A disputa da extrema direita pela Bíblia
A atual relação do
bolsonarismo com os evangélicos não é determinante para o rumo do movimento
evangélico na política. Para que o projeto apelidado de bolsonarismo exista
dentro do evangelicalismo ele precisa, entre outras coisas, de sustentação
bíblica. Ou seja, do uso de textos bíblicos para legitimação da ideologia e
prática política. É por isso que líderes da extrema direita, exploram tanto o
uso de textos e a relação com pastores de influência, eles dependem disso para
garantir uma parcela da base eleitoral. Porém essa legitimação bíblica não
precisa ser encarada como um ponto fechado. Fazer isso seria desprezar o
princípio protestante de “livre exame das escrituras” e entregar a Bíblia para
monopólio de um projeto político. Não é apenas possível, como existem outras
formas de interação entre fé e política a partir da relação com textos
sagrados.
O movimento evangélico
tem a Bíblia como elemento central. Ela pode ocupar diferentes lugares na vida
evangélica: formação teológica, espiritual, simbolismo ou até mesmo devoção
indireta. E o modo como ela é interpretada ou vista é determinante não só para
a formação religiosa, mas para relação de evangélicos com o mundo. Sendo o
movimento evangélico tão amplo e diverso, vale observar que tipo de relação com
o texto bíblico tem sido utilizado para que a extrema direita explore tanto com
fins de política.
É fundamental
considerar que a relação dos evangélicos com o poder é orientada pela
perspectiva bíblica, teológica e de mundo predominante sobre a grande parcela
do movimento.
O protestantismo é uma
forte vertente do cristianismo, e originou inúmeros segmentos, inclusive o
evangelicalismo. Um dos elementos centrais da reforma protestante no século XVI
foi o Sola Scriptura (Somente as Escrituras). Martinho Lutero, principal reformador
alemão, inspirado pela leitura bíblica passou a questionar práticas católicas
romanas adensadas pela tradição de séculos do cristianismo romano. O que deu
origem a um movimento de protesto contra o abuso feito por líderes católicos
que comercializavam indulgências. Lutero desenvolveu suas 95 teses dando
embasamento acurado com os textos bíblicos.
A Bíblia foi um motor
para Lutero e reformadores. E com as novas hermenêuticas o protestantismo foi
sendo modelado. Os textos sagrados foram tão caros para os protestantes que o
direito de livre exame das escrituras foi abraçado como uma conquista religiosa,
além disso gerou um grande esforço para traduções – até aquele momento os
textos eram lidos em latim sob a tutela e monopólio dos sacerdotes romanos.
O elemento do livre
exame rompe com a centralização da interpretação bíblica e rompe também com o
catolicismo romano marcado pela tradição, hierarquia papal e Roma. As
diferentes interpretações teológicas foram se desdobrando no protestantismo
criando um ambiente teológico diverso, descentralizado e sem uma hierarquia
única. O evangelicalismo nasce como um desdobramento desse movimento, são
denominações dissidentes de correntes protestantes da reforma, como por exemplo
metodistas, presbiterianos, congregacionais e batistas. Denominações que no
Brasil são chamadas de igrejas históricas.
Foi nos Estados Unidos
que o evangelicalismo ganhou força e potencial para escalonar em missões de
evangelização mundo afora. E o Brasil é um dos países alcançados pela força
evangelical norte-americana, principalmente com as missões dos séculos XIX e XX.
Sem abrir mão do livre
exame das escrituras, o movimento evangélico vira um celeiro de novas correntes
como o pentecostalismo, maior corrente no Brasil e que tem a maior denominação
evangélica, a Assembleia de Deus. Além disso, o neopentecostalismo dissidente
do pentecostalismo e denominações históricas é a vertente que mais cresceu no
Brasil nos últimos anos. Enquanto em alguns bairros brasileiros se tem apenas
uma paróquia católica é possível encontrar dezenas de espaços evangélicos e com
inúmeras diferenças que vão de pequenos detalhes até as questões mais
teológicas sobre como se vestir, batizar e hierarquia da igreja. Mesmo com
todas essas diferenças a Bíblia sempre está presente nessas correntes, quer de
forma mais simbólica, formativa ou até mesmo como um adereço.
E é por conta dessa
valorização bíblica que o bolsonarismo e a extrema direita se apropriam da
estratégia de uso constante de textos; afinal, a Bíblia é parte do grande e
crescente movimento evangélico. E, a despeito de não ser um campo homogêneo, é
um campo que tem seus elementos comuns unificadores, sendo a Bíblia um deles.
O projeto político de
Bolsonaro soube identificar o enorme espaço que os evangélicos ocupam no
Brasil, soube identificar os interesses de lideranças chaves e gananciosas do
evangelicalismo e por fim soube construir uma linguagem própria com uso de um
livro que todo evangélico tem em casa, carrega na bolsa, mochila e no celular.
Bolsonaro trouxe com força maior a Bíblia para o debate político presidencial e
mexeu com afetos religiosos de uma grande parcela da população. Na esteira,
políticos da extrema direita abraçaram essa estratégia.
No entanto, eles não
trazem apenas a Bíblia. Trazem também uma linha de interpretação palatável ao
projeto político. É com subsídio de interpretações fundamentalistas dos textos
que a extrema-direita tem encontrado um campo fértil de apropriação. Trata-se
de um jogo de interesses em que Bolsonaro cede espaço em palanques para
lideranças evangélicas, usa a oratória evangélica, vai em cultos e aumenta o
poder de influência sobre a comunidade. Não importa que linha bíblica de
interpretação esteja vindo e nem o que ela está gerando na sociedade, o que
importa é que o símbolo está ali, o discurso com os textos e orações estão ali.
E pouco a pouco a
extrema-direita tenta monopolizar a Bíblia, cerceando o livre exame e
diferentes interpretações. Muito da disputa com o bolsonarismo se encontra
nesse lugar. O movimento evangélico precisa resgatar o legado do “livre exame”,
abrindo espaço para outras interpretações bíblicas que garantam saúde na vida
pública e democracia.
Discutir o Estado
Laico é de extrema importância, mas insuficiente. Evangélicos são cerca de 30%
da população e nutrem uma relação profunda com a Bíblia, e isso define muito a
relação com a política. É preciso ir além, correlacionar elementos da coisa pública,
da nossa Constituição com perspectivas e interpretações bíblicas que garantam o
bem comum, inclusive o princípio da laicidade. Interpretações que não fiquem a
serviço da intolerância, racismo religioso, golpismo, homofobia, opressão de
trabalhadores, desassistência do vulnerável, fome, negacionismo científico etc.
Não vamos superar o
autoritarismo antidemocrático com a negação da dimensão religiosa presente na
vida de milhões de pessoas de nosso povo, com negação da presença da Bíblia na
formação das pessoas. Contudo, podemos criar um espaço público e político em que
interpretações religiosas que respeitem e endossam direitos humanos,
democracia, Constituição, justiça e diversidade sejam abrigadas, gerando o
fortalecimento social democrático.
Fonte: Por Lucas
Louback, no Le Monde
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