60 anos do golpe civil-militar: não
rememorar data pode ser um dos piores erros de Lula
A Polícia Federal
avança na investigação sobre a tentativa de golpe de Estado liderada por Jair Bolsonaro com participação de setores das Forças Armadas.
Enquanto isso, o país se aproxima do marco histórico de 60 anos do golpe civil-militar de 1964.
Anualmente, em 1º de
abril, entidades da sociedade civil realizam atos e atividades para rememorar a
ditadura que censurou, perseguiu, torturou, prendeu e matou defensores da
democracia, com o objetivo de homenagear as vítimas e fazer um exercício de memória, “para
que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
Apesar da necessidade
de se relembrar o golpe de Estado e, assim, evitar que erros do passado sejam
repetidos, ainda mais diante de uma nova intentona golpista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou
em entrevista recente que não quer “remoer o passado”.
A declaração veio em
resposta a uma pergunta sobre como lidaria com possíveis celebrações dos 60
anos do golpe por parte de integrantes das Forças Armadas - a exemplo do Clube
Militar, que já marcou, para o dia 31 de março, um almoço de comemoração.
"Eu,
sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais
preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64 (...) Isso já faz
parte da história, já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o
direito de democratizar esse país", disse o presidente.
"Os
generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que
não tinham nem nascido ainda (...) O que eu não posso é não saber tocar a
história para frente, ficar remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história
do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente
desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente,
eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente",
prosseguiu o mandatário.
Para além de dizer que
não quer “remoer o passado”, o presidente teria orientado seus ministérios a
não realizarem eventos oficiais alusivos aos 60 anos do golpe civil-militar. A
ideia seria “apaziguar” a relação com os militares e não tocar em “feridas” que
poderiam tensionar a tentativa de reaproximação.
O Ministério dos
Direitos Humanos, por exemplo, já teria cancelado uma cerimônia que estava
marcada para 1º de abril no Museu da República em homenagem aos perseguidos da
ditadura, segundo informações da Folha de S. Paulo.
Fórum questionou
o Ministério sobre o cancelamento do evento, que solicitou que a reportagem
entrasse em contato com a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República (Secom). Procurada, a pasta alegou, por sua vez, que não há posicionamento
oficial, até o momento, sobre suposta orientação do presidente para cancelar
eventos alusivos aos 60 anos do golpe de 1964 - sem, contudo, confirmar ou
negar a informação.
·
Um dos maiores erros
Em entrevista ao
programa Fórum Onze e Meia, o
jurista Pedro Serrano fez
uma contundente explanação sobre o porquê considera que não rememorar o golpe
de 1964 pode ser um dos maiores erros simbólicos do presidente
Lula.
Segundo Serrano, “há
uma tradição no Brasil de se ocultar os fantasmas dos nossos mecanismos
bárbaros e desumanos” e que houve, após a ditadura civil-militar, uma “equação”
para apaziguar o país, com anistia aos militares torturadores e indenizações
aos perseguidos e familiares de vítimas, mas não houve execução de processos
criminais. Para o jurista, essa seria a “raiz” de boa parte dos problemas que
hoje assolam o país e, inclusive, também seria a raiz da própria prisão de Lula
em 2017.
“Seria importante ter
estabelecido os processos criminais contra os torturadores e agentes da
ditadura, para mostrar claramente o que o processo civilizatório brasileiro
considera o mal extremo consensado. Nós não fizemos isso. Então, não deixamos
para a história marcado o que a sociedade brasileira considera o mal extremo. É
muito ruim ver que uma frente democrática que se uniu para enfrentar a extrema
direita está auxiliando esse processo tenebroso da história brasileira,
profundamente autoritário, raiz de quase todos os nossos problemas”,
analisa.
“Lula não
sabe, mas é a raiz da prisão dele. Ele está errando. Talvez tenha sido o maior
erro simbólico desse governo. Eu não acho que é pouco, eu acho que a gente, a
frente democrática, perdeu seu caráter democrático nesse momento, nesse ato.
Agora, se foi para agradar milico, pior ainda”, pontua.
Serrano sustenta que o
fato de Lula decidir não fazer eventos alusivos aos 60 anos do golpe “vai
descaracterizando a frente democrática” e a “aproximando da política de extrema
direita”.
“Quando a gente não
lembra da ditadura, a gente estimula o menino que está vendo na internet que
ele pode destruir, que é legítimo destruir quem pensa diferente dele. E é isso
que a gente vê reproduzido nesse ambiente. As pessoas se acham no direito de pegar
aquele que pensa diferente e destruir, simbolicamente. Nós acabamos de ter uma
tentativa de golpe de novo. É um imenso erro histórico. Não é um erro mortal,
mas é um erro. Lula tinha que rever isso, tinha que voltar atrás”, aconselha
Pedro Serrano.
·
Contradição
O ex-deputado
estadual Adriano Diogo, que
participou da resistência armada à ditadura militar, foi preso, torturado e,
depois, ajudou a fundar o PT, disse em entrevista à Fórum que essa
postura de Lula não é exatamente nova.
O ex-parlamentar, que
já presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, relembra que, em
2010, Lula foi contrário a mudar a Lei da Anistia - isto é, defendeu, de certa
maneira, o entendimento de que os crimes cometidos na ditadura eram conexos e recíprocos:
“Tanto os crimes cometidos pela resistência ao regime militar, como daqueles
que participaram na repressão e na defesa do regime militar”.
O petista chama
atenção para o fato de que não sabe que “tipo de pressão” o presidente estaria
sofrendo para tomar tal atitude. Adriano Diogo relembra, contudo, que Lula teve
papel fundamental para o fim da ditadura civil-militar e que foi graças à sua eleição
em 2022 que o Brasil não sofreu um novo golpe de Estado. Neste sentido, o
ex-deputado avalia que o presidente cai em contradição.
“Eu, que
sou do PT, que vim da resistência, atribuo a Lula a enorme tarefa que ele teve
de derrotar a ditadura. E foi exatamente em 1979, que através das greves, da
fundação do PT, que a ditadura foi derrotada definitivamente, embora ela
tivesse acabado em 1985. E, agora, nós só estamos aqui nessa situação porque o
Lula e o povo brasileiro derrotaram o Bolsonaro, pois, senão, nós estaríamos
numa outra ditadura. Então, é uma enorme contradição. Às vezes, eu tendo a
achar que, entre escolher o passado ou o presente, ele escolheu enfrentar o
presente, que é a tentativa do golpe do Bolsonaro”, assevera.
Adriano Diogo, no
entanto, afirma esperar que Lula reconsidere sua posição e compareça aos atos
democráticos que serão realizados pela sociedade civil em 31 de março, como a
Caminhada do Silêncio, que acontece todos os anos em diferentes capitais do
país.
·
Hora de punir os golpistas
Em 30 de março de
2023, o Ministério dos Direitos Humanos realizou a primeira sessão pública da
Comissão de Anistia, que foi reformulada após ser aparelhada no governo
Bolsonaro, para anistiar e indenizar um grupo de perseguidos pelos militares na
ditadura.
Um dos anistiados que
recebeu reparação foi o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), preso e
torturado pelos militares nos anos de chumbo.
Em entrevista
à Fórum, Ivan Valente afirmou que, no marco de 60 anos do golpe militar,
há “tudo a lembrar e denunciar”. Segundo o parlamentar, foi “a impunidade dos
militares responsáveis pelas prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos
de quem defendeu a democracia, a liberdade e a igualdade é que lhes deu asas
para construir o infame 8 de janeiro de 2023 ,tentativa de golpe fracassada
para perpetuar um genocida no poder com apoio da cúpula militar”. Para o
deputado, trata-se de um “erro grave” por parte de Lula não rememorar
a data para preservar a relação com os militares.
“A hora é
de punir os golpistas de sempre como fizeram Argentina, Chile e Uruguai. É a
única forma de nunca mais acontecer. Não é por vingança. É pedagógico. É por
memória, justiça e verdade. Erro grave é achar que isto melindra os militares e
as Forças Armadas. Eles devem desculpas à nação e têm que se recolher às suas
funções constitucionais. Nunca poderão achar que são tutores da nação ou 4º
poder. Democracia exige justiça”, sentencia.
Ø Sob Lula é proibido lembrar prisões arbitrárias, torturas, luta
armada e o legado de 1964
José Murilo de
Carvalho escreveu que “são os historiadores, no presente, que constroem o
passado”. Em outras palavras — e parafraseando Cecília Meireles —, o passado só
é possível reinventado. É, por isso, uma obra aberta: cada época dispõe de
informações adicionais, mais ferramentas teóricas e — para o bem e para o mal —
novas ideologias.
Sai a história dos
vencedores, entra a dos vencidos — a mesma cena, com enquadramento diferente,
um recorte que privilegia um personagem em detrimento de outro. Figurantes
assumem protagonismo — o que não quer dizer que, sob mirada futura, não possam
voltar a ser nota de rodapé. Talvez por isso o tempo que passou seja tão
imprevisível quanto o que ainda está por vir.
Nossa geração viu
Jesus deixar de ser judeu (e loiro, de olhos azuis…) para se tornar um moreno
revolucionário palestino e marxista avant la lettre. Viu o Descobrimento do
Brasil virar invasão imperialista.
O bandeirante herói da
nossa infância — que se embrenhava, intrépido, mata adentro e fez o país dobrar
de tamanho — se transformar em vilão escravagista. A celebrada conquista da
Amazônia (“inferno verde” onde árvore boa era árvore derrubada) se revelar um
desastre ambiental.
Maleável, o passado se
presta a todo tipo de fabulação (que era como os antigos chamavam, com mais
propriedade, o que hoje denominamos “narrativas”).
Sobre o Grito do
Ipiranga não ter sido bem um grito — tampouco exatamente às margens do célebre
riacho —, Machado de Assis escreveu:
“Minha opinião é que a
lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resume todo o fato da
independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma cousa vaga e
anônima”.
A lenda é sempre mais
sedutora. Quem vê Deodoro da Fonseca nas pinturas, embalado pelos ideais de
ordem e progresso, desembainhando a espada para derrubar o Império decadente e
instaurar um regime de mais liberdade e cidadania, talvez não saiba que o marechal,
adoentado, atravessou com dificuldade o campo em frente à sua casa, montou
brevemente num cavalo, proclamou (arfante) o novo regime, apeou e voltou para a
cama. E o país continuaria com mentalidade escravista e colonial.
Nas palavras de José
Murilo, “na República que não era, a cidade não tinha cidadão”. Mas teriam o
mesmo significado, hoje e naquela sexta-feira de 1889, as palavras “cidadão” e
“república”?
Estamos às vésperas do
60º aniversário do 31 de março. Tivesse Bolsonaro sido reeleito (ou melado a
eleição), não faltariam “intelectuais” dispostos a desconstruir os 21 anos de
ditadura e reerguer a fachada da Revolução Redentora que nos livrou do comunismo.
Como quem está no
governo é Lula, esperava-se que a data fosse um momento de reflexão, de
relembrar os perigos da radicalização, o valor da democracia e do respeito às
instituições.
Mas a ordem é entrar
em modo amnésia coletiva. Não provocar debates sobre prisões arbitrárias, luta
armada, desaparecidos, censura, tortura, direitos humanos (“Circulando,
circulando! Não tem nada para ver aqui!”).
Sexagenário, o 64 de
Lula não é golpe nem revolução: é um silêncio covarde.
A História vai continuar
sendo (re)construída ao sabor tanto da inteligência dos que se dedicam a
iluminá-la quanto dos interesses de ocasião dos que preferem deixá-la nas
sombras. Oscilando não só entre a lenda e a versão anônima e vaga, mas entre o
respeito à memória e o limbo das conveniências.
¨ Lula investe em “boas relações” com militares nos 60 anos do
golpe de 64
A cerca de duas
semanas do aniversário do golpe militar de 1964, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva mantém a estratégia de não fustigar as Forças Armadas. Decisões como a
suspensão das celebrações oficiais em memória daquele 31 de março de 60 anos atrás
e a demora para recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, no
entanto, viraram alvo de críticas de historiadores que pesquisam as relações
entre a política e a caserna.
O Ministério Público
Federal (MPF) recomendou este mês a recriação da comissão, uma bandeira do
ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Desde março de 2023, Lula tem
pronta uma minuta de decreto para reinstalar o colegiado, mas ainda não bateu o
martelo sobre quando isso ocorrerá.
A interlocutores,
conforme noticiou a colunista Bela Megale, Lula tem dito que se preocupa mais
com o golpismo contemporâneo, manifestado no processo que culminou no 8 de
janeiro do ano passado, do que com o de 1964.
O ministro da Defesa,
José Múcio Monteiro, já acertou com os comandantes das Forças Armadas, segundo
a colunista Malu Gaspar, que não haverá manifestação oficial dos militares da
ativa no próximo dia 31 de março. A intenção de Múcio, endossada pelos comandantes,
é deixar o assunto de lado, em mais um esforço para distensionar o ambiente
entre o Palácio do Planalto e a caserna.
Há forte resistência
nas Forças Armadas à volta da comissão, a ponto de o presidente do Superior
Tribunal Militar (STM), Joseli Parente Camelo, ter declarado que o retorno do
colegiado é “completamente desnecessário” e falar que não se pode “olhar o país
pelo retrovisor”.
No fim do ano passado,
o ministro Silvio Almeida rebateu Camelo: “Desnecessário é achar que podemos
virar a página da História de um passado de dor, simplesmente varrendo a
sujeira para debaixo do tapete”.
Na intenção de superar
a relação de desconfiança com os militares e em um momento delicado, com
depoimentos de ex-comandantes das Forças Armadas sobre a suposta tentativa de
golpe de Estado por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro, Lula acaba, na visão
de pesquisadores, tentando “virar” de forma equivocada uma página da História.
Recordar o golpe, diz
João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos
(Ufscar) e autor de diversos livros sobre a atuação da caserna na República,
seria um meio de construir memória e evitar a repetição de capítulos lamentáveis
do passado.
Fonte: Fórum/O Globo
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