A
necessidade de mudanças dos sistemas de inteligência no Brasil
A revelação da utilização inadequada da Abin
para mapear opositores do governo
Bolsonaro, com cerca de 30 mil pessoas monitoradas ilegalmente (incluindo a
promotora do caso Marielle Franco e responsáveis por inquéritos da família
Bolsonaro), sob o comando de Alexandre Ramagem e a gestão de militares,
demonstra a fragilidade institucional brasileira no tema de sistemas de
inteligência e autoritarismo. Sobretudo, suscita a questão de por que é
possível essa interferência governamental e qual deveria ser o marco de
regulamentação e proteção dos sistemas de inteligência. Para apontar possíveis
respostas a essas perguntas precisamos recuperar o desenho institucional da
Abin e dos sistemas de inteligência na sua perspectiva histórica e política.
Os
sistemas de inteligência no Brasil foram, desde a sua criação, ferramentas
importantes de controle político interno, com mapeamento dos denominados
“inimigos públicos” (pobres, comunistas, subversivos e opositores de qualquer
espécie), pessoas que de alguma forma ameaçavam o status quo. Seu
embrião, nos marcos de papel institucional e como política do governo central,
data do final da década de 1920 (embora sempre tenha existido polícias
investigativas), durante o governo de Washington Luís, e teve um percurso de
consolidação a partir do avanço da necessidade de controle social na ditadura
do Estado Novo e, em especial, a partir de 1946 (com a criação do primeiro
sistema de espionagem propriamente dito, o Sistema Federal de Informações e
Contra-Informações – SFICI), e após o processo de fundação da Escola Superior
de Guerra (ESG), de natureza militar e influenciada pelos Estados Unidos, no
contexto da Guerra Fria, com a introdução no Brasil da Doutrina da Segurança
Nacional.
A ESG teve
seus principais precursores formados e treinados nos Estados Unidos nas escolas
de espionagem e esse feito fez com que finalmente fosse turbinado o Sfici em
1956, sendo os primeiros quarenta funcionários cedidos das Forças Armadas e,
Humberto de Souza Mello, um dos oficiais treinados em Washington, escolhido
para chefiar o serviço secreto. Será depois, em 1961, que a chefia será
transferida para Golbery de Couto e Silva, durante o governo Jânio Quadros, e
sua estrutura permanecerá ocorrendo em paralelo (de forma clandestina), quando
da assunção de João Goulart até o golpe de 1964. Esse serviço secreto “privado”
(munido de documentos roubados do SFICI) foi fundamental no planejamento e
articulação do golpe de 1964. Posteriormente, haverá uma sofisticação e
unificação das diversas atividades de inteligência no regime autoritário da
ditadura empresarial militar, sob a supervisão inicial de Golbery, que colocará
em outro patamar a utilização desse sistema para a desarticulação de opositores
e resistências à ditadura.
Em relação
ao sistema de inteligência e informações das Forças Armadas, destaca-se,
sobretudo, a sua alteração a partir do endurecimento na ditadura civil militar.
Por idealização de Costa e Silva, os sistemas de informações passam a não
apenas coletar dados e analisar informações, mas também participar diretamente
da repressão (grupos de elite trabalhando com formação e força). Além disso,
também ampliaram seu poder, passando a responder apenas ao gabinete do ministro
de sua respectiva Força. Sendo assim, em 1969, é criado o Centro de Informações
do Exército (CIE) e, em 1970, já com Médici, são criados o Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) e o Centro de Informações da
Marinha (Cenimar). Esses três órgãos contavam com a participação do Serviço
Nacional de Informações (SNI), que foi criado logo após o golpe de 1964 pelo
general Golbery e que unificava os sistemas.
Além
destes, também era formada a repressão e perseguição através de uma série de
outros serviços de inteligência, nas mais variadas esferas federativas, tais
como: Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), Destacamentos de Operações
Internas (DOI) e Operação Bandeirante (Oban), os Departamentos de Ordem
Política e Social (Dops), e das P-2 (serviços secretos das polícias militares).
Esse
patamar de encadeamento e repressão colocou o sistema brasileiro como um dos
mais autoritários do mundo, com características próprias de autonomia e status institucional
pouco vistas. E foram fundamentais no arranjo institucional de controle social
no país, em especial no período ditatorial. Não é circunstancial que dois
presidentes (Médici e Figueiredo) vieram do SNI para a presidência. No processo
de repressão, o sistema de inteligência teve um papel crucial para a manutenção
da ditadura.
Durante o
início do processo de redemocratização, já na década de 1980, os sistemas das
Forças Armadas mudaram de nome, mas não deixaram de existir (possuem as mesmas
leis até hoje). Já o SNI passou por um longo processo, mesmo após a
Constituição de 1988 até a criação da Abin. É apenas em 15 de março de 1990, no
governo Collor, que é dissolvido, sendo substituído pelo Departamento de
Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos (DI/SAE), ligada à
Presidência da República. Essa nova alteração significa redução no status do
serviço de inteligência e obrigatoriedade das secretarias regionais serem
lideradas por um civil, dentre outras mudanças. No governo Itamar, entre
recuperação e perdas de poderes provisórios, em 1994 é realizado o primeiro
concurso público para ingressar no Serviço. E, apenas em 1999,
teremos a primeira Agência Civil de serviço de inteligência, com a criação da
Abin, no governo FHC.
No
entanto, apesar da lei prever algum controle externo (que nunca foi
efetivamente exercido), ela submeteu ao Gabinete da Presidência a sua
vinculação, em especial ao GSI. Além da Abin, o projeto criava o Sistema
Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que reunia informações de todos os órgãos
federais que produzissem informações de defesa externa e segurança interna,
tais como Receita, Polícia Federal, Correios …), sob a coordenação da Abin.
O Gabinete
de Segurança Institucional (GSI), que protagonizou um espaço importante nos
atentados de 8 de janeiro de 2023, veio
para substituir a antiga Casa Militar (que tinha status de ministério, era uma
espécie de paralelo ao papel da Casa Civil, só que para militares, e persistia
nas estruturas governamentais desde a redemocratização).
Ademais,
em outubro de 2015, Dilma também promulgou a MP 969, de 2 de outubro de 2015,
que propôs uma reforma ministerial e extinguiu o GSI, recriando a Casa Militar,
mas sem status de ministério, circunscrevendo as suas
atribuições apenas à segurança da presidência e vice. A Casa Militar passa a se
subordinar à Secretaria de Governo, assim como a Abin – que pela primeira vez
na história fica submetida a um “ministério” civil.
Fato
curioso é que, no mesmo dia da posse interina de Temer na presidência, ele
recria o GSI, que será então chefiado por Sérgio Etchegoyen, recuperando
seu status de ministério e subordinando novamente a Abin a ele
e, portanto, aos militares. Ainda será criada a Política Nacional de
Inteligência (PNI), que concentra no GSI, pela primeira vez desde a ditadura,
essas atribuições num único órgão.
É
importante ressaltar que, mesmo quando o sistema de inteligência e espionagem
tinha natureza civil, o controle em regra foi sempre exercido por militares, em
especial por meio do GSI (que, desde a extinção da Casa Militar, tem sua chefia
ocupada por um militar, com raros períodos provisórios de exceção). Ele foi um
braço fundamental de controle dos militares ao longo da Nova República e de
permanência de militarização institucional do Estado brasileiro. Informação é
controle social e político, por isso os militares nunca abriram mão desse papel
e estiveram apoiando o golpe de 2016 também para recuperar esse domínio (dentre
outros interesses).
Não é
circunstancial que a aquisição da ferramenta de monitoramento First Mile tenha
sido realizada durante a intervenção federal militar na segurança pública do
Rio de Janeiro, em 2018, sob o comando do general Walter Braga Netto (que
depois seria ministro de Bolsonaro e vice na chapa de 2022) e durante a
vigência de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), sem licitação e de forma ilegal. A gestão estatal de militares na segurança pública e na ordem
interna é um fator fundamental para a militarização da política. O retorno de
forma protagonista de militares atuando diretamente em cargos civis do governo
central aponta para a intensificação de um modus operandi autoritário
das instituições militares para a segurança pública. O próprio fato de a
aquisição ter sido sem licitação e, portanto, ilegal, já demonstra como fere
princípios básicos republicanos.
Após esse
período, é com o general Augusto Heleno, durante o governo Bolsonaro, que
teremos o desenvolvimento do atual escândalo da Abin, com o monitoramento
ilegal de mais de 30 mil pessoas. Heleno se identificava com o grupo mais
radical da linha dura da ditadura e, em verdade, era um membro relevante dessa
vertente, sendo exonerado no mesmo dia que Sylvio Frota do gabinete do
Ministério do Exército. Frota fazia parte do grupo que entende que os ideais do
golpe de 1964 foram traídos pelos militares que defenderam e organizaram a
transição. Esse grupo já tinha à época uma visão econômica mais neoliberal e
uma série de bandeiras ajustadas pela noção do marxismo cultural e a
perspectiva de uma nova forma de anticomunismo. Inúmeras ideias organizadas
nessa época sobreviveram ou foram ressignificadas pelo núcleo central
militarizado do governo Bolsonaro.
Essa breve
e reduzida recomposição histórica demonstra as linhas centrais do problema
atual da Abin. O aparato de inteligência teve uma continuidade com a estrutura
herdada da ditadura, mesmo após a redemocratização. Essa estrutura é tanto do
ponto de vista ideológico, na dimensão de um inimigo público interno a ser
destruído (resquícios da doutrina da segurança nacional, inclusive com a aplicação por Bolsonaro da
LSN de 1983 para perseguir opositores); quanto
estrutural e institucional (desenho e atribuições, pessoal e parte de
equipamentos e estrutura física herdada do SNI). A Abin, apesar de ter controle
legislativo previsto, nunca foi efetivamente controlada e prestou contas ao
Congresso, e pôde ser ainda mais aparelhada e instrumentalizada no momento em
que um governo militar e autoritário voltou a se consolidar, através do comando
de um general pelo GSI.
Portanto,
a importante operação da Polícia Federal, que aponta esse monitoramento ilegal,
chega no cerne de um aparato que precisa ser revisto, juntamente com o GSI, e sobretudo,
precisa passar por processos de gestão e democratização civis. Esse pode ser um
ponto de chegada para a responsabilização de importantes comandantes militares
que estiveram à frente do governo Bolsonaro (incluindo o próprio). É mais uma
oportunidade que precisa ser utilizada para, efetivamente, iniciar um processo
de desmonte de uma máquina autoritária e militarizada do Estado brasileiro.
Essa
lógica de monitoramento e de violação dos direitos fundamentais (a ferramenta
não passou por ordem judicial e viola os dados pessoais com a localização de
georreferenciamento), utilizada com a justificativa do combate ao crime
organizado que pressupõe medidas excepcionais e extralegais, é um modus
operandi da construção de um Estado policial. É evidente que essa prerrogativa
de intervenção de militares na ordem interna está no centro da viabilidade
desse tipo de atuação e representa a mesma lógica dos serviços de inteligência
desde a sua criação no Brasil.
Num balanço recente do 8 de janeiro, apontamos o quanto a agenda de desmilitarização do Estado e
democratização da segurança pública é essencial e permanece em disputa e com
dificuldades concretas de avanço. Os riscos de não enfrentarmos essa agenda
nesse momento importante de reconstrução nacional fica ainda mais evidente com
os resultados dessa operação e como ela se relaciona também com os atentados e
desdobramentos do 8 de janeiro.
Fonte: Por
Julia Almeida V. da Silva, para Le Monde
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