Egydio Schwade: Brasil indígena precisa de
outras Forças Armadas
Tenho 88 anos. E
faltava apenas um mês para completar meus 79, quando fui convidado a acompanhar
14 guerreiros Yanomami em uma ação de destruição de dois garimpos ilegais,
instalados na terra Yanomami, em um afluente do rio Couto de Magalhães, próximo
à fronteira da Venezuela. Durante a longa viagem de ônibus até Boa Vista, 45
minutos de avião, navegando pelos rios Mucajaí e Couto de Magalhães e,
finalmente, caminhando pela floresta até o destino, me perguntava: por que
convidaram a mim e não às Forças Armadas? Só tive condições de carregar algumas
cartelas de ovos do espólio conquistado!
A história das Forças
Armadas brasileiras é muito triste. Muitos povos indígenas massacrados por
militares. Sempre senti que os militares se envergonham e procuram ocultar a
realidade da sua participação nesses feitos necrófilos. Como da violência
cometida na construção de rodovias genocidas: na BR-163, massacrando o povo
Panará; na Transamazônica, o genocídio dos Parakanã, Diahui, Tenharim; e na
BR-174, o genocídio dos Waimiri-Atroari. E quantas vidas e territórios
indígenas foram soterrados nos lagos de hidrelétricas, como na Itaparica, no S.
Francisco. A Ilha da Viúva era a nesga de terra, ou única “ovelhinha” que
restava ao Povo Tuxá. Com a memória indelével do amigo Antônio Conselheiro, que
compartilhou sua vida de sofrimento, organizou o cemitério e ali inspirou a
fraternidade de Canudos, tudo foi ao fundo por ação das Forças Armadas.
Durante os 20 anos de
Ditadura Militar, os povos indígenas e as populações ribeirinhas e
seringueiras, sofreram muito: perda da terra, perda da sua autonomia e de
muitas vidas. A sua missão principal na Amazônia foi esmagar os povos
indígenas, com rodovias e hidrelétricas e despojar as populações ribeirinhas e
seringueiras de seus direitos à terra, à saúde e à educação, forçando-as a
conquistar espaço como ‘invasoras’ nas periferias urbanas.
Essa foi, é, e
continua sendo o objetivo maior das Forças Armadas. São 523 anos prestando
serviços equivocados às elites gananciosas que se apossam, insaciavelmente, do
território brasileiro, reprimindo e massacrando a quem resiste e defende seus
direitos. Não só os povos indígenas, mas também as lutas populares: a Revolta
de Frei Caneca e a Confederação do Equador, no Pernambuco; a Balaiada, no
Maranhão; a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul e o povo Guarani na
Guerra do Paraguai… E a família Lima e Silva, pai e filho, este o patrono do
Exército Brasileiro muito envolvidos. Neste mês, faz 268 anos em que os
exércitos de Portugal e Espanha massacraram o povo Guarani do Rio Grande do
Sul, em Caobaté.
Em novembro de 1974, o
Comando Militar da Amazônia-CMA, com assinatura do Gal. Gentil Paes, então
Comandante do 6º BEC, empenhado na construção da BR-174, assinou treze medidas
repressivas contra os Waimiri-Atroari, entre as quais se lê: “Esse Comando, caso
haja visita dos índios, realize pequenas demonstrações de força, mostrando aos
mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da
destruição pelo uso de dinamite” (Of. 042-E2- 21-11-1974).
Creio que nenhuma
instituição brasileira conseguiu manter por tanto tempo uma história de ódio
contra os mais fracos do seu povo como as Forças Armadas brasileiras. Que
diferença tem a ação dos generais da Ditadura Militar que, há meio século,
invadiram o território Waimiri-Atroari, assassinando mais de 80% do seu povo,
com a ação do Mem de Sá, há 524 anos, cuja covardia contra os Tupininkim, do
Espírito Santo, ficou gravada na triste fundação da Vitória, no Espírito Santo?
Quando defenderão o direito dos brasileiros ao seu chão?
Canudos, Cabanos,
Balaiada… é hora de alguém ir ao encontro das Forças Armadas, ocupar os seus
centros de formação para lhes ensinar uma nova lição. Ajudá-los a se
transformarem em seres uteis à nação. Após tanta participação em ações iníquas,
defendendo dinheiro, dinheiro das suas contas, da conta dos banqueiros e de
empresários, acordem e, como o Rei Davi acordou, peçam um coração de carne que
transforme o serviço de ódio contra os fracos em missão de solidariedade que
lhes encha os corações de real orgulho.
Em 1959, fiz um
estágio no Hospital Militar de Porto Alegre. Uma cena que me impactou foram os
últimos momentos de vida de um militar que lutou na Guerra do Contestado. O
fato de ter participado numa guerra suja a serviço de poderosos, contra pobres
sertanejos, lhe doía no coração, naquele final da vida.
Vivi também momentos
de esperança com militares. Em 1968, com auxílio da Secretaria de Educação do
Rio Grande do Sul e do colega Thomaz Lisboa realizamos um Projeto Rondon local,
nos Toldos indígenas daquele estado. Ali, testemunhei a alegria dos soldados,
nossos motoristas envolvidos em uma ação solidária, diferente daquela a que são
treinados no quartel.
Entre 1973 e 1980,
como Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), fiz
muitas viagens pela Amazônia. E me vali, algumas vezes, dos Serviços da Força
Aérea Brasileira (FAB), em seus voos de Catalina e C-47 de controle da
fronteira e apoio aos indígenas e ribeirinhos da região. Ali vivenciei momentos
que mereciam mais incentivo dos comandantes das Forças Armadas. Nas paradas ao
longo do Rio Negro: Tapuruquara, Sta. Izabel… Presenciei o carinho com que os
militares eram recebidos pelas comunidades, pelo apoio que traziam àquela gente
pobre. Em mesinhas improvisadas nos aeroportos, serviam café, suco,
bolachinhas… o que, na sua pobreza, podiam oferecer. E aqueles soldados
irradiavam pelo seu olhar uma satisfação interior real. Voltando do serviço
prestado, voando sobre as fronteiras do Cucuí, do Pico da Neblina ou dos
sinuosos afluentes do Solimões, comentavam com o coração eufórico os valores
dessa gente humilde vivenciados, confortando e realizando suas vidas.
Entre 1974 e 1975,
percorri o Goiás, Maranhão, Pará e Amazonas, visitando remanescentes dos povos
originários, onde me ocorreu promover uma assembleia de lideranças desses
povos, na aldeia Cururu dos índios Munduruku, no Alto Tapajós. Uma ideia louca.
Fui manifestá-la a Dom Tomás Balduíno, presidente do CIMI. Dom Tomás, sem
pestanejar, me retrucou: “Egydio, vamos amanhã a Belém falar com o Camarão,
Comandante Militar da Amazônia” E lá fomos nós, no dia seguinte, voando no
aviãozinho de Dom Tomás Balduíno, pilotado por ele mesmo, rumo a Belém.
O Comandante Camarão
nos recebeu sem demora. Ouviu em silêncio o relato e o pedido de apoio da FAB
para a realização da Assembleia de lideranças indígenas no Alto Tapajós. Ao
final, batendo o punho na mesa, quebrou o silêncio: “É isto que estes índios ainda
precisam! Podem contar com a FAB”. E o Camarão enviou aviões para todos os
lados indicados por nós, recolhendo lideranças do Amapá: Galibi, Karipuna e
Palikur; da Serra do Tumucumaque: Tiriyo e Kaxuiana; do Goiás: Xerente; e do
Mato Grosso: Nanbikuara, Paresi, Rikbaktsa, Manoki, Kayabi, Apiaká, Bororo,
Xavante e Tapirapé. E aquela assembleia na aldeia Munduruku, em maio de 1975,
foi uma das maiores já feitas.
Muitos anos depois, o
grande indigenista do CIMI, Egon Dionísio Heck, a propósito de estudo sobre a
ação dos militares na Amazônia, foi entrevistar o Comandante Camarão, já
aposentado, o qual recordava com muita satisfação aquele feito. Após ter tido o
privilégio de presenciar esse maravilhoso evento na aldeia dos Munduruku,
inverti a exclamação do Camarão: “É isto que os militares ainda precisam! Eis a
sua missão! Podem contar com o povo brasileiro necessitado!”
Entretanto, no mesmo
maio de 1975, outro General, Ismarth de A. Oliveira, presidente da Funai, nos
enviou ofício proibindo a Dom Tomás e aos membros do Secretariado do CIMI, a
entrada em todas as áreas indígenas do país. E a razão alegada foi o fato de não
o ter convidado e avisado da Assembleia. Essa proibição foi mantida até o final
da Ditadura Militar. O que não nos causou grande prejuízo. Foi o período em que
visitei mais áreas indígenas no país. Sem a necessidade de pedir autorização,
percorri o país livremente, em todas as direções. Embora controlado
rigidamente, como revelam os arquivos da Ditadura Militar, fora das cidades, a
gente entrava na penumbra dos remanescentes de povos indígenas que já não
existiam mais para o Governo Militar, ficando o nosso principal refúgio e
abrigo contra a repressão.
Tive também
oportunidade de conhecer a trajetória de um oficial das Forças Armadas que
atuou na construção da rodovia BR-174, o Gal. Altino Berthier Brasil, que me
passou os originais do livro de suas memórias na construção da BR-174: “O Pajé
da Beira da Estrada”(1986), dedicado “Ao anônimo irmão Waimiri-Atroari, cujo
cadáver mal enterrado deparamos, muitas vezes, pela frente”. Ali faz seu
“confiteor”: “…Na hora do angelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas
noites equatoriais, comovido, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços
anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me parecia
condenada a um triste e melancólico fim…”. E não foi no governo Lula que vimos
pela primeira vez os garimpeiros sendo expulsos da Terra Yanomami. Lembram-se
do Secretário do Meio Ambiente do governo Collor, José Lutzenberger? Seu
assessor imediato foi Altino Berthier Brasil. Por ordem dos dois, em 1991, os
aeroportos dos garimpeiros, na área Yanomami foram bombardeados e os
garimpeiros retirados.
Imagina se o dinheiro
investido no fracassado Projeto Calha Norte, dos militares, tivesse sido
aplicado na proteção dos povos indígenas e de seus territórios?
Não desejo que os
militares continuem sendo máquinas de ódio ou nem meros cumpridores de ordens.
Infelizmente, desde 1500, o foram e são de governos e de gente que fez, faz,
prescreve e determina o cumprimento de leis, para cuja elaboração os donos da
terra nunca foram convocados.
Cada pessoa humana tem
o direito e o dever de cumprir a Lei da Liberdade, a ciência congênita,
inscrita desde sua concepção em seu coração e que a chama à solidariedade.
Soldados e generais também são sujeitos desta Lei da Liberdade, sem o que não
plenificam as suas vidas.
Lei inconstitucional retira direitos
sociais de quem luta por reforma agrária no Mato Grosso
O governador do Mato
Grosso, Mauro Mendes (União) aprovou no começo de fevereiro uma lei que impõe
penalidades ao que chama de “invasores” de terras privadas no estado, seja no
campo ou na cidade.
A Lei 12.430 diz que
quem for identificado como ocupante ilegal não poderá receber assistência e
benefícios dos programas sociais do governo estadual, assumir cargos públicos
de confiança ou firmar contratos com o estado.
O procurador Júlio
Araújo, do Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro, disse que a lei
é claramente inconstitucional e pode estimular conflitos por terra. Segundo
ele, os direitos sociais são conquista da população — e não uma concessão
opcional de governos estaduais.
“Essa lei traz muita
preocupação por conta de uma série de desrespeitos ao conjunto de direitos que
a Constituição estabelece. E ela causa um risco de agravamento da violência,
principalmente a violência no campo”, afirmou o procurador federal.
Segundo o MPF, a
legislação usa o termo “invasão”, que juridicamente significa se apropriar de
terras alheias para benefício econômico privado — como fazem os fazendeiros
ricos do estado contra terras indígenas.
O verdadeiro alvo
dela, no entanto, são as ocupações, previstas no ordenamento jurídico como
forma legítima de pressão pela reforma agrária e conduzidas por famílias
vítimas da grande concentração fundiária no estado.
• Bolsonaristas atacam direito de luta
pela terra
A lei é de autoria do
deputado estadual e pré-candidato a prefeito de Rondonópolis (MT) Claudio
Ferreira (PL), que se apresenta como apoiador do agronegócio e do ex-presidente
Jair Bolsonaro (PL).
O governador Mauro
Mendes, também bolsonarista, celebrou a nova legislação. Ele declarou que o
Mato Grosso adotou “política de tolerância zero” para o que chama de invasão de
terras.
Para o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as sanções inconstitucionais são uma
tentativa de criminalizar movimentos de luta por reforma agrária.
“É evidente que o
objetivo dessa lei é atingir aqueles que recebem direitos sociais. O programa
social do governo do estado oferece 200 reais por mês para algumas famílias. No
Mato Grosso, por exemplo, cerca de 25% das pessoas recebem o Bolsa Família. Isso
indica uma população gigantesca que não se encaixa no estado do agronegócio e
do capitalismo”, avaliou Vanderly Scarabeli, dirigente estadual do MST no Mato
Grosso.
“Essas pessoas,
cientes disso, buscarão meios estruturais para resolver sua situação, e uma das
formas é através da luta coletiva pela terra. Portanto, é evidente que essa
lei, ao criminalizar a luta, é inconstitucional. Não se trata de pedir direitos
sociais, mas de direitos que as famílias conquistaram”, concluiu o integrante
do MST.
• Procuradores querem que STF declare
inconstitucionalidade
Após a sanção da lei,
cinco procuradores do Ministério Público Federal pediram à Procuradoria-Geral
da República (PGR) que mova uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin)
contra a lei no STF.
Além de Julio Araújo,
o pedido é assinado pelos procuradores Matheus Bueno, Marcia Zollinger, Marcio
Araujo e Raphael Luis Bevilaqua, integrantes do Grupo de Trabalho de Reforma
Agrária e Conflitos Fundiários do MPF. O documento foi obtido com exclusividade
pelo Brasil de Fato.
“Essa lei tem o
suposto objetivo de proteger a propriedade e os proprietários contra possíveis
invasores. Por isso, movimentos sociais que se mobilizam em torno do tema da
reforma agrária e da reforma urbana são afetados”, diz Julio Araújo.
“No entanto, na
realidade, sob esse pretexto e suposto objetivo, a lei promove uma série de
violações preventivas, ou a priori, de direitos básicos que todas as pessoas e
grupos que se mobilizam por direitos deveriam ter”, prossegue o integrante do
MPF.
• Estado do agro tem aumento de conflitos
por terra
Maior produtor de
soja, milho e algodão em 2022, o Mato Grosso é um dos estados com maior
concentração de terras no país. Em 2022, registrou aumento de 60% nos conflitos
por terra, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). As vítimas foram
famílias sem terra, indígenas e quilombolas.
Para o dirigente
estadual do MST, a lei não deve surtir o efeito esperado pelo governo estadual,
que é o de inibir a luta coletiva pela reforma agrária.
“A população que
depende das lutas sociais não se resolve com esse tipo de lei. Ela não elimina
a contradição da desigualdade na sociedade. Portanto, as pessoas continuarão
lutando, pois a fome e a falta de condições de vida são mais fortes do que uma
lei inconstitucional”, pontua Vanderly Scarabeli, do MST-MT.
Fonte: Outras
Palavras/Brasil de Fato
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