quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Brasil: a ambiciosa meta de produzir 50% da tecnologia de defesa na nova política industrial

Com o objetivo de reverter o processo de desindustrialização no Brasil, fenômeno iniciado na década de 1980 e que se intensificou nos últimos anos, o governo federal lançou na última semana a nova política industrial. Até 2026, serão investidos R$ 300 bilhões, e um dos pilares para a retomada do crescimento do setor é a indústria de defesa.

Em um movimento que não se via no país há pelo menos meio século, o Exército brasileiro enviou em dezembro do ano passado quase 30 veículos blindados para a fronteira com a Venezuela, em Roraima, por conta das tensões com a Guiana.

•        Qual é o objetivo da defesa do Brasil?

Para além das questões que envolvem os dois países vizinhos, o coronel Oscar Medeiros Filho, que foi coordenador de pesquisas do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) e atualmente é professor de relações internacionais do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), classificou à Sputnik Brasil a situação como um "exemplo" de mobilização das capacidades militares para defender a integridade territorial do país.

"Esse tipo de debate não é muito comum no Brasil, mas à medida que ele vai sendo colocado, vamos tomando conhecimento da importância do tema para qualquer Estado nacional soberano. O quadro internacional é multipolar, em que o uso da força como instrumento da política internacional tem se mostrado cada vez mais como uma tendência. Eu acredito que esse é um tema que talvez venha a fazer mais parte do debate nacional. A comunidade brasileira nunca se preocupou muito sobre como estamos capacitados para enfrentar essas demandas", argumenta o especialista.

É justamente o fortalecimento da indústria nacional de defesa um dos seis principais objetivos do governo federal, que lançou na última semana o plano Nova Indústria Brasil. Ao todo, o programa vai contar com R$ 300 bilhões até 2026 em financiamentos disponibilizados em linhas de crédito geridas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii).

Setor que se torna também um aliado para reverter a desindustrialização no país, o Palácio do Planalto estabeleceu uma ambiciosa meta a ser alcançada até 2033: obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa.

"Temos pouco menos de dez anos para alcançar esse objetivo que, em termos de tecnologia no mercado de defesa, pode mudar muito. E é importante que a gente caminhe em algumas, como as ligadas a sistemas de propulsão, sensoriamento remoto, inteligência artificial, veículos autônomos, que devem avançar nos próximos anos. Mas o fato é que novas demandas irão surgir, o que torna essa meta, de fato, ainda mais ambiciosa", explica o coronel.

•        Como funciona o sistema de defesa do Brasil?

No Brasil, a estratégia de defesa é baseada principalmente nos preceitos do direito internacional: a prevalência da resolução de disputas e conflitos por meio da diplomacia, inclusive envolvendo as Forças Armadas. Segundo o coronel Oscar Medeiros Filho, um grande marco para o setor ocorreu em 2008, quando foi introduzida uma política de longo prazo.

"Com isso, a relação com a indústria [de defesa] passa a ser algo essencial. É essa tríplice hélice, que são as demandas das Forças Armadas, do setor produtivo — já que o Brasil tem um parque considerável na área de defesa —, e também o setor acadêmico, com a capacidade de produzir conhecimento de tecnologia", resume.

E alavancar a produção nacional de tecnologia de defesa vem, para o especialista, renovar essa importante política.

"Nesse sentido, qualquer tipo de esforço no planejamento estratégico de longo prazo é muito bem-vindo […]. O Brasil tem esse potencial, basta ver a capacidade industrial brasileira, as ilhas de excelência que nós temos em universidades de ponta. Como toda meta, também é uma aspiração política", pontua.

•        Qual é o poder militar do Brasil no mundo?

No ano passado, o ranking divulgado pela Global Firepower sobre os exércitos mais poderosos do mundo deixou o Brasil em 12º lugar, uma queda de duas posições em relação aos levantamentos anteriores. Para o coronel Oscar Medeiros Filho, um dos aspectos mais importantes sobre o poder militar é depender cada vez menos de tecnologias de outros países, o que o plano do governo para a indústria brasileira busca atacar.

"O cerceamento tecnológico é uma realidade, especialmente entre grandes potências e potências regionais. E o Brasil possui a estatura geopolítica, naturalmente, de uma potência. Ou seja, não há saída para um país que quer realmente ter autonomia estratégica se não buscar desenvolver a sua capacidade na tecnologia de defesa. E eu acho que é isso que o Brasil tem mostrado, essa busca de uma soberania da sua produção industrial, especialmente a partir de 2008", conta.

Conforme o especialista, outra característica da política externa brasileira é ampliar o leque de parceiros no setor bélico.

"A história do Brasil mostra o quão difícil é depender da tecnologia entre as suas parcerias estratégicas. O tabuleiro internacional traz, hoje, outra preocupação, que é o risco geopolítico das parcerias. O Brasil não tem inimigos internacionais, nem pretende, e eu acho que essa postura de equidistância em relação às grandes potências me parece a melhor das estratégias", conclui.

•        Qual é o papel do setor de defesa na economia do Brasil?

Considerado o maior exportador de produtos de defesa da América do Sul, a indústria nacional do setor representou quase 5% do produto interno bruto (PIB) do Brasil no ano passado, com a geração de mais de 2,9 milhões de empregos.

O ex-coordenador do CEEEx acrescenta, ainda, que o país conta com expoentes mundiais, como a Embraer, considerada uma das 100 maiores empresas de defesa do mundo.

"Temos em São Paulo todo aquele parque industrial; somos um dos maiores produtores, por exemplo, de grafeno. Eu estive na Mackenzie, agora no final do ano passado também, vendo o potencial que temos utilizando as folhas planas de átomos de carbono com resistência e condutividades espetaculares [importantes para o desenvolvimento tecnológico]. Por isso, encontrar quais são as demandas e investir a partir de uma aproximação dos setores produtivo e da academia."

Já a especialista em segurança e teoria das relações internacionais e professora da Universidade Abu Dhabi, Isabela Gama, defende que o setor de defesa do Brasil precisa de reformas e modernização. "Nós produzimos material bélico de tecnologia médio-avançada, que já conseguimos, inclusive, vender para outros países, mas ainda assim bastante infante, perto da indústria bélica de outros Estados. Eu acredito que, para atingir essa meta que o governo do presidente Lula impôs, na verdade, nós vamos precisar de ajuda externa, especialmente de investimentos privados", diz.

Para Gama, os países do BRICS podem ser importantes parceiros estratégicos do Brasil para esse momento. "Há uma questão de se tornar mais independente em termos de defesa, vendo situações como da Ucrânia, que não tem como se defender, a não ser pedindo ajuda de outros estados. Mas, até o momento, o Brasil não tem ameaças significativas à sua existência", finaliza.

 

       Convite de Lula a Biden é gesto estratégico na busca por horizonte à governança global, diz analista

 

Desde que começou seu terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva teve como uma de suas prioridades a política externa. No entanto, trabalhar a multipolaridade, um dos pilares da chancelaria brasileira, também anda em parceria com a reativação do potencial interno do Brasil.

Ao longo do ano passado, Lula participou ativamente de organismos internacionais tanto do Ocidente, por exemplo G7 e G20, como do Sul Global, como o BRICS e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).

O petista destacou a importância de sua gestão para "relançar" o Brasil no cenário internacional sob uma perspectiva "multipolar", sendo esse o pilar da política externa do governo brasileiro.

Na semana passada, Lula convidou o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para ir ao Brasil em uma visita a ser feita "preferencialmente neste primeiro semestre".

O líder brasileiro destacou o contexto dos 200 anos de relações diplomáticas entre Brasília e Washington, acrescentando que a visita de Biden poderia "celebrar a ocasião no mais alto nível", além de "dar continuidade ao aprofundamento de nossa parceria".

Na visão do professor e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e Violência da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Rodrigues, o convite de Lula pode ser interpretado como "um gesto estratégico".

"[O convite] é um gesto estratégico de política internacional. [...] A agenda de política externa brasileira sempre foi muito ativa na construção de passos multipolares e na proposta de uma governança global que não esteja centralizada em uma grande potência mundial, esse é o jogo político internacional do Brasil – diálogo com múltiplas potências para ativar a esfera política multipolar", afirmou Rodrigues à Sputnik.

O coordenador ainda pontua que "convidar Biden é um gesto de afirmação da importância do Brasil" na arena internacional e "também da América Latina neste diálogo".

"As grandes potências estão com muita dificuldade para construir diálogos e agendas, temos múltiplos conflitos armados que estão em curso e o Brasil pode ser um ator importante na construção deste diálogo que é fundamental para que ocorra a construção de um horizonte para governança global [...]", analisou.

•        Reativar o Brasil

No entanto, o desafio de Lula é duplo, a partir do momento que também trabalha para "reativar" o Brasil internamente.

Na segunda-feira passada (22), o governo federal anunciou o plano Nova Indústria Brasil, projeto elaborado para guiar o país até 2033. A principal novidade é que o Executivo vai disponibilizar R$ 300 bilhões até 2026 para financiamentos destinados à nova política industrial brasileira.

Para o professor de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP), Márcio Sampaio de Castro, é válido o esforço que o governo tenta empreender, "mas tem muito mais a ser feito, porque o desafio é grande".

"Não só o Brasil, mas em muitos outros países, o enfraquecimento da industrialização é muito grave. Muitas nações têm se convertido cada vez mais em países agrários-exportadores. Um país como o Brasil, que já teve a indústria como um dos seus principais componentes do produto interno bruto [PIB], com 30% na constituição do PIB, agora tem algo em torno de 10% ou menos até", afirmou Castro à Sputnik.

O especialista aponta que a perda de força da indústria brasileira prejudica o país em um todo, não só no quesito produção, mas também em outras áreas.

"A indústria, as pesquisas, como a pesquisa médica, nuclear, a biotecnologia, engenharia, são pontos-chave para o desenvolvimento de um país. O investimento industrial permite que se melhorem todas as outras áreas, isso é central."

Portanto, "tem muito mais a ser feito [pelo governo] porque o desafio é muito grande, o tamanho do país com uma população de mais de 200 milhões de habitantes, não se pode permitir simplesmente ter um papel de país agrário-exportador", concluiu.

Apesar de políticas internas e externas terem formas diferentes, o fim é sempre o mesmo: impulsionar o desenvolvimento e protagonismo de um país.

Na carta em que Lula convida Biden – que na verdade é uma resposta a outra carta do presidente norte-americano enviada anteriormente – ao mesmo tempo que Brasília mira na manutenção do diálogo para contemplar sua diretriz multipolar, também tem como alvo fazer com que a credibilidade na relação traga investimentos internos para o Brasil.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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