Brasil: a
ambiciosa meta de produzir 50% da tecnologia de defesa na nova política
industrial
Com o
objetivo de reverter o processo de desindustrialização no Brasil, fenômeno
iniciado na década de 1980 e que se intensificou nos últimos anos, o governo
federal lançou na última semana a nova política industrial. Até 2026, serão
investidos R$ 300 bilhões, e um dos pilares para a retomada do crescimento do
setor é a indústria de defesa.
Em um
movimento que não se via no país há pelo menos meio século, o Exército
brasileiro enviou em dezembro do ano passado quase 30 veículos blindados para a
fronteira com a Venezuela, em Roraima, por conta das tensões com a Guiana.
• Qual é o objetivo da defesa do Brasil?
Para além
das questões que envolvem os dois países vizinhos, o coronel Oscar Medeiros
Filho, que foi coordenador de pesquisas do Centro de Estudos Estratégicos do
Exército (CEEEx) e atualmente é professor de relações internacionais do Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB), classificou à Sputnik Brasil a situação
como um "exemplo" de mobilização das capacidades militares para
defender a integridade territorial do país.
"Esse
tipo de debate não é muito comum no Brasil, mas à medida que ele vai sendo
colocado, vamos tomando conhecimento da importância do tema para qualquer
Estado nacional soberano. O quadro internacional é multipolar, em que o uso da
força como instrumento da política internacional tem se mostrado cada vez mais
como uma tendência. Eu acredito que esse é um tema que talvez venha a fazer
mais parte do debate nacional. A comunidade brasileira nunca se preocupou muito
sobre como estamos capacitados para enfrentar essas demandas", argumenta o
especialista.
É
justamente o fortalecimento da indústria nacional de defesa um dos seis
principais objetivos do governo federal, que lançou na última semana o plano
Nova Indústria Brasil. Ao todo, o programa vai contar com R$ 300 bilhões até
2026 em financiamentos disponibilizados em linhas de crédito geridas pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Financiadora de
Estudos e Projetos (Finep) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação
Industrial (Embrapii).
Setor que
se torna também um aliado para reverter a desindustrialização no país, o
Palácio do Planalto estabeleceu uma ambiciosa meta a ser alcançada até 2033:
obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa.
"Temos
pouco menos de dez anos para alcançar esse objetivo que, em termos de
tecnologia no mercado de defesa, pode mudar muito. E é importante que a gente
caminhe em algumas, como as ligadas a sistemas de propulsão, sensoriamento
remoto, inteligência artificial, veículos autônomos, que devem avançar nos
próximos anos. Mas o fato é que novas demandas irão surgir, o que torna essa
meta, de fato, ainda mais ambiciosa", explica o coronel.
• Como funciona o sistema de defesa do
Brasil?
No Brasil,
a estratégia de defesa é baseada principalmente nos preceitos do direito
internacional: a prevalência da resolução de disputas e conflitos por meio da
diplomacia, inclusive envolvendo as Forças Armadas. Segundo o coronel Oscar
Medeiros Filho, um grande marco para o setor ocorreu em 2008, quando foi
introduzida uma política de longo prazo.
"Com
isso, a relação com a indústria [de defesa] passa a ser algo essencial. É essa
tríplice hélice, que são as demandas das Forças Armadas, do setor produtivo —
já que o Brasil tem um parque considerável na área de defesa —, e também o
setor acadêmico, com a capacidade de produzir conhecimento de tecnologia",
resume.
E
alavancar a produção nacional de tecnologia de defesa vem, para o especialista,
renovar essa importante política.
"Nesse
sentido, qualquer tipo de esforço no planejamento estratégico de longo prazo é
muito bem-vindo […]. O Brasil tem esse potencial, basta ver a capacidade
industrial brasileira, as ilhas de excelência que nós temos em universidades de
ponta. Como toda meta, também é uma aspiração política", pontua.
• Qual é o poder militar do Brasil no
mundo?
No ano
passado, o ranking divulgado pela Global Firepower sobre os exércitos mais
poderosos do mundo deixou o Brasil em 12º lugar, uma queda de duas posições em
relação aos levantamentos anteriores. Para o coronel Oscar Medeiros Filho, um
dos aspectos mais importantes sobre o poder militar é depender cada vez menos
de tecnologias de outros países, o que o plano do governo para a indústria
brasileira busca atacar.
"O
cerceamento tecnológico é uma realidade, especialmente entre grandes potências
e potências regionais. E o Brasil possui a estatura geopolítica, naturalmente,
de uma potência. Ou seja, não há saída para um país que quer realmente ter
autonomia estratégica se não buscar desenvolver a sua capacidade na tecnologia
de defesa. E eu acho que é isso que o Brasil tem mostrado, essa busca de uma
soberania da sua produção industrial, especialmente a partir de 2008",
conta.
Conforme o
especialista, outra característica da política externa brasileira é ampliar o
leque de parceiros no setor bélico.
"A
história do Brasil mostra o quão difícil é depender da tecnologia entre as suas
parcerias estratégicas. O tabuleiro internacional traz, hoje, outra
preocupação, que é o risco geopolítico das parcerias. O Brasil não tem inimigos
internacionais, nem pretende, e eu acho que essa postura de equidistância em
relação às grandes potências me parece a melhor das estratégias", conclui.
• Qual é o papel do setor de defesa na
economia do Brasil?
Considerado
o maior exportador de produtos de defesa da América do Sul, a indústria
nacional do setor representou quase 5% do produto interno bruto (PIB) do Brasil
no ano passado, com a geração de mais de 2,9 milhões de empregos.
O
ex-coordenador do CEEEx acrescenta, ainda, que o país conta com expoentes
mundiais, como a Embraer, considerada uma das 100 maiores empresas de defesa do
mundo.
"Temos
em São Paulo todo aquele parque industrial; somos um dos maiores produtores,
por exemplo, de grafeno. Eu estive na Mackenzie, agora no final do ano passado
também, vendo o potencial que temos utilizando as folhas planas de átomos de
carbono com resistência e condutividades espetaculares [importantes para o
desenvolvimento tecnológico]. Por isso, encontrar quais são as demandas e
investir a partir de uma aproximação dos setores produtivo e da academia."
Já a
especialista em segurança e teoria das relações internacionais e professora da
Universidade Abu Dhabi, Isabela Gama, defende que o setor de defesa do Brasil
precisa de reformas e modernização. "Nós produzimos material bélico de
tecnologia médio-avançada, que já conseguimos, inclusive, vender para outros
países, mas ainda assim bastante infante, perto da indústria bélica de outros
Estados. Eu acredito que, para atingir essa meta que o governo do presidente
Lula impôs, na verdade, nós vamos precisar de ajuda externa, especialmente de
investimentos privados", diz.
Para Gama,
os países do BRICS podem ser importantes parceiros estratégicos do Brasil para
esse momento. "Há uma questão de se tornar mais independente em termos de
defesa, vendo situações como da Ucrânia, que não tem como se defender, a não
ser pedindo ajuda de outros estados. Mas, até o momento, o Brasil não tem
ameaças significativas à sua existência", finaliza.
Convite de Lula a Biden é gesto
estratégico na busca por horizonte à governança global, diz analista
Desde que
começou seu terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva teve como uma de suas
prioridades a política externa. No entanto, trabalhar a multipolaridade, um dos
pilares da chancelaria brasileira, também anda em parceria com a reativação do
potencial interno do Brasil.
Ao longo
do ano passado, Lula participou ativamente de organismos internacionais tanto
do Ocidente, por exemplo G7 e G20, como do Sul Global, como o BRICS e a
Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
O petista
destacou a importância de sua gestão para "relançar" o Brasil no
cenário internacional sob uma perspectiva "multipolar", sendo esse o
pilar da política externa do governo brasileiro.
Na semana
passada, Lula convidou o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para ir ao
Brasil em uma visita a ser feita "preferencialmente neste primeiro
semestre".
O líder
brasileiro destacou o contexto dos 200 anos de relações diplomáticas entre
Brasília e Washington, acrescentando que a visita de Biden poderia
"celebrar a ocasião no mais alto nível", além de "dar
continuidade ao aprofundamento de nossa parceria".
Na visão
do professor e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e Violência
da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Rodrigues, o convite de Lula
pode ser interpretado como "um gesto estratégico".
"[O
convite] é um gesto estratégico de política internacional. [...] A agenda de
política externa brasileira sempre foi muito ativa na construção de passos
multipolares e na proposta de uma governança global que não esteja centralizada
em uma grande potência mundial, esse é o jogo político internacional do Brasil
– diálogo com múltiplas potências para ativar a esfera política
multipolar", afirmou Rodrigues à Sputnik.
O
coordenador ainda pontua que "convidar Biden é um gesto de afirmação da
importância do Brasil" na arena internacional e "também da América
Latina neste diálogo".
"As
grandes potências estão com muita dificuldade para construir diálogos e
agendas, temos múltiplos conflitos armados que estão em curso e o Brasil pode
ser um ator importante na construção deste diálogo que é fundamental para que
ocorra a construção de um horizonte para governança global [...]",
analisou.
• Reativar o Brasil
No
entanto, o desafio de Lula é duplo, a partir do momento que também trabalha
para "reativar" o Brasil internamente.
Na
segunda-feira passada (22), o governo federal anunciou o plano Nova Indústria
Brasil, projeto elaborado para guiar o país até 2033. A principal novidade é
que o Executivo vai disponibilizar R$ 300 bilhões até 2026 para financiamentos
destinados à nova política industrial brasileira.
Para o
professor de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP),
Márcio Sampaio de Castro, é válido o esforço que o governo tenta empreender,
"mas tem muito mais a ser feito, porque o desafio é grande".
"Não
só o Brasil, mas em muitos outros países, o enfraquecimento da industrialização
é muito grave. Muitas nações têm se convertido cada vez mais em países
agrários-exportadores. Um país como o Brasil, que já teve a indústria como um
dos seus principais componentes do produto interno bruto [PIB], com 30% na
constituição do PIB, agora tem algo em torno de 10% ou menos até", afirmou
Castro à Sputnik.
O
especialista aponta que a perda de força da indústria brasileira prejudica o
país em um todo, não só no quesito produção, mas também em outras áreas.
"A
indústria, as pesquisas, como a pesquisa médica, nuclear, a biotecnologia,
engenharia, são pontos-chave para o desenvolvimento de um país. O investimento
industrial permite que se melhorem todas as outras áreas, isso é central."
Portanto,
"tem muito mais a ser feito [pelo governo] porque o desafio é muito
grande, o tamanho do país com uma população de mais de 200 milhões de
habitantes, não se pode permitir simplesmente ter um papel de país
agrário-exportador", concluiu.
Apesar de
políticas internas e externas terem formas diferentes, o fim é sempre o mesmo:
impulsionar o desenvolvimento e protagonismo de um país.
Na carta
em que Lula convida Biden – que na verdade é uma resposta a outra carta do
presidente norte-americano enviada anteriormente – ao mesmo tempo que Brasília
mira na manutenção do diálogo para contemplar sua diretriz multipolar, também
tem como alvo fazer com que a credibilidade na relação traga investimentos
internos para o Brasil.
Fonte:
Sputnik Brasil
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