OPERAÇÃO
ESCUDO ESCOLHEU ALVOS PELA FICHA CRIMINAL, DIZ HOMEM QUE SOBREVIVEU A TIRO À
QUEIMA-ROUPA
EVANDRO
ALVES DA SILVA estava concentrado no escritório de trabalho, variando
entre a pressa e o sentimento de orgulho, conforme contaria depois. Sua tarefa,
naquela tarde de segunda-feira, 28 de agosto, era organizar os panfletos que
ele e os mototaxistas da sua equipe distribuiriam pela região do Morro do José
Menino, bairro de Santos, no limite com a cidade de São Vicente.
O lugar é
conhecido pela vista exuberante, um atrativo para os aventureiros que
desejam um voo de asa delta. Enquanto finalizava os últimos detalhes para
iniciar a entrega do material, dois policiais invadiram seu escritório no meio
daquela tarde chuvosa.
“Eles
chegaram falando: ‘não olha na nossa cara! Quem aí tem passagem?’. Meu colega
ficou nervoso, falou que tinha, mas que era moleque quando tudo aconteceu. Eles
mandaram a gente encostar a cara na parede, e também me perguntaram se eu tinha
passagem. Eu disse, “pô, chefe, tá vendo esses panfletos aí? Me chamo Evandro,
sou o responsável aqui do mototáxi do Morro da Asa Delta”, relembrou.
Evandro
nos contou que teve receio de admitir sobre sua passagem pelo sistema
prisional, anos atrás. Em 2001, ele foi o motorista em um caso de
sequestro-relâmpago, que terminou em morte. Foi condenado a 25 anos, dos quais
20 foram cumpridos em regime fechado e a última parte em regime aberto. Seu
temor em confessar seu histórico tinha fundamento.
Naquela
tarde, a Operação Escudo já acumulava um saldo de 23 execuções – até receber a
primeira ordem de suspensão, fecharia com ao menos 28 mortes contabilizadas. A
maioria das vítimas tinha antecedentes criminais .
“Expliquei
o trabalho que a gente fazia. Aí o policial falou para o colega, “deixa quieto”
e começaram a sair. Mas aí o outro policial virou e me perguntou: “como é que
tu não tem passagem?”, aí eu falei que algo aconteceu quando eu era moleque.
Mostrei meu RG, eles bateram foto e, depois de dois dias, voltaram”,
completou.
·
Policiais militares voltaram para executar
Evandro
O medo de
Evandro, de fato, se concretizou em menos de 48 horas depois da primeira
abordagem. Na manhã do dia 30 de agosto, o mototaxista estava sozinho, nu e
prestes a entrar no banho quando foi baleado à queima-roupa por policiais do 5º
Batalhão de Ações Especiais de Polícia, o Baep, da cidade de Barueri.
“Eles
gritaram e eu levantei acreditando ser um dos motoboys, porque tinha acabado de
fazer a cópia da chave para cada um deles. Quando eu abri a cortina do banheiro
e olhei, ele já estava com a 12 [arma] na janela da sala, e nisso disparou”,
relembrou.
Ao ser
baleado com os dois primeiros tiros, Evandro sentiu que estava prestes a
morrer. Em uma última tentativa de se salvar, pulou da janela do banheiro: uma
altura de sete metros – número confirmado pelo laudo da Polícia Científica.
Ele, um homem negro de 1,76m, ficou 23 dias em coma. Teve o pulmão perfurado,
oito costelas quebradas, perdeu o baço, mas sobreviveu para contar esse relato
e denunciar a violência policial sofrida.
“Hoje eu
tenho umas crises de pânico. Me dá uma falta de ar, não posso ver uma viatura,
ainda mais quando é toda preta como da Baep. Já me trava todo. Dá vontade de
correr, de sumir. É algo que só quem passa sente”, desabafou.
A chacina
policial na Baixada Santista ficou popularmente conhecida como Operação
Vingança. Isso porque foi desencadeada como uma resposta à morte do soldado
Patrick Reis, no dia 27 de julho, no Guarujá. Dias depois, as forças policiais
começaram a agir na cidade de Santos, após a policial Najara
Gomes levar um tiro de fuzil nas costas, na manhã de 1º de
agosto.
Nos seis
dias seguintes à ocorrência contra Evandro, haveria mais quatro mortes
registradas dentro da operação, totalizando o número de 28 mortes e 900 pessoas
presas. Houve denúncias de execuções sumárias, invasão a escolas, derrubadas de casas e
comemorações de policiais pela morte das vítimas.
Em 5 de
setembro, após intensa pressão de parte da sociedade civil e órgãos nacionais e
internacionais, a Secretaria de Segurança Pública anunciou o fim da Operação Escudo.
O saldo de
mortes aumentaria menos de 72 horas depois do fim da primeira fase. Ao menos
outras três pessoas foram vítimas de ações policiais por causa de uma nova
etapa da Operação Escudo, iniciada após a morte do sargento aposentado Gerson Antunes Lima, na noite do dia 8 de
setembro, enquanto varria a calçada de sua casa, no bairro Cidade Náutica, em
São Vicente.
Moradores
da Baixada Santista, desde então, têm enfrentado um clima de intimidação e de
medo, mas não deixaram de manifestar o sentimento de revolta.
·
Evandro diz que teve arma plantada após
ataque policial
Na mesma
tarde em que Evandro foi baleado, mototaxistas que trabalhavam com ele passaram
as horas seguintes mobilizando grupos de Whatsapp de colegas que atuam em toda
a Baixada Santista para que comparecessem a um protesto na Avenida da Praia da
ilha de São Vicente.
As imagens
da sede dos motoboys destruída não demoraram a rodar em grupos de moradores de
Santos e São Vicente. A estratégia funcionou e, por volta das oito horas
da noite, um dos principais cruzamentos da avenida teve o trânsito parcialmente
interrompido pelos moradores, em um protesto pacíficos com a presença de
crianças e adolescentes. Ainda assim, a multidão foi dissipada com balas de efeito moral disparadas pela polícia.
Nós
conversamos com Evandro no escritório de advocacia que sua esposa divide com o
irmão. Lá, onde há uma estátua da deusa da justiça Têmis, eles contaram que
temem confiar no judiciário, pois Evandro passou a ser investigado e corre o
risco de responder a um processo por porte ilegal de arma.
“Além de
tudo que fizeram ainda me jogam uma arma. Falaram que eu estava pelado, com a
arma na mão, no meio da sala. Disseram que me viram com a arma na mão, que me
pediram pra largá-la, mas que fui andando com ela na direção deles, mesmo com
um policial com uma 12 apontando pra mim. Eu não tinha arma, não andei, não
apontei pra eles. Eu levei dois tiros na direção do peito. Tudo isso que eles
contam é ficção”, rebateu Evandro.
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Perícia não buscou saber quantos tiros
Evandro levou
Anna e
Evandro não sabem, com exatidão, quantos tiros Evandro levou – uma resposta que
tampouco a equipe de médicos que o atendeu no Hospital da Santa Casa
Misericórdia de Santos soube precisar.
Há uma
marca nas costas do mototaxista, que não foi avaliada pelos médicos nem no dia
em que ele foi levado à UTI, mas que Anna reconhece como similar às outras
deixadas pelos disparos que Evandro recebeu no peito.
Ao
reconstituir o dia do ataque, Evandro afirmou que reconheceu um dos policiais
que o abordou, dois dias antes. Ele afirma que o mesmo agente que efetuou o
primeiro tiro, da janela da sala do escritório, também estava na abordagem
anterior.
“Eles não
estavam encapuzados [no dia da abordagem]. Falaram pra gente não olhar pra
eles, mas eu consegui ver e gravar [o rosto]. No dia que atiraram em mim, o
maior deles estava lá.”, contou
Ao
cair ao chão, Evandro lembrou que ainda tentou levantar e pedir clemência à
polícia, mas ele afirma que levou mais um tiro nas costas nesse momento.
Fingiu-se de morto até chegar o serviço de remoção do Corpo de Bombeiros,
acionado pelos agentes – esse é um procedimento padrão adotado em São Paulo, em
casos de mortes em decorrência de intervenção policial.
Quando
eles chegaram, constatou-se que Evandro ainda estava vivo. Então, foi chamado o
Samu para socorrê-lo. A última lembrança de Evandro desse momento é um
profissional de saúde discutindo com os policiais, no que ele acredita que
tenha sido uma ação impedindo que fosse executado.
Depois
disso, Evandro passou 23 dias em coma, e mais vinte dias internado, até que
recebeu alta, no começo de outubro, com traumas físicos para recuperar, e um
quadro severo de síndrome de pânico. Hoje, ele não consegue ficar mais
sozinho.
No início
de dezembro, uma operação policial próxima da sua casa levou Evandro a ter uma
nova crise de pânico, enquanto estava sozinho com a filha mais nova.
Imediatamente, ele atravessou a balsa de Guarujá até Santos, por acreditar que
estaria em perigo caso a polícia batesse à sua porta. Um vizinho ofereceu uma
carona de moto e, na garupa, Evandro viu de longe dois agentes do Baep levando
um morador para um beco escuro.
“Eu só
botei a roupa do corpo, subi na moto e saí. Quando eu vi os caras no beco, só
falava para o menino ‘me leva, me leva’, não conseguia enxergar mais nada” ,
recordou.
·
Esposa se sentiu ameaçada pelos policiais
no hospital
No dia em
que Evandro foi baleado, Anna estava saindo de outra unidade de saúde com a
filha mais nova do casal, na época com apenas um ano de idade, e que tinha
passado mal na noite da véspera. Quando estava a caminho de casa, recebeu um
telefonema de um dos colegas de Evandro, informando que o marido dela havia
acabado de levar um tiro.
Ao chegar
ao hospital, Anna contou que demorou para se dar conta da situação que levou o
marido a ser baleado. A princípio, ela acreditou que Evandro havia sido vítima
de uma bala perdida, mas conforme foram passando as horas da cirurgia, soube
que o marido estava sob escolta policial e que haviam feito a acusação do porte
ilegal de armas. Ela contou que não deixaram que se aproximasse dele até
conseguir autorização da justiça, que saiu logo após a audiência de
custódia.
No
primeiro momento, o juiz da audiência de custódia, Diego de Alencar Salazar
Primo, alegou que Evandro não tinha bons antecedentes e não tinha “emprego
fixo” e que, mesmo entubado, punha em “risco a sociedade”, conforme escrito em
trecho da decisão.
Nos dias
seguintes, Anna também precisou lidar com situações em que se sentiu ameaçada
pelos policiais que faziam a escolta. Antes do marido sair da emergência, ela
chegou a vê-lo algemado ainda entubado e, em um desses dias, foi abordada por
um sargento do 2º Baep de Santos.
“Ele
chegou em mim e perguntou ‘Você que é a Anna?’. E ele nunca tinha me visto. E
então ele me pediu para confirmar se eu morava em tal bairro, se era o endereço
certo. Aquilo foi me assustando. Tentei conversar. Ele queria ouvir de mim o
que tinha acontecido, mas foi um dia em que eu passei a me sentir ameaçada”,
lembrou.
Em 6 de
setembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu ao pedido do
promotor Daniel Azadinho Palmezan Calderaro, e determinou que o mototaxista
pudesse responder em liberdade a investigação policial sobre porte ilegal de
arma.
Isso
significa que há um inquérito policial sobre o caso, mas que ainda não avançou
para o judiciário — em outras palavras, a justiça ainda não recebeu a denúncia.
No
processo do marido, Anna também reuniu cerca de nove depoimentos de pessoas que
contratavam Evandro para entregas na época em que ele foi baleado – desde
moradores do Morro até donos de padarias ou de lojas de roupas que acionaram o
mototaxista para trabalhos em outras regiões da Baixada Santista.
·
Volta por cima foi interrompida pela
violência policial
Anna
Marques e Evandro Alves estão juntos há duas décadas, em uma história que a
advogada destacou como “rápida e forte”. Ela tinha acabado de terminar o
primeiro semestre do curso de Direito quando o conheceu. O namoro ainda
começava a engatar quando Evandro foi preso. Logo depois, veio a notícia da
gravidez inesperada.
Ela disse
que ficaria com ele, desde que cumprisse uma série de combinados. O principal
era abandonar de vez qualquer tipo de ligação com o crime. Em 2021, Evandro
conquistou o direito de cumprir o resto da pena em regime aberto. Mas, ao
deixar a penitenciária, teve dificuldade de se recolocar no mercado de
trabalho. A solução foi trabalhar com entregas como mototaxista.
Anna e
Evandro não moram em Santos. Essa é uma das alegações que sustentam na peça de
defesa. Assim como boa parte dos mototaxistas, o Morro do José Menino era um
ponto de trabalho para ele. Montar uma equipe lá foi uma ideia que o próprio
Evandro teve, após observar que, apesar de ser uma das regiões mais populosas
da cidade e ter um dos pontos turísticos mais procurados na Baixada Santista,
tinha problemas de transporte.
Quando a
polícia invadiu a sede, o grupo estava prestes a completar seis meses de
trabalhos, e com uma casa recém-alugada para servir de sede, panfletos
impressos, e iniciando uma fidelização da clientela.
·
Defesa de Evandro sustenta que arma foi
plantada pelos policiais
Após quase
quatro meses sendo uma das advogadas do marido, Anna Marques renunciou ao caso.
O motivo foi a sobrecarga emocional que o caso exige. A Defensoria Pública de
São Paulo assumiu a defesa. Mas, antes da renúncia, ela ainda solicitou o exame
de corpo de delito quando Evandro ainda estava no hospital, as câmeras da rua e
do posto de saúde municipal, além de dados sobre como aconteceu o chamado ao
Samu.
Procurei o
Hospital da Santa Casa de Santos, levantando os pontos aos quais Anna fez os
questionamentos. Em nota, a unidade se limitou a responder que não tomou
conhecimento de nenhuma dessas situações.
No
inquérito sobre Evandro, a promotoria também solicitou laudos complementares ao
2º DP de Santos, como perícia do local, da arma apreendida que foi atribuída a
Evandro e exame residuográfico nas mãos dos policiais e do
mototaxista.
Após o
Ministério Público solicitar que Evandro respondesse em liberdade, abriu-se um
inquérito paralelo contra os agentes do 5º Baep de Barueri.
Logo após
o recesso do fim de ano do Tribunal de Justiça, a investigação sobre a conduta
dos agentes policiais ganhou um novo desdobramento: a perícia da arma, que foi
atribuída ao mototaxista, foi anexada com a informação de que havia vestígio de
pólvora nela. Isso indica que ela havia sido usada momentos antes dos
acontecimentos daquele dia. Para a defesa, a informação pode ajudar a
esclarecer que a arma foi plantada e que teria sido utilizada pelos próprios
policiais durante a ocorrência, já que, em momento algum da investigação, os
policiais não acusaram Evandro de ter realizado disparos, em revide.
Além
disso, o Ministério Público intimou à Polícia Militar de Barueri para que
envie, até o final do mês, os vídeos das câmeras acopladas nas fardas dos
policiais que atuaram no dia da ocorrência.
Desde que
o marido foi baleado, Anna também procurou se unir a movimentos sociais da
cidade de Santos e a outras famílias de vítimas da Operação Escudo. Em 13 de
setembro, a advogada organizou um protesto no centro da cidade de Santos, em
memória às vítimas fatais da operação policial.
“O estado
que está tirando a oportunidade de Evandro viver em paz. Ele estava
trabalhando. E mesmo que não estivesse, a polícia não tinha o direito de atirar
para matar”, desabafou.
Já Evandro
pede justiça contra quem tentou matá-lo. “Se eu passei todo esse tempo pagando
pelo erro que eu cometi lá atrás, agora quero a certeza de que os policiais
também vão pagar com a justiça”.
·
As investigações da Operação Escudo
Em
dezembro, a justiça de São Paulo acatou a denúncia feita pelo Ministério Público contra
dois policiais pela morte de Rogério de Andrade Jesus, de 50 anos, no Guarujá,
no dia 30 de julho.
Uma das
primeiras vítimas da Operação Escudo, Andrade teria sido alvejado dentro de
casa pelo sargento Eduardo Araújo, que teria contado com a ajuda do soldado
soldado Augusto Oliveira para obstruir as câmeras nas fardas, além de forjar
uma arma no local.
Questionados
sobre as investigações que resultaram no afastamento dos policiais desse caso e
nos demais inquéritos em aberto sobre a Operação Escudo, os promotores
preferiram não comentar até o momento.
A
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo foi procurada para falar do
atentado contra Evandro e explicar se as câmeras nas fardas dos policiais foram
solicitadas pelo departamento de investigação; se câmeras de ruas foram
solicitadas e, por fim, por que não foi feito exame de corpo de delito na
vítima.
A pasta
ignorou as perguntas feitas pelo Intercept, mas enviou uma nota dizendo que
todas as ocorrências de morte durante a Operação Escudo são “investigadas pela
DEIC de Santos e pela Polícia Militar, por meio de inquérito policial militar”.
A nota também afirma que “todo conjunto probatório apurado no curso das
investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, está sendo
compartilhado com o Ministério Público e o Poder Judiciário.”
Ainda na nota, a Secretaria sustentou a tese que “o homem citado foi ferido
após reagir a uma abordagem policial”. E pontua que, na ocasião, os policiais
do Baep realizavam patrulhamento na região, quando viram “ouviram indivíduos
correndo para dentro de uma viela”. Eles também afirmam que Evandro
“apontava uma pistola em direção a equipe policial, que deu ordem de parada,
mas o homem não obedeceu e os policiais intervieram”.
A nota
ainda informa que Evandro foi socorrido para o hospital, e defendem que com ele
foi apreendida uma pistola Glock, além das armas dos policiais da ocorrência.
Fonte: The
Intercept
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