’, comenta Jorge
Quiroga, 48, que veio ao Brasil este ano colher uva pela primeira vez. Ele foi
um dos 22 argentinos resgatados em São Marcos (RS) durante a Operação In Vino Veritas,
realizada pelo MTE em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Polícia
Rodoviária Federal. A Repórter Brasil conversou com ele e com outros
trabalhadores do grupo após o flagrante da fiscalização na propriedade em que
eles estavam.
O resgate ocorreu
devido às condições degradantes de alojamento a que foram submetidos, além de
irregularidades no processo de contratação. Eles foram colocados em uma casa
antiga de madeira, uma espécie de galpão, de apenas um cômodo, sem água
corrente e com frestas largas no teto e nas paredes. Ninhos de vespas, aranhas
e outros insetos infestavam o local. As investigações seguem em curso.
‘‘Íamos aguentar. A
única coisa que pedíamos era para ter dinheiro para enviar às nossas famílias,
mas nem isso. Minha filha estava doente, nem um peso eu pude enviar’’, conta
Gastón Rodriguez, 27.
A operação chegou ao
local depois de uma denúncia feita à Polícia Civil gaúcha. Os trabalhadores
afirmam que foram convencidos pela falsa promessa de pagamento de R$6 a R$7 por
caixa de 20 quilos de uva colhida, além de moradia, alimentação e passagens inclusos.
No entanto, ao chegar nos alojamentos, descobriram que tudo ali, segundo
eles, deveria ser pago.
‘‘Na Argentina, não
ganhamos para comprar as coisas, os preços mudaram muito. Aqui, com R$100 você
pode comprar coisas para comer, lá não chega para um dia. Tínhamos pensado em
levar R$3.000, R$3.500 para comprar as coisas das crianças para a escola, passar
dez dias e voltar para trabalhar’’, conta Ricardo Ortiz, 28, que tem três
filhos, outro dos trabalhadores resgatados.
No total, após o
resgate, os trabalhadores receberam R$ 54,9 mil de verbas rescisórias e valores
devidos.
A operação identificou
dois produtores rurais que teriam contratado os serviços dos migrantes através
do “recrutador” Ariel Martins de Souza Morais, também argentino. No dia da
operação, ele foi preso no Brasil pelos crimes de redução de trabalhadores à condição
análoga à de escravo e tráfico de pessoas. A advogada dele, Alexandra
Mascarenhas, nega as acusações e diz que o cliente já foi solto.
‘‘Meu cliente é
inocente, até porque se fossem levar à risca a situação de condição, em
especial de análoga à de escravo, também o tráfico de pessoas, teriam que ser
incluídos aí os produtores, os donos dos parreirais. E isso não aconteceu’’,
afirmou ela.
Questionado pela
Repórter Brasil, o delegado Adriano Amaral, da Polícia Federal, afirmou que os
donos da propriedade em que ocorreu o resgate não são investigados. O inquérito
está aberto e as investigações seguem.
O caso envolvendo os
argentinos aconteceu um ano após outro resgate ligado à cadeia da uva na serra
gaúcha. Depois de uma operação em
fevereiro de 2023, 210 trabalhadores foram resgatados em condições
análogas à escravidão no local que servia de alojamento para terceirizados das
vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, que figuram entre as mais importantes
produtoras de vinhos do país. À época, as empresas assinaram Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho
comprometendo-se a evitar que a situação se repetisse. Na ocasião, os
trabalhadores resgatados, também migrantes, eram brasileiros, a maioria
oriundos da Bahia.
• Novo movimento migratório
Em janeiro e fevereiro
deste ano, segundo servidores públicos ouvidos pela Repórter Brasil, os postos da Receita Federal em cidades da
fronteira do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina observaram saltar a demanda
pela emissão de CPFs, com filas de argentinos para adquirir o documento. O CPF
é necessário para registrar a carteira de trabalho e assinar contratos no
Brasil. Pode ser emitido na hora ou em poucos dias.
Em Dionísio Cerqueira
(SC), fronteira seca com a cidade argentina Bernardo de Irigoyen, o posto local
da Receita registrou 282 pedidos em janeiro – antes, emitia em torno de 50 CPFs
por mês, de acordo com Loreci Pomatti, auxiliar administrativa que atende no
posto local da Receita. Já o cartório local, onde o documento fica pronto
imediatamente, chegou a ter 20 atendimentos por dia no início do ano. ‘‘A gente
chegava e já tinha 50 pessoas acampadas em frente [ao cartório]’’, disse a
registradora civil Vanessa Olmos.
No Rio Grande do Sul,
a Receita Federal gaúcha diz ter recebido em janeiro aproximadamente 300
e-mails por dia solicitando a emissão de
CPF para estrangeiros. Antes, o número de pedidos era em média de 40 a 50 no mesmo
período do ano.
Os safristas com CPF
conseguem formalizar seus contratos de trabalho, mas muitos trabalhadores entram no país com visto de
turista. Nessa condição, trabalham informalmente e retornam à Argentina após o
fim da colheita.
‘‘Na questão
migratória, o Ministério da Justiça, ou seja, a Polícia Federal, tem agido
apenas quando demandado. Pretendemos apresentar o problema para que se discuta
alguma alteração no procedimento migratório dos safristas’’, comenta Rafael Zan
sobre a entrada dos trabalhadores como turistas. Ele é auditor do MTE do Rio
Grande do Sul e coordenador estadual de fiscalização no meio rural.
O aumento da emissão
de CPFs por argentinos é um indício da nova onda migratória, mas os brasileiros
seguem como a principal força de trabalho na colheita da uva. Além dos 9% de
estrangeiros, outros 38% dos trabalhadores na safra atual são migrantes internos,
principalmente do Nordeste. O contingente restante (54%) é formado por pessoas
do próprio Rio Grande do Sul. Os dados foram compilados pela operação In Vino
Veritas e baseiam-se na análise de 300 locais de trabalho na Serra Gaúcha.
• Aumento de contratações na safra da uva
Dados compilados pela
Inspeção do Trabalho do MTE
identificaram, até fevereiro, mais de 8 mil safristas registrados na
colheita da uva. É mais do que o dobro das contratações formais no setor
durante todo o primeiro semestre do ano passado.
O presidente do
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Bento Gonçalves (RS) e região, Cedenir
Postal, afirma que neste ano mais trabalhadores pediram ajuda da instituição no
processo de regularização das contratações. Ele estima que os estrangeiros
foram entre 20% e 30% daqueles que procuraram o sindicato.
Segundo o
sindicalista, muitos empregadores também buscaram a instituição alegando receio
de multa com a fiscalização do governo anunciada na região.
Bruno Ferro de Toni,
27, dono de uma propriedade que produz uva em Pinto Bandeira (RS). Ele
contratou argentinos pela primeira vez para a poda dos parreirais, na metade do
ano passado, e chamou-os novamente para a colheita de 2024.
O produtor conta que
ele mesmo foi até a fronteira, entre El Soberbio e a cidade gaúcha Três Passos,
e acompanhou os trabalhadores durante a emissão de CPFs. O pagamento acordado
entre eles, segundo o empregador, foi um salário mensal de cerca de R$1.600,
moradia, alimentação e passagens de ida e volta para casa.
Fonte: Repórter Brasil
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