sábado, 24 de fevereiro de 2024

2 anos da guerra na Ucrânia: 5 questões-chave para entender o conflito

A guerra na Ucrânia completa dois anos em 24 de fevereiro, e não há razão para acreditar que o conflito vai terminar em breve.

Nem a Ucrânia, nem a Rússia, tampouco os principais aliados de ambos os lados, veem qualquer chance de um acordo de paz no momento.

Kiev está convencida de que suas fronteiras internacionalmente reconhecidas devem ser restabelecidas e que vai expulsar as tropas russas. Já o posicionamento de Moscou segue sendo de que a Ucrânia não é um país propriamente dito, e as forças russas vão continuar a avançar até que seus objetivos sejam alcançados.

A seguir, vamos analisar o que está acontecendo agora, e o rumo que o conflito pode tomar no futuro.

·        Quem está ganhando?

Os violentos combates continuam durante o inverno, custando muitas vidas a ambos os lados.

A linha de frente de combate se estende por 1.000 km — e sua forma mudou pouco desde o outono de 2022.

Poucos meses após a invasão em grande escala, há dois anos, a Ucrânia fez as forças russas recuarem no norte e em torno da capital, Kiev. Retomou ainda grandes partes do território no leste e no sul no fim daquele ano.

Mas, agora, as forças russas estão entrincheiradas com fortificações resistentes, e os ucranianos dizem que sua munição está acabando.

Muitos veem um cenário de impasse militar – incluindo o ex-comandante-em-chefe ucraniano, Valerii Zaluzhnyi, destituído recentemente do cargo, e vários blogueiros militares russos pró-Kremlin.

Em meados de fevereiro, as tropas ucranianas se retiraram da cidade de Avdiivka, há muito tempo disputada, no leste.

As forças russas consideraram isso como uma grande vitória – como Avdiivka está estrategicamente posicionada, abriria caminho potencialmente para invasões mais profundas.

Kiev disse que a retirada visava preservar a vida dos seus soldados, e não escondeu que suas forças estavam em menor número e com menos armas.

Foi a maior conquista da Rússia desde que tomou Bakhmut em maio do ano passado. Mas Avdiivka fica a apenas 20 km a noroeste de Donetsk, cidade ucraniana ocupada pela Rússia desde 2014.

Um avanço tão pequeno está longe da ambição inicial da Rússia em fevereiro de 2022, compartilhada por blogueiros militares e reiterada pela propaganda estatal, de tomar a capital Kiev “em três dias”

Atualmente, cerca de 18% do território ucraniano permanece sob ocupação russa, incluindo a península da Crimeia, anexada em março de 2014, e grande parte das regiões de Donetsk e Luhansk, no leste, que a Rússia tomou pouco depois.

·        O apoio à Ucrânia está diminuindo?

Nos últimos dois anos, os aliados da Ucrânia enviaram uma grande quantidade de ajuda militar, financeira e humanitária ao país – sendo quase US$ 92 bilhões provenientes de instituições da União Europeia e US$ 73 bilhões dos EUA até janeiro de 2024, de acordo com o Instituto Kiel para a Economia Mundial.

Os tanques, as defesas aéreas e a artilharia de longo alcance fornecidos pelo Ocidente ajudaram substancialmente a Ucrânia.

Mas o fluxo de contribuições diminuiu nos últimos meses, em meio ao debate sobre por quanto tempo os aliados vão poder apoiar de forma realista a Ucrânia.

Nos EUA, um novo pacote de ajuda de US$ 60 bilhões está parado no Congresso devido a disputas políticas internas.

E existe ainda o receio entre os aliados da Ucrânia de que o apoio dos EUA vai diminuir se Donald Trump voltar à Casa Branca após as eleições presidenciais de novembro.

Na União Europeia, um pacote de ajuda de US$ 54 bilhões foi aprovado em fevereiro, após muita discussão e negociação, especialmente com a Hungria, cujo primeiro-ministro, Victor Orban, é um aliado de Putin que se opõe abertamente ao apoio à Ucrânia.

Além disso, a União Europeia está em vias de entregar apenas cerca de metade das munições de artilharia que pretendia fornecer a Kiev até o final de março de 2024.

Os países que apoiam a Rússia incluem seu vizinho Belarus, cujo território e espaço aéreo foi usado para acessar a Ucrânia.

O Irã vem fornecendo drones Shahed à Rússia, dizem os EUA e a União Europeia, embora o Irã apenas admita ter fornecido um pequeno número de drones à Rússia antes da guerra.

Os veículos aéreos não tripulados (Vant), mais conhecidos como drones, se revelaram eficazes para atingir alvos na Ucrânia – em uma guerra em que há uma demanda por drones de ambos os lados devido à sua capacidade de escapar das defesas aéreas.

As sanções não funcionaram tão bem quanto os países ocidentais esperavam, e a Rússia ainda consegue vender seu petróleo e obter peças e componentes para sua indústria militar.

Não acredita-se que a China esteja fornecendo armas a nenhum dos lados. De uma maneira geral, o país asiático adotou uma linha diplomática cuidadosa no que se refere a esta guerra: não condenou a invasão russa, mas tampouco apoiou Moscou militarmente — embora tenha continuado a comprar petróleo russo, assim como a Índia.

Tanto a Rússia quanto a Ucrânia também se empenharam bastante em cortejar países em desenvolvimento, incluindo uma série de visitas diplomáticas à África e à América Latina.

·        Os objetivos da Rússia mudaram?

Acredita-se amplamente que o presidente russo, Vladimir Putin, ainda quer toda a Ucrânia.

Em entrevista recente ao apresentador de talk show americano Tucker Carlson, Putin – que não foi contestado – expôs mais uma vez sua visão distorcida da história e do conflito.

Ele argumenta há muito tempo, sem fornecer evidências sólidas, que os civis na Ucrânia – especialmente na região de Donbas, no leste – necessitam de proteção russa.

Antes da guerra, ele escreveu um longo artigo que negava a existência da Ucrânia como um Estado soberano, dizendo que russos e ucranianos eram “um só povo”.

Em dezembro de 2023, ele declarou que seus objetivos para o que a Rússia chama de “operação militar especial” permaneciam inalterados, incluindo a “desnazificação” – que se baseia em alegações infundadas sobre a influência da extrema direita.

Ele também diz que quer a “desmilitarização” e uma Ucrânia “neutra”, e continua a protestar contra a expansão da influência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o leste.

Como um Estado independente, a Ucrânia nunca pertenceu a nenhuma aliança militar. Seus objetivos políticos incluíam a adesão à União Europeia, e o país estava em negociações para estreitar os laços com a Otan – ambas as perspectivas parecem agora mais próximas do que no início da guerra.

Estes objetivos procuravam fortalecer o Estado da Ucrânia e protegê-la de ser arrastada para qualquer projeto geopolítico que visa restaurar a União Soviética de alguma forma.

·        Como a guerra poderia terminar?

Dado que nenhum dos lados parece propenso a se render, e que Putin parece determinado a permanecer no poder, as previsões dos analistas tendem a crer em uma guerra prolongada.

O centro de pesquisa de segurança global Globsec combinou as opiniões de dezenas de especialistas para avaliar a probabilidade de diferentes desfechos.

O cenário mais provável é de uma guerra de atrito, também conhecida como guerra de exaustão, que se estenderia para além de 2025, com fortes baixas de ambos os lados, e a Ucrânia continuando a depender do fornecimento de armas de aliados.

O segundo cenário mais provável inclui potenciais escaladas de conflitos em outras partes do mundo, como no Oriente Médio, na China-Taiwan e nos Balcãs – com a Rússia tentando exacerbar as tensões.

Dois outros cenários em potencial, ambos considerados igualmente prováveis, seriam a Ucrânia realizar algum avanço militar, mas nenhum acordo ser alcançado para acabar com a guerra – ou a ajuda dos aliados da Ucrânia diminuir, e eles pressionarem o país a chegar a uma solução negociada.

Permanece a incerteza, no entanto, tanto sobre o potencial impacto das eleições presidenciais dos EUA, assim como sobre a forma como outras guerras, especialmente o conflito Israel-Hamas, vão afetar as prioridades e alianças dos apoiadores da Ucrânia e da Rússia.

·        O conflito poderia se alastrar ainda mais?

Em meados de fevereiro, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, advertiu que manter a Ucrânia num “déficit artificial” de armas ajudaria a Rússia.

Ele disse numa conferência de segurança internacional, em Munique, que Putin tornaria os próximos anos “catastróficos” para muitos outros países se o mundo ocidental não o enfrentasse.

O centro de pesquisa Royal United Services Institute (Rusi) afirma que a Rússia conseguiu fazer a transição da sua economia e indústria de defesa para ampliar a produção militar, e está se preparando para uma guerra longa. Diz ainda que a Europa não está acompanhando o ritmo — preocupação levantada também pelo ministro das Relações Exteriores da Polônia.

Países europeus — incluindo alertas feitos pelo ministro das Relações Exteriores da Alemanha e pelo serviço de inteligência da Estônia — manifestaram recentemente receio de que a Rússia possa atacar um país da Otan na próxima década.

Isso levou a Otan e a União Europeia a acelerar seu planejamento para o futuro, tanto em termos de capacidade militar como de preparação das sociedades para viver num mundo bem diferente.

 

Ø  O ataque russo com míssil que criou vilarejo de órfãos na Ucrânia

 

O adolescente Dima perdeu a mãe, o pai e dois avós em um ataque com mísseis ao vilarejo de Hroza, no nordeste da Ucrânia.

“Não consigo compreender completamente”, disse o jovem de 16 anos à BBC. “Agora sou responsável pela nossa casa”, diz ele. “O que mais tenho pena é da minha irmã mais nova. Antes disso acontecer, ela não gostava quando eu a abraçava. Agora ela quer me abraçar o tempo todo", acrescenta.

Em 5 de outubro de 2023, um míssil atingiu um café em Hroza, matando 59 pessoas. Pelo menos um integrante de cada família do vilarejo estava ali para o funeral de um homem chamado Andriy Kozyr, que havia se alistado no Exército ucraniano como voluntário.

Um quinto da população do vilarejo foi morta, e muitas das pessoas que morreram eram pais. Assim, Hroza ficou conhecida como um vilarejo cheio de órfãos.

O ataque foi o incidente mais fatal para civis ucranianos desde o início da invasão em grande escala da Rússia, há dois anos.

A Rússia nunca comentou diretamente o ataque, mas suas forças afirmaram ter realizado ataques contra alvos militares na região, segundo a mídia estatal russa.

A Ucrânia disse que não havia alvos militares ali e um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) endossou: “Não havia indicação de tropas militares ou de quaisquer outros alvos militares legítimos”.

Dima levava uma vida normal de adolescente antes da guerra. Morava com os pais, saia com os amigos, estava frequentemente no telefone e às vezes brigava com as irmãs.

Agora, em um cemitério nos arredores de seu vilarejo, Dima observa as coroas de flores em cores vivas cobrirem os túmulos recém cavados de seus pais e avós paternos. Eles ainda não têm lápides, mas têm cruzes de madeira com fotos suas sorrindo.

Há poucos visitantes aqui. O vilarejo de Dima fica na região de Kharkiv, na Ucrânia, muito próximo da fronteira com a Rússia, e a cerca de 30 km dali o combate é intenso no entorno de Kupyansk. Flores nas cores nacionais ucranianas, azul e amarelo, destacam-se e a quietude só é interrompida pelas explosões ao longe.

Devastados e de luto, Dima e suas irmãs pediram ajuda aos avós maternos.

"Muitas pessoas foram mortas pelo ataque. O vilarejo ficou subitamente vazio", ​​explica Valeriy, avô de Dima, de 62 anos. "A dor nunca será esquecida. Tivemos quatro caixões em casa. Minha mente entende o que aconteceu, mas meu coração ainda não consegue acreditar."

Ele me mostra a última foto tirada da filha Olga e do marido, Anatoliy. “Eles se amavam muito”, lembra Valeriy. “Era um bom lar”.

Valeriy conta que Anatoliy uma vez brincou que se ele morresse antes de Olga, ela seguiria em frente rapidamente e se casaria de novo. “Mas Olga disse: 'Não, querido Anatoly, morreremos no mesmo dia.' Foi como se ela tivesse visto o futuro”, diz Valeriy, enquanto enxuga as lágrimas.

Valeriy descreve as consequências do ataque de outubro como “um filme de terror acelerado”. Ele correu para encontrar a filha, mas não conseguiu chegar a tempo. Uma mulher que estava com Olga quando ela morreu disse: “Suas últimas palavras foram: ‘Quero continuar vivendo’”.

Valeriy e sua esposa Lubov adotaram Dima, a irmã mais velha Daryna, de 17 anos, e a irmã mais nova Nastya, de 10 anos. "Meus netos tiveram que ficar comigo aqui. Eu não podia permitir que a família se separasse," diz, acrescentando que temia que as crianças pudessem acabar em orfanatos.

Embora Valeriy admita que cuidar dos netos nem sempre seja fácil, ele diz que eles estão presentes um para o outro neste momento difícil. "Dima é prestativo no jardim, cuidando dos porcos da família. Daryna aprendeu a cozinhar e Nastya é muito atenciosa e gentil."

Catorze crianças do vilarejo perderam pelo menos um dos pais no ataque, incluindo oito que perderam ambos. Em todos os casos, os avós ou outros familiares decidiram cuidar das crianças para que não fossem enviadas para orfanatos.

A maioria das pessoas ainda está aterrorizada pelo que aconteceu. “Nunca esquecerei os funerais, quando essas crianças estavam ali, em silêncio e solitárias, de mãos dadas”, conta Diana Nosova, que mora na área. "Partiu meu coração."

Após o ataque, alguns órfãos decidiram mudar-se para uma área mais segura, incluindo Vlad, de 14 anos. Ele foi morar no oeste da Ucrânia com a tia depois que a mãe, o avô, o tio e o primo de oito anos morreram.

“Estou com muitas saudades de você”, ele diz à avó Valentyna em uma videochamada. “Eu também”, ela responde.

Valentyna decidiu permanecer, apesar de ter perdido a maior parte da família no ataque, incluindo o marido, a filha, o filho e o neto.

Caminho com a senhora de 57 anos pelo vilarejo onde ela viveu toda uma vida. As coisas são diferentes agora.

“Este lugar é muito assustador”, ela me diz enquanto passamos por um prédio destruído por um míssil. "É difícil. Quando você sabe que seus filhos estavam caídos aqui no chão. A morte deles está aqui."

"Quanto mais o tempo passa, pior me sinto. Não tenho ninguém. Quase ninguém sobreviveu."

Valentyna diz que encontra conforto em seus animais de estimação, dois cachorros e um gato chamado Stephan, e diz que sua prioridade agora é Vlad.

Ela quer que ele tenha uma boa educação. Eles se falam por videochamada com frequência, e ela pagou para ele frequentar aulas extras de informática. Mas o mais importante é que Vlad esteja seguro. E ela diz que está feliz por ele não estar mais na região de Kharkiv.

Kharkiv teve pouco descanso da violência desde o início da guerra em fevereiro de 2022. A região, incluindo Hroza, foi capturada pelas forças russas no início da invasão. Após uma grande contra-ofensiva em setembro de 2022, foi reconquistada pela Ucrânia. Mas o enfrentamento continua, e a região é frequentemente alvo de ataques de drones, bombas e mísseis russos.

O serviço de segurança da Ucrânia suspeita que dois ex-cidadãos ucranianos, que desertaram para o lado russo, informaram aos militares sobre o velório planejado em Hroza.

A BBC não conseguiu verificar a informação, mas sabe-se que ucranianos já foram condenados por fornecer informações à Rússia em outros casos, em que viviam em territórios próximos da linha da frente anteriormente ocupados pela Rússia.

De volta à casa de Dima, sua irmã mais velha colocou fotos dos familiares na parede. Enquanto tentam reconstruir suas vidas, o avô Valeriy permanece positivo: “Está tudo bem”, diz ele.

Isto pode ser apenas um desejo, já que o fim da guerra não parece próximo e a Rússia está reunindo mais tropas na cidade vizinha de Kupyansk.

Mas apesar de tudo o que aconteceu aqui, Valeriy insiste em ser otimista: “Se vejo que meus netos estão bem, que sorriem, fico aliviado”, diz ele. "Enquanto você estiver vivo, você deve ter esperança."

 

Fonte: BBC Word Service

 

Nenhum comentário: