Kapinawás:
meio século de luta pelo território sagrado no Vale do Catimbau
Jurema no
sertão é árvore tenaz: quando se acha que morreu, rebrota. Pode-se cortar,
derrubar, queimar, roçar; na primeira trovoada, as folhas rasgam de novo o solo
em busca da luz.
Mesma
coisa os Kapinawá, povo que tem na jurema o mais sagrado dos vegetais, ponte
cósmica entre os de cá e os encantados. Também eles, quando se acreditava
extintos, ressurgiram.
“E quando
ela [a jurema] nasce, os galhos dela são muito mais fortes”, sublinha Mocinha
Kapinawá.
Aconteceu
no tempo do Corte dos Arames. Quando Maria Bezerra da Silva, hoje liderança na
aldeia Mina Grande, era de fato moça. Adolescente ainda, mas já na linha de
frente na luta contra o coronel Romero Maranhão e seus grileiros.
Conta
Mocinha que, desde meados dos anos 1970, os moradores da Mina Grande, hoje a
maior aldeia do território Kapinawá, vinham sendo pressionados pela ofensiva de
fazendeiros interessados em tomar as terras da região. “Por causa da riqueza
que nós temos aqui, que é a água.”
De fato: o
território Kapinawá coincide, em termos geográficos, com o do Vale do Catimbau,
ponto privilegiado no interior de Pernambuco, onde o agreste vira sertão, cujo
emaranhado de serras armazena abundância de mananciais – água de excelente
qualidade, que brota nos sopés, irriga a vegetação e dá de beber a quem dela
precisar.
Pois foi
nos arredores da Mina Grande – cujo nome não é à toa – que as famílias
começaram a assistir ao avanço de cercas de arame sobre suas roças, pastos e
matas, sob alegação de que aquelas eram terras “devolutas”. Zuza Tavares, líder
dos grileiros e também sogro do prefeito de Buíque, encarregava-se de forjar as
escrituras na prefeitura. “Aí começou o sofrimento”, diz Mocinha.
E começou
porque os Kapinawá não aceitaram aquelas cercas: de modo sistemático,
puseram-se a cortar e queimar todo arame que se levantasse em suas terras. Em
represália, os fazendeiros respondiam com ameaças de morte, casas derrubadas e
roças queimadas. Em 1981, na vila do Catimbau, próxima à Mina Grande, chegou a
haver uma troca de tiros com os jagunços a serviço dos grileiros, resultando na
morte de dois deles.
Isso
aconteceu na mesma época em que os Kapinawá estavam se descobrindo indígenas.
Antes disso, haviam se acostumado a ser chamados de “caboclos” – que no sertão
é a designação genérica e depreciativa para a população autóctone cuja
ascendência se ignora –, e assim acreditaram ser até que um documento assinado
pela princesa Isabel provou o contrário.
Na mesma
década de 1970, um grupo de aldeados da Mina Grande fora trabalhar na
construção da BR-110 em Ibimirim, terra dos Kambiwá. Foram esses que
mencionaram a existência de uma escritura imperial, datada de 1874, cujo texto
falava da doação de terras aos moradores da aldeia de “Macaco dos Índios”, em
agradecimento pela participação na Guerra do Paraguai.
Pois
Macaco não só é o nome de uma das aldeias mais antigas do território Kapinawá
como o documento também esmiuçava todos os limites das terras doadas, incluindo
o nome das famílias beneficiadas – que os Kapinawá reconheceram como seus
antepassados. Pesquisas complementares revelaram que a aldeia de Macaco já era
conhecida desde o século 17 como morada de indígenas, referidos como Paratió
(ou Prakió), aparentados com os Kambiwá.
Tudo levou
a crer, portanto, que esses Paratió eram os mesmos Kapinawá de hoje, esquecidos
de seu passado e – mais importante – alienados do fato de que eram donos de
direito daquelas terras, com a benção do imperador.
Como a
jurema, os Kapinawá rebrotaram com força redobrada no chão da Caatinga, já não
mais como caboclos, porém indígenas. Renascidos, deram-se novo nome, revelado
em ritual pelos encantados, cujo significado seria “capim e água” – dois
recursos que existem em abundância no território.
O
parentesco e a proximidade com os Kambiwá ajudaram, tanto que dois deles
acabaram se tornando mestres dos Kapinawá em sua jornada de
autorreconhecimento. Dôca e Zé Índio foram os primeiros cacique e pajé dos
Kapinawá, encarregados de reensinar práticas havia muito esquecidas – entre
elas o toré.
O toré é
um ritual comum a vários grupos indígenas do Nordeste brasileiro e se
fundamenta no consumo do anjucá, o “vinho da jurema”, bebida sagrada cujo poder
mágico leva as pessoas ao transe e ao contato com os encantados – forças
espirituais ligadas aos ancestrais e à natureza. “A jurema é uma mãe pra
gente”, resume Mocinha.
Sabendo-se
indígenas, e fortalecidos pelo toré, os Kapinawá se lançaram a um conflito que
durou três anos, com repetidos cortes de arame. Sempre que os grileiros
levantavam uma cerca, as famílias da Mina Grande não tardavam em derrubá-la.
“A gente
dançava o ritual à noite e saía com foice às 3 horas da manhã pra cortar o
arame. Ia criança, idoso, todo o mundo. Depois queimava”, diz Mocinha. “Pra
resumir, foi cortado o arame sete vezes. Com a força dos encantados, a gente
conseguiu.”
·
Os de dentro e os de
fora
No último
corte de arame, os fazendeiros desistiram. Para os Kapinawá, começou uma nova
luta, a de reconhecimento como indígenas e legalmente donos de seu território
por parte das autoridades – um longo processo que só se materializou em 1998,
quando a Terra Indígena Kapinawá foi
finalmente homologada, com 12.260 hectares de área.
A reserva,
hoje com 14 aldeias, corresponde mais ou menos à extensão das terras doadas
pelo Império em 1874, delimitadas pelos riachos do Macaco ao sul e do Catimbau
ao norte. A questão é que havia também aldeias Kapinawá para além do Riacho do
Catimbau, ainda mais ao norte – que ficaram de fora da Terra Indígena.
“O cacique
da época não levou em conta as famílias que estavam espalhadas do lado de cá”,
conta Socorro Kapinawá (de sobrenome Silva França), liderança da aldeia
Malhador, a maior da chamada Área Nova.
Como a
jornada de reconhecimento de indianidade se concentrou na Mina Grande e nas
aldeias adjacentes, onde também a luta por território foi mais violenta, o que
se conta é que as comunidades ao norte do Riacho do Catimbau ficaram um tanto
alheias a esse processo. No momento de demarcar a Terra Indígena, nem todas
quiseram se envolver.
“É meio
complicado falar isso, mas quando vieram fazer a demarcação teve aldeia que não
quis participar”, revela Mocinha.
O
antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio, conhecido como Guga,
conselheiro-diretor da Anaí (Associação Nacional de Ação Indigenista) e
professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), acompanha de perto os
Kapinawá desde o tempo do Corte dos Arames.
Ele
confirma a fala de Mocinha: “Quando foram fazer o estudo da terra, não era toda
comunidade que se sentia à vontade de se submeter à Funai. E como essas
comunidades não estavam sendo ameaçadas, a Funai deixou de fora.”
Não que
elas também não vivessem seu próprio inferno fundiário. As terras ali,
consideradas devolutas, haviam sido tituladas por usucapião a particulares e
então vendidas a fazendeiros. Muitas famílias Kapinawá foram expulsas nesse
processo, outras se tornaram inquilinas dos territórios ocupados e algumas
poucas resistiram, confinadas a uma dúzia de aldeias.
Quando
essas aldeias decidiram também lutar por seu território, já era tarde: apenas
quatro anos depois de homologada a reserva indígena do lado de lá do riacho, a
Área Nova foi convertida em Parque Nacional.
·
Uma grande lousa de
pedra
Não eram
poucos os motivos para a criação do Parque Nacional do Catimbau,
em 2002. Esta é uma das áreas de maior diversidade biológica e geológica da
Caatinga: um conglomerado de serras, vales, desfiladeiros, cavernas, chapadas e
formações rochosas onde crescem 613 espécies de plantas –
incluindo enclaves de Cerrado, matas úmidas e campos rupestres. Ao menos 192 espécies de aves foram
registradas aqui, além de alguns répteis endêmicos.
Além
disso, a paisagem do Catimbau – de grande beleza, por sinal – vem sendo lugar
de pouso e passagem para povos originários há pelo menos 6 mil anos, conforme
atestam as numerosas ossadas e registros lavrados em pedra por toda a região.
O Parque
Nacional do Catimbau tem a segunda
maior concentração de pinturas rupestres do Brasil – 64 sítios arqueológicos catalogados –, atrás apenas da
Serra da Capivara, no Piauí. Uma grande lousa de pedra que Ronaldo Kapinawá
conhece muito bem.
“O Parque
Nacional foi meu parque de diversão na infância”, diz Ronaldo Siqueira, filho
de Socorro, guia turístico e arqueólogo formado pela Universidade Federal do
Cariri, onde foi estudar a versão oficial da história dos povos originários
para então voltar para casa e reescrevê-la segundo a versão Kapinawá.
“Tá vendo
esse desenho aqui, que os arqueólogos interpretam como palma da mão?”, diz
Ronaldo, apontando no celular uma das pinturas rupestres presentes no parque.
“Pra mim é outra coisa”, ele assegura, e então levanta os olhos para a visão
panorâmica do vale que se desdobra a seus pés. “Olha aí na paisagem essas
palmeiras. Vê se essa pintura não é um conjunto de babaçus? Não tem nada a ver
com mão humana. Tanto que o dedão nem aparece.”
Para
Ronaldo Kapinawá, os “letreiros” do Catimbau – como são chamadas localmente as
inscrições rupestres – são mapas topográficos que os povos de passagem pela
região desenhavam para indicar a presença de água, frutos e caça. Cada imagem,
um sinal: palmeiral, leito de rio, formação rochosa.
“Já é o
quarto mapa que eu consigo identificar aqui no vale”, ele diz, mostrando mais
um sítio arqueológico no celular, com a certeza de quem é íntimo tanto do
território onde nasceu quanto da arte que foi ali inscrita, possivelmente
deixada pelos seus ancestrais. “Eu tenho essa visão porque meu olhar é nativo.
Eu sou um historiador da minha própria história.”
“E eu
tenho um grande professor, que me diz o que cada desenho significa”, revela
Ronaldo, um tanto enigmático. “É o tronco velho dos Kapinawá, todos aqueles que
já se foram e deixaram registrada sua história. Bisavôs, tataravôs, eles estão
aqui espiritualmente, eles guardam esses sítios. Pra mim é como ler um livro
que eles escreveram.”
No
entanto, apesar de toda a evidência de continuidade da presença de povos
originários no vale, nem um único indígena foi consultado quando o Governo
Federal decidiu destinar 62.300 hectares para a criação de um Parque Nacional.
·
“E aí a gente foi pra
luta, né?”
“O Parque
Nacional do Catimbau foi criado sem nenhum trabalho de campo. Foi criado com
foto aérea”, diz o antropólogo Guga Sampaio. “Isso é muito comum no Brasil:
você vê de cima que tem pouca gente morando e cria ali um parque nas áreas que
as comunidades tradicionais preservaram. Aí você remove quem preservou.”
E houve
mesmo a tentativa de remoção das 45 famílias que habitavam a área na época
pelos órgãos competentes (primeiro o Ibama, depois o ICMBio), inclusive durante
o governo Lula, com direito a diversas reuniões de intimidação com as
autoridades.
Eram seis
as aldeias Kapinawá que se viram inteiramente dentro do parque, além de outras
seis que ficaram numa zona intermediária entre a Terra Indígena e o Parque
Nacional, fora de ambos, mas que usavam o perímetro deste para caça, criação de
cabras e coleta de frutos. No total, 147 famílias foram afetadas.
“A gente
estava bem quietinho e de repente aparece aí um Parque Nacional sem nos
consultar”, conta Socorro Kapinawá, sentada na varanda de sua casa, na aldeia
Malhador, de frente para uma vasta área de Caatinga que ela mesma vem cuidando
de preservar.
“E a gente
sofreu muita pressão na época. O representante do Ibama veio pra cima da gente
e disse: ‘vocês vão sair daqui’. E aí a gente foi pra luta, né? Procurou os
órgãos que podiam nos defender e nos ajudar.”
Entre
esses órgãos estavam o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Associação
Nacional de Ação Indigenista (Anaí), esta na figura de Guga Sampaio, que teve
papel crucial ao intermediar o processo de autoidentificação das comunidades
como indígenas junto à Funai, duas décadas depois do pessoal da Mina Grande.
“Só quando
o parque foi criado, com restrição de uso, que as comunidades falaram: ‘a gente
aqui é indígena’”, lembra Guga, justificando a demora em relação aos outros
Kapinawá: “Ser indígena no Brasil é difícil, você sofre pra diabo. Pra você
dizer que é indígena tem que ter um bom motivo. Ou seja, quando está ameaçado.”
O
reconhecimento chegou, mas a luta não parou. Ganhou inclusive ares de guerra
quando, em 2011, os Kapinawá souberam que a sede de uma fazenda dentro do
Parque Nacional seria transformada em pousada. Lideradas pela aldeia do
Malhador, famílias de quase todas as 26 aldeias Kapinawá marcharam até a
casa-grande e tomaram posse dela, num processo que ficou conhecido como
Retomada.
O que se
estabeleceu de lá para cá, e se mantém até hoje, foi um acordo de convivência
entre os indígenas e a gestão do Parque Nacional, a cargo do ICMBio –
ressalvadas, é claro, as restrições que por lei se aplicam a qualquer Unidade
de Conservação de Proteção Integral. E é por causa delas que a tensão persiste.
·
Tem um parque no meio
do caminho
“Pra tudo
a gente tem que pedir permissão a eles”, reclama Socorro Kapinawá. “Não pode
botar energia em casa sem antes pedir ao gestor do Parque Nacional. Não pode
cavar poço. Não pode retirar material pra ajeitar as estradas. A gente tem um
material de primeira aqui, que é a piçarra [um tipo de cascalho], que a água
não arrasta. É muita areia aqui, não dá pra trafegar. Mas eles não deixam.”
E ela
continua: “se a gente precisa de madeira pra ajeitar uma cerca, construir uma
casinha, tem que pedir permissão pra tirar no vale. Mas a gente conhece a
Caatinga e sabe qual é a árvore que brota novamente depois que corta, que tem
esse poder de regeneração. Tem o angico, a catingueira, a sacatinga, o bálsamo…
Eles querem impedir que a gente faça uma coisa que a gente sabe como fazer, e
que vem preservando há tanto tempo.”
A essas
queixas, Jailton Fernandes, chefe do Parque Nacional do Catimbau desde 2021,
responde dizendo que “a gente não se opõe ao reparo nas estradas. O problema é
que eles querem tirar de dentro do parque. Vai alterar a paisagem. Precisa ter
um projeto pra gente autorizar”.
Sobre a
retirada de madeira, diz Jailton que “não tem problema coletar dentro da
própria área. A gente não proíbe. Eles sabem como fazer, deixam regenerar. Se
não tem dano ambiental, a gente autoriza. O que não pode é desmatar e vender o
material.”
E, de
fato, tanto Socorro quanto Jailton concordam que há casos de retirada criminosa
de madeira de dentro do Catimbau. “Os índios inclusive comunicam quanto tem
infração ambiental”, diz o chefe do parque.
Mas
Socorro pede mais: “Queríamos formar uma parceria pra defender a Caatinga,
pegar o pessoal que corta madeira, pega passarinho pra vender, mas eles não
fiscalizam. Jailton argumenta que “somos só dois funcionários efetivos aqui – e
eu sou um deles.”
Para
Socorro, porém, o mais doído é a restrição de acesso a lugares que os Kapinawá
têm como sagrados. Jailton sustenta que os indígenas são livres para circular
pelo parque, mas Socorro insiste que “existem muitos lugares que a gente não
pode ir mais porque virou lugar turístico. A gente agora tem que ir como
turista, e não como filho da terra.”
Um desses
lugares é o Santuário, um anfiteatro natural em arenito esculpido por água e
vento que, segundo Socorro, é “morada dos encantados, um local muito sagrado”.
E, como esse, “existem muitos locais que hoje são rota de turistas que sempre
foram sagrados. E sempre serão. Só que a gente não pode mais andar por lá. Não
pode mais ir fazer um ritual. Tem que olhar de longe, só com vontade de fazer”,
ela diz, com os olhos em lágrimas.
·
Mestre Aroeira, Mestre
Angico, Mestre Jatobá
Porque,
acima de tudo, o Vale do Catimbau é território sagrado para os Kapinawá.
“É nas
matas que vivem os encantados”, explica Mocinha. “Quando a gente precisa se
fortificar, a gente bota o pé na terra. Vai pra mata pedir força aos nossos
ancestrais.”
Um toré
regado a vinho de jurema quase sempre acontece na oca central das aldeias, mas
é comum que seja feito também no meio da Caatinga – sobretudo se envolver um
ritual de cura – ou dentro das muitas cavernas que se espalham pelo Vale do
Catimbau.
Essas
cavernas os Kapinawá chamam de “furnas”, a maioria forrada de registros
rupestres – para os indígenas, prova inequívoca de que seus antepassados
passaram por lá (e, de fato, foram encontrados muitos enterramentos ali).
“Esses lugares nos dão força. É lá que estão nossos ancestrais”, diz Ronaldo.
Ancestrais
esses que, segundo os Kapinawá, se encantaram e foram habitar o reino mágico do
Juremá para então descer de volta à terra quando convocados por meio do transe
da jurema, quando se manifestam como “caboclos” ou “mestres”. Mestres esses,
como explica Ronaldo, que são a própria personificação das árvores da Caatinga:
Mestre Aroeira, Mestre Angico, Mestre Jatobá…
Em terras
Kapinawá, a Caatinga é alimento que fortalece corpo e espírito. Quando não são
os encantados, é a própria carne dos frutos e a nervura das folhas que serve de
sustento, alicerce e cura. Sobretudo em tempos de escassez.
Tome-se
como exemplo o ouricuri (Syagrus coronata), “nossa mãe de leite”,
segundo Mocinha. “A gente usa pra tudo.” Do coquinho dessa palmeira nativa,
tira-se leite e óleo. Do tronco, o palmito e o bró, um tipo de farinha. Da
palha, o teto das ocas e o chapéu tradicional Kapinawá. Da raiz, um chá medicinal
para tirar dor das costas. “Uma das plantas mais sagradas que tem para gente é
o ouricuri”, resume Socorro.
E há
outras: caroá, bacupari, cambuí, maçã-do-mato, aroeira, sacatinga, baraúna –
frutas de comer, palhas de trançar e ervas de curar que só a Caatinga dá. “Tem
mais de dez anos que não vou ao hospital. Minha cura está aqui, com os
encantados e as plantas da Caatinga”, diz Ronaldo.
Claro
está, portanto, que os Kapinawá não vão desistir tão cedo deste território que
é templo, despensa e farmácia. “A gente só quer ter livre arbítrio de viver nos
nossos espaços, de poder usufruir da nossa terra sem que eles estejam no nosso
pé”, diz Socorro. “A gente está no que é nosso, eles é que chegaram depois.”
“Tem um
processo encalhado na Funai”, conta o antropólogo Guga Sampaio, que está
acompanhando de perto a luta Kapinawá. “A solução que está sendo dada é o que
chamam de dupla afetação“, ele
explica. “Para não ter que desconstituir um Parque Nacional, você estabelece
uma Terra Indígena na forma de gestão compartilhada.”
Guga diz
que o modelo foi inicialmente adotado na Ilha do Bananal, em Tocantins, hoje
tanto Parque Nacional do Araguaia quanto Terra Indígena Inãwébohona, onde vivem
os Karajá e os Javaé. Mesma coisa em Roraima, onde a Terra Indígena Raposa
Serra do Sol se sobrepõe ao Parque Nacional Monte Roraima. “E tem dado certo
aqui no Monte Pascoal, onde vivem os Pataxó”, diz Guga.
No
Catimbau, ele argumenta, “como a gente sabe que a demarcação vai demorar, a
gente vê que os esforços de convivência estão indo bem. O que eles [a gestão do
parque] têm feito é colocado os Kapinawá como guias, como responsáveis pela
preservação”.
·
A folhinha da jurema
Pois é
isso que os Kapinawá estão fazendo. Enquanto a lei não lhes concede a terra que
é de direito – e enquanto os poucos funcionários do parque não dão conta de
mantê-la –, eles mesmos decidiram cuidar do Catimbau.
Ronaldo
começou recuperando uma área degradada deixada pelo avô há dez anos. Socorro se
ocupa em coletar sementes. “Peguei mania”, ela diz. “Onde eu passo, se eu vejo
uma semente, eu vou lá e apanho. Quando chego em casa, já vou logo colocando
num vasinho.”
E são
infinitos os vasos na varanda de Socorro, cujas mudas um dia serão árvores como
as que já crescem no quintal, entre elas um angico, um mandacaru e um jucá de
seis anos onde “já dá pra sentar na sombra”. “Quando vi que tinha um terreiro
tão grande em casa, decidi que ia começar a recaatingar por aqui.”
Recaatingamento é o
nome que se dá a uma série de práticas que buscam recuperar a Caatinga em áreas
onde está degradada – protegendo-a dos rebanhos, reflorestando e, como se diz
por aqui, “plantando água”. “A gente faz pequenas contenções onde essa água vai
ser armazenada e voltar para o solo, irrigando os lençóis freáticos”, explica
Ronaldo.
Tudo isso
em meio a quintais produtivos – “a gente chama de agrocaatinga“,
diz Socorro –, em que matas e roças agem em sinergia para incrementar a
segurança alimentar, o que tem feito da aldeia do Malhador o maior laboratório
de agroecologia do território Kapinawá.
Um centro
de experimentos que tem como núcleo a escola indígena Saturnino Vieira de Melo,
da qual Ronaldo é coordenador e onde dezenas de crianças aprendem a recaatingar
elas mesmas o território Kapinawá. Do domo geodésico que serve de viveiro já
saíram 2 mil mudas de ipê, imburana, jatobá e outras tantas espécies da
Caatinga, doadas a famílias de todo o território para que as plantem em seus
terrenos.
“Estamos
passando para as crianças esses ensinamentos que vêm dos ancestrais”, explica
Ronaldo. “Fazer isso reflorestando, recaatingando, plantando água. Criar esse
elo das pessoas com o território.”
“A
Caatinga tem um poder muito forte de regeneração”, observa Socorro. “Quando
você acha que a árvore tá morta, dá uma chuvada e 15 dias depois você vê a
força com que vêm as folhinhas novas. Como é que uma terra dessas é fraca?”
Ainda mais
se for terra Kapinawá, povo juremeiro em que desde cedo as crianças são
iniciadas não só nos cuidados da Caatinga como também na ligação com sua força
mágica. “Até as crianças tomam o vinho da jurema”, diz Socorro. “Porque, para
preparar os guerreiros de amanhã, tem que começar hoje, né? Em todo toré elas
estão dentro.”
Mocinha
confirma: “Nós somos semente de jurema”. E emenda com o canto que encerra todo
toré, cuja melodia só não rasga sozinha o silêncio do terreiro central da Mina
Grande porque subitamente o vento sopra e parece que todas as árvores resolvem
cantar junto: “A folhinha da jurema/que o vento vai levando/vai levando e vai
levando/e os caboclo acompanhando…”
Fonte:
Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário