O Norte
global quer um novo Potosí
Desde 1998
estamos envolvidos no (mal)chamado programa de comércio
eletrônico ou, como recentemente começou a ser chamado, de economia
digital. O projeto materializou-se em 2017 na negociação de um Acordo sobre Comércio Eletrônio entre 88 vários países que decidiram fazer o que no jargão
se chama de “iniciativa de declaração conjunta”. O texto avança OMC
(Organização Mundial do Comércio) e, se assinado, será vinculativo e executável
para todos os membros.
Poucos
sabem disso em detalhes. Permanece opaco por muitos atores políticos,
especialistas em tecnologia, movimentos sociais e formuladores de políticas
públicas. E representa, em suma, um verdadeiro problema para regular a
indústria digital, para gerar uma inserção inteligente da Argentina nas cadeias
globais de valor de produtos baseados em inteligência artificial e para
garantir que a tecnologia esteja a serviço da sociedade com padrões
verificáveis.
·
A matéria-prima
Para que
algo seja matéria-deve existir uma indústria que lhe dê valor e o torne
vendável de forma massiva no mercado. Os dados, então, são os principais
produtos da indústria digital. Mas do que falamos quando falamos da indústria
digital? Num processo industrial, uma matéria-prima heterogênea e
dissimilar entra em uma fábrica, é processada até a obtenção de um produto
homogêneo e idêntico, e são realizados controles de qualidade para que possa
ser colocada de forma massiva no mercado. Este processo geral é aplicável a um
pano, a um litro de óleo e até a um carro.
Os dados,
nesse caso, entram na fábrica algorítmica: um maquinário treinado para
transformá-los em informações facilmente vendáveis e muito valiosas para o
mercado. Os controles de qualidade nada mais são do que o treinamento que lhes
damos através da internet. Todos os dados que geramos tornam-se informações
valiosas para as empresas: elas os utilizam para construir nossos perfis como
consumidores. Quando aceitamos ou rejeitamos ofertas, quando dizemos que uma
tradução está mal feita ou quando simplesmente ignoramos uma sugestão de
publicação, estamos ajudando a verificar se as previsões feitas a nosso
respeito são verdadeiras ou não. Depois que essas grandes empresas das
indústrias digitais verificam as informações, elas as vendem no mercado para
empresas menores que pagam para poder anunciar aos consumidores que desejam
comprar seus produtos.
Esta
indústria digital pode ser replicada nas mais diversas áreas: desde campanhas
políticas, passando pela produção e logística de produtos, até à otimização na
gestão dos trabalhadores. Estamos, cada vez mais, imersos nesta enorme fábrica
de informações sobre quem somos e sobre as nossas relações humanas.
As
controvérsias em nível global, porém, não esperaram. Embora possa ser muito
útil para a economia e muito confortável em alguns aspectos, os abusos e o
enorme poder concedido a muitas empresas tecnológicas deram origem a debates
sobre a sua regulamentação. Deveríamos deixar escândalos como o Cambridge Analytica acontecerem
sem quaisquer consequências? É lícito que a engenharia do nosso
comportamento acabe matando uma menina de 14 anos?
Nesse
sentido, diversas instâncias reguladoras são discutidas na ONU através, por
exemplo, do Pacto Digital Global,
iniciativa que busca lançar as bases para o que se espera do futuro digital das
nações, emitindo princípios que os Estados devem seguir ao regular e desenhar
de políticas públicas. Mas há uma agenda regulatória que vem avançando de forma
crescente há alguns anos e que já teve avanços em acordos plurilaterais entre
duas ou mais nações: a agenda de livre comércio na economia digital.
·
O acordo
O acordo
de economia digital tem muitas partes e mudanças dependendo se está dentro da
OMC ou num acordo bilateral entre países. Existem vários limites, definições e
artigos, mas os artigos básicos e seus efeitos permanecem de negociação em
negociação. O seu objetivo é liberalizar a cadeia produtiva, parte por parte,
tentando fazer com que os grandes players da indústria digital
percam concorrentes e se estabeleçam como donos dos monopólios que geram maior
valor acrescentado na economia.
O
documento estabelece a livre mobilidade dos dados: as empresas têm a
possibilidade de levar toda a informação recolhida para onde quiserem,
impedindo o acesso dos Estados e proibindo requisitos de localização ou
processamento. Os dados são o que a economia chama de bens “não rivais”,
aqueles que mais de uma pessoa pode consumir ao mesmo tempo sem que isso
implique o seu esgotamento. Se bebo um copo de água ele acaba instantaneamente,
mas o mesmo não acontece quando subo num trem, vejo um quadro num museu ou faço
uma aula: são bens e serviços que posso consumir com outras pessoas e o quanto
mais os consumimos, mais nos beneficiamos como sociedade.
A mesma
base de dados pode, então, ser utilizada para ganhos empresariais, para
conceber políticas públicas, para pesquisa acadêmica, para compreender
processos demográficos ou para conceber novas ferramentas para comunidades
específicas. Concentrar estes dados em poucas mãos e limitar o seu acesso
equivaleria a construir um trem para uso de apenas uma pessoa, algo que
claramente não faz sentido. Se acrescentarmos a isto que a maior parte dos
dados são armazenados em paraísos fiscais para escapar das mãos dos reguladores e das comunidades que os
geraram, é possível perceber a intenção monopolista desta captura de valor.
O acordo
também estabelece que os dados podem sair da fronteira livres de taxas
alfandegárias. Ou seja, o bem mais valioso atualmente nas economias pode ser
extraído por pessoas ou empresas estrangeiras sem deixar rendimentos para a
população que o gerou. Igual à extração de prata de Potosí: extrativismo de
matéria-prima sem qualquer benefício para o território que a possui.
Outro dos
seus artigos determina que um Estado não pode exigir que uma empresa tenha
acesso aos algoritmos e ao seu código fonte associado (ou seja, às instruções
executadas pelo algoritmo escrito na linguagem de programação específica) para
auditar ou transferir tecnologia. Uma proposta não menos controversa. O perigo
de um sistema automatizado desenvolvido com preconceitos discriminatórios
decidir sobre nossas vidas já está documentado em livros, artigos acadêmicos e
campanhas de divulgação. A Liga da Justiça Algorítmica foi criada para lutar contra isso.
Como se
não bastasse, o acordo de livre comércio na economia digital tem outras
pérolas. Propõe-se isentar as plataformas da responsabilidade pelos conteúdos
que publicam. Num mundo onde se debate o impacto das notícias falsas na
democracia ou da venda de conteúdos de pedofilia nas redes sociais, isto
torna-se cada vez mais problemático. Todas estas questões devem ser debatidas
por especialistas para alcançar urgentemente uma regulamentação que evite os
efeitos nocivos deste conteúdo e a sua circulação nas redes. A assinatura do
acordo vai na direção oposta.
·
Salve-se quem puder
Hoje
existe um discurso hegemônico […] que diz que aqueles que estudam programação e
trabalham para o Vale do Silício exportando serviços de informática não só
serão salvos, mas levarão a região a ser o gigante que sempre sonhou. Não
estaremos exportando a commodity da hora humana do programador para
que ele possa entrar no mercado numa tecnologia estrangeira como, por exemplo,
um telefone celular? […] O acordo de economia digital limita o acesso aos dados
e restringe a oportunidade de debater como regular a “fábrica algorítmica” das
indústrias digitais com o objetivo de avançar para uma sociedade mais humana e
com diversas tecnologias no mercado internacional.
Em outubro
de 2023, o governo de Joe Biden retirou parte do projeto que havia apresentado para negociação anos atrás: os artigos que
decidiram reconsiderar são a proibição da auditoria algorítmica e a livre
mobilidade de dados. Até o império tecnológico que são os Estados Unidos
percebeu o grande problema que estes pontos implicavam. Embora o acordo
cambaleie na OMC, estas regulamentações avançam noutros acordos de comércio
livre.
É por esta
razão que organizações da sociedade civil que defendem os direitos digitais na
região, ONGs especializadas em questões de livre comércio, entre outras, assinaram uma carta pedindo
aos Estados que se retirassem da negociação e reconsiderassem, primeiro, quais
são as regulamentações nacionais necessárias para criar espaços regulatórios
que conduzam à inovação e ao desenvolvimento tecnológico regional. A reunião
ministerial da OMC que acontecerá em Abu Dhabi de 26 a 29
de fevereiro deste ano busca avançar na negociação e colocar o projeto de volta
na mesa, garantindo que os 88 países que dele fazem parte cheguem a um acordo.
Existe um
caminho possível, e parece ser o de criar tecnologias com elevado valor
acrescentado, qualidade e padrões globais, novas e inteligentes. Este acordo
empurra na direção oposta a esses objetivos. Esta não é a primeira vez que
alguns burocratas na Suíça – que entendem muito sobre comércio liberal, mas
pouco sobre economias mais humanas – negociam acordos de comércio livre para
decidir o destino da região. Temos muito a oferecer no mercado global. Não
vamos permitir novos saques. Não sejamos Potosí novamente.
Ø
Se meu apartamento falasse (às Big Techs…).
Por Rôney Rodrigues
Esqueça a
ideia ingênua de que um pedaço de fita crepe, na câmera de seu notebook,
impedirá as Big Techs de devassar seus segredos. As Big Techs já desenvolveram
novo método para invadir sua vida, conhecer seus hábitos e desejos
(prevendo-os, às vezes) e oferecê-los à publicidade. Um estudo pioneiro
realizado por várias universidades e centros de pesquisas – entre eles, o
Proper Data e as universidades de Berkeley e Northeastern – revela como
dispositivos de “casas inteligentes” comunicam-se entre si – algo que nunca
fora comprovado. A lista é longa: smartTVs, eletrodomésticos, sensores de
iluminação, alto-falantes, termostatos, assistentes virtuais, câmeras de
segurança, etc. Tudo que é conectado a uma rede wifi local pode comunicar-se
entre si e enviar informações via aparelhos como smartphones.
Para
provar isso, a equipe de pesquisadores promoveu uma “grande balada de
aplicativos”, como o El Pais contou, com bom humor. Um laboratório-apartamento foi criado, onde 100
aparelhos IoT – sigla para a “internet das coisas”, ou seja, rede de objetos
capaz de reunir e transmitir dados – foram conectados e seus “comportamentos”,
analisados. Resultado: quando um dispositivo era ligado, logo ele usava o wifi
do local para reconhecer a outros dispositivos, extraindo informações deles.
“A
exposição dessas informações sem controle”, disse Narseo Vallina-Rodríguez, um
dos pesquisadores, “permite que serviços de publicidade ou aplicativos espiões
criem uma impressão digital de sua casa que a identifique de forma exclusiva ou
possa inferir seu nível de renda e hábitos” – além de monitorar a dinâmica e
quem entre e sai de uma casa.
O impacto
desta pesquisa se estende muito além da academia, frisou o portal Techxplore.
“As descobertas sublinham a necessidade imperativa para os fabricantes,
criadores de software, operadores de plataformas móveis e de IoT, bem como para
governantes, de tomarem medidas para melhorar as garantias de privacidade e
segurança dos dispositivos domésticos inteligentes.”
É possível
que estes aparelhos IoT possa ser hackeados para espionagem política – em 2022,
um empresário que fornece softwares de vigilância a polícias e Forças Armadas
brasileiras gabava-se que a Alexa é
“uma grande solução de escuta ativa em uma residência”. Mas a principal
preocupação dos pesquisadores é com a “vigilância comercial”: assim como muitas
páginas na internet fazem uma impressão digital do usuário
para reconhecê-lo, mesmo quando cookies são excluídos,
permitindo que as Big Techs dirijam suas publicidades, o estudo mostra que é
possível, na teoria, fazer o mesmo com casas e famílias específicas. Afinal,
mostrou-se ser muito fácil descobrir quando um casal se separa ou o nível de
renda de amigos que vão a sua festa de aniversário, provoca o El Pais, em
sua reportagem.
Fonte: Por
Sofia Scasserra, na Revista Anfíbia | Tradução: Rôney Rodrigues, para Outras
Palavras
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