Os aprendizados do ano que passou que podem apontar para um 2024 mais
pacífico e menos traumático
Quem olha no retrovisor da história recente do
planeta vê muita destruição, causada por desastres climáticos e guerras, acima
de tudo. O novo conflito israelo-palestino, iniciado há três meses e ainda sem
data para acabar, é o capítulo mais notório de 2023.
Mortes, bombardeios, trocas de tiros, falta de alimentos
e energia, genocídio, massacre, desacordos diplomáticos são termos que inundam
os noticiários. Mas mesmo quando falamos das grandes tragédias do ano que
passou, um olhar mais atento, uma conversa com pessoas que não pegam em armas,
com analistas que pensam além da segurança e da geopolítica, permite vislumbrar
algumas possibilidades de evolução para o ano que começa.
Um desses personagens é Ahmed Alghariz, professor
de dança de 34 anos que, embora tenha nascido na Arábia Saudita e more na
Alemanha, considera a Palestina - terra de seus pais - como seu país.
Tanto que mantém, no campo de refugiados Nuseirat, localizado na Faixa de Gaza,
uma escola de dança, desde 2012. Foi também em Gaza que ele realizou
intervenções de pedagogia da emergência, uma disciplina dedicada a curar
traumas em crianças de regiões em conflito.
Todo ano, ele vai para Gaza, e em 2023 não foi
diferente. Chegou em agosto. Mas, a partir de 7 de outubro, quando o Hamas
realizou o ataque-surpresa em território israelense que serviu de pretexto para
o massacre perpetrado contra a Palestina desde então, o planejamento de sua
estadia precisou ser alterado.
Crianças
“A ideia da pedagogia da emergência é trabalhar com
as crianças assim que a tragédia acontece, para integrar o que aconteceu com
suas biografias”, explica a alemã Fiona Bay, chefe do Departamento de Pedagogia
da Emergência da associação Amigos da Educação Waldorf. Trocando em miúdos, o
objetivo é ajudar a prevenir distúrbios relacionados ao estresse pós-traumático
ou outros desdobramentos patológicos relacionados ao trauma.
“Num evento traumático, uma nova situação toma
controle de você. Então, é preciso criar uma rotina para dar às crianças algo
em que se segurar”, diz Fiona. Segundo ela, esse trabalho usa recursos da
pedagogia Waldorf e técnicas relacionadas a esse universo, como arte, música,
dança. “Se você toma um choque, a respiração para e isso afeta o organismo. A
arte dá a chance de expressar algo que está em você, sem precisar de palavras”.
Agir rapidamente e criar uma rotina adequada à nova
situação. Foi o que Ahmed fez na Faixa de Gaza, em escolas da ONU que, mesmo
com as aulas interrompidas devido ao ataque israelense, ficaram lotadas de
pessoas deslocadas, que as usaram como abrigos — abaixo, vídeo gravado em 8 de
novembro, portanto um mês após o início da guerra, mostra o trabalho realizado
pelo dançarino (de camiseta vermelha e boné amarelo) numa escola da ONU em
Nuseirat.
“Tive que aprender a agir imediatamente, sem
planejar tanto. Tive que improvisar uma atividade atrás da outra. Não tinha
tempo para pensar. Precisava manter as crianças ocupadas o tempo todo”, conta
ele, que atendeu o Brasil de Fato por videoconferência, do Egito, em
26 de dezembro, poucos dias após conseguir sair da Faixa de Gaza. Ainda com dor
nas costas e “tentando acordar de tudo que eu passei”, conforme disse antes de
começar a entrevista.
Para exemplificar como a situação extrema vivida em
Gaza impactou em seu trabalho, ele conta que, normalmente, quando abre uma roda
de dança, pergunta aos participantes quem quer brincar e diz que vai escolher o
mais corajoso.
Mas percebeu que ali a abordagem precisava ser
diferente, porque todos apresentavam uma necessidade incomum de participar da
atividade, de receber atenção, “porque não tinham a atenção de ninguém naquela
situação”. “Só queriam ser crianças, participar. Se sentissem que não fossem
escolhidos numa situação daquela, ficariam muito mal”.
·
“Presente de Deus”
O professor não acha que essa nova demanda
prejudicou a aplicação do seu trabalho. Pelo contrário. “Tinha que improvisar,
e assim ganhei mais experiência. É um presente de Deus”, reflete, num
depoimento que paralisa a conversa por alguns segundos e provoca certa comoção,
porque impressiona uma pessoa enxergar tamanha positividade numa situação tão
adversa. “Sabemos que Deus escreve sempre algo melhor do que está nos nossos
planos”.
Alghariz conta que, durante uma atividade numa
escola da ONU em Gaza, caiu uma bomba perto deles. “As crianças ficaram com
medo, mas consegui manter a atividade”. Para aliviar o estresse em situações
assim, ele usa técnicas como manipulações corporais, gritos e respirações
ativas. “Tento ativar nervos que ficam colapsados, que são responsáveis por
muitas funções que as crianças ficam sem conseguir realizar devido aos traumas.
Procuro orientar a linguagem corporal para fincar as raízes da pessoa no chão.
É um momento para esquecer de tudo, esquecer que há uma guerra ao redor”.
Algo se move dentro das crianças que recebem um
atendimento pedagógico adequado nessas situações, define Fiona Bay, ao lembrar
de experiências que testemunhou no campo de refugiados de Shatila, no Líbano, e
na própria Faixa de Gaza, em 2009, após outra guerra no território palestino.
“Vi crianças em choque, lembro de um menino pequeno. Ele me olhava, mas seus
olhos eram vazios. Em três dias de trabalho, ele começou a olhar com mais
profundidade, a sorrir. O comportamento mudou, eles começaram a relaxar de novo”.
“Aliviar crianças dos seus traumas ajuda a ter
adultos menos ressentidos, com menos ódio armazenado, menos espírito de
revanchismo”, avalia a filósofa Lúcia Helena Galvão, em entrevista por e-mail.
“Deveríamos tratar inclusive dos traumas dos adultos, para que a gente amenize
essa vontade de pagar sangue com sangue”.
O trabalho realizado pelos pedagogos da emergência
está ciente dessa necessidade, não só para cuidar dos adultos em si, mas para
que eles possam ser melhores cuidadores das crianças, sejam eles pais,
professores ou responsáveis de outra categoria. “Se eu, adulta, entendo a minha
reação perante determinada situação, isso me ajuda a apoiar a criança”, explica
a alemã Fiona Bay.
No trabalho diário na redação, de acompanhar as
notícias e imagens que chegam do front palestino, recebemos algumas fotografias
de palhaços realizando trabalhos junto a crianças, como você pode ver nessa
reportagem. Esse tipo de trabalho conta com o aval do psicanalista Christian
Dunker, que tem experiência específica nesse trabalho de palhaçaria, tanto que
é co-autor do livro O palhaço e o psicanalista – Como escutar os outros pode
transformar vidas, ao lado do educador e clown Cláudio Thebas.
“Eu aposto nisso porque vi funcionando”, diz Dunker
ao Brasil de Fato. Ele conta que certa vez, num casebre num ponto da fronteira
entre Israel e Palestina, presenciou uma situação em que um clown palestino
tentava promover o diálogo entre um israelense e um palestino. Com humor e uma
mediação não trivial, conseguiu ser a terceira voz que tornou a conversa
viável, promoveu um “vínculo real”.
“O palhaço é um precedente do psicanalista, um
personagem-protótipo do psicanalista”, analisa Dunker. “Se a gente consegue
entrar numa situação dessa produzindo a escuta que um palhaço tem, a chance de
transformação é muito grande”.
·
Reconhecimento mútuo e diálogo
O psicanalista, que é neto de um alemão que
combateu na Segunda Guerra Mundial, que desde cedo teve contato com a
literatura de testemunho e é um pensador profundamente envolvido com a
problemática envolvendo judeus e palestinos, acha que o tempo está a favor dos
dominadores, ou seja, de Israel. Razões: os assentamentos israelenses ilegais
na Cisjordânia continuarão recebendo apoio; Israel segue se desenvolvendo como
polo tecnológico, algo que ocorre em associação com a militarização da
sociedade; porque cidadãos aceitam ter um rifle na sua despensa; mães e pais
aceitam que seus filhos participem de treinamento militar permanente; e também
porque a esquerda israelense está sendo “massacrada”, entre outras razões pela
falta de apoio internacional.
Dunker vê na situação atual uma “fratura na
gramática básica do reconhecimento”, representada pelo fato de uma parcela
significativa dos atores em conflito defender a ideia de que o outro lado não
merece existir. Ou seja, não validar a existência do Estado de Israel e do
Estado Palestino. Contudo, ele acredita que, no ponto em que o massacre chegou
com a atual ofensiva israelense, pode haver uma chance para que algo positivo
surja no horizonte. “Se mudarmos a lógica da desexistência para a da coexistência,
podemos retomar o diálogo”.
Para essa retomada, segundo ele, momentos de
extrema violência, como o atual, podem ser propícios, porque a indignação que
provocam pode “mobilizar as forças mais transformativas nesse processo”. O
psicanalista enxerga, em uma parcela tanto dos palestinos quanto dos
israelenses, um sentimento de que a conversa sobre a questão israelo-palestina
“está atrasada e envelheceu, se tornou menos fálica”. Para ele, as conversas
menos fálicas são aquelas conformadas com o menos pior, que pecam pela falta de
ousadia.
Lucia Helena Galvão tem ressalvas à ideia de que o
pior cenário possível represente um momento propício para a retomada, pela
impossibilidade de saber onde fica o fundo do poço. “Isso pode progredir para
um estado de revanchismo, em que massacram de um lado, massacram do outro, até
que tudo tenha sido destruído, envolvendo cada vez mais nações tomando partido
de um lado e de outro e mutuamente querendo se massacrar”, diz a filósofa. “O
fundo pode ser quilômetros mais abaixo do que a gente imagina. Pode levar
inclusive à destruição da humanidade inteira, do próprio planeta”.
·
Na Ucrânia, um bunker para brincar
A proposta da pedagogia da emergência é ter equipes
espalhadas pelo mundo, para que em tempos de crise, pedagogos e pedagogas
locais possam prover o apoio necessário. Primeiro eles são treinados, para
depois aplicaram a metodologia junto às crianças locais, e também aos adultos.
Esse trabalho preventivo é feito em locais tecnicamente pacíficos, como o
Brasil (http://pedagogiadeemergencia.org/).
Mas também em locais onde ocorrem experiências
traumáticas, como o terremoto na Turquia em fevereiro de 2023. “Fomos lá e
fizemos um trabalho de duas semanas com crianças, pais e professores. Depois
disso, desenvolvemos um projeto no qual oferecemos dois espaços amigáveis para
crianças frequentarem todos os dias, e isso vai prosseguir em 2024”, conta
Fiona Bay.
Outro exemplo é a Ucrânia, onde a atuação começou
logo após o início da guerra com a Rússia, em fevereiro de 2022. “Nosso
primeiro treinamento lá foi em março de 2022, em Horodenka, seguido por treinos
introdutórios em Khust, Kamenetz Podolski, Odessa, Liviv, Rivne e Kiev”, diz
ela. Eram treinos de quatro ou cinco dias, compostos de aulas teóricas e
workshops práticos, com o objetivo de prover noções sobre áreas do conhecimento
como psicotraumatologia, pedagogia da emergência e pedagogia do trauma.
Uma das aprendizes foi a ucraniana Angelika
Merzalowa, professora de música e pedagoga para crianças com necessidades
especiais, que implementou as técnicas adquiridas em sua cidade-natal, Kharkiv,
onde promoveu atividades ao ar livre e também transformou um bunker num espaço
convidativo para crianças. “Era um porão num prédio de cinco andares. Estava
ocioso havia muitos anos e servindo como depósito de lixo. Depois que os
moradores ajudaram a remover o lixo, cerca de 30 a 35 crianças e adultos usavam
aquele espaço para as nossas sessões”, lembra Merzalowa.
O porão foi transformado numa espécie de jardim de
infância, com materiais para desenho, cordas para escalada, bolinhas para
malabarismo… um espaço onde, todas as tardes, era possível ter uma rotina,
encontrar amigos, brincar juntos. Não era exatamente um espaço bonito, por
estar localizado num porão, diz ela. “Mas a beleza vinha da atmosfera
maravilhosa criada pela pedagogia da emergência e do trauma. Quando as crianças
me viam, começam a gritar: ‘Oba, é hora da melhor atividade do mundo!’. Isso
enchia de força a mim e meus auxiliares”.
“Em 2022, muitas escolas ficaram fechadas por
longos períodos e muitas crianças ficaram sem ter o que fazer. Em Kharkiv, a
situação era muito volátil, com bombardeios frequentes em vários bairros,
cortes no fornecimento de energia, dificuldades econômicas e falta de comida”,
afirma Fiona Bay.
·
A montanha de fracassados e o universo quitinete
No final de 2022, numa palestra intitulada
"Fechar o ano com chave de ouro", Lúcia Helena Galvão abordava a
necessidade de construir relacionamentos sólidos a fim de atuar positivamente
sobre os problemas do mundo, um ponto de vista que poderia estimular as pessoas
a tomarem as rédeas da humanidade para que os problemas sejam solucionados, em
vez de ficarem apenas lamentando e esperando que outrem o façam. Pergunto se
existe alguma atualização necessária em relação àquela linha de raciocínio, algo
que possa ser aplicado mais especificamente à ordem mundial deste final de
2023.
“O que eu acrescentaria é que hoje tentamos
pacificar guerras de uma maneira muito externa e paliativa, ou seja, ‘vamos
acabar com uma guerra, fazer um armistício, um cessar-fogo definitivo’. Isso
apenas gerou fatos externos, mas não mudamos a maneira de nos relacionarmos
internamente. O homem é altamente competitivo, está acostumado a ter sucesso
sobre o fracasso alheio. Para ele, estar no primeiro lugar da pirâmide social é
o máximo, mesmo que para isso ele tenha que subir numa montanha de fracassados.
Enquanto essa mentalidade não muda, e não aprendemos a ganhar juntos, enquanto
essa vitória não se opera dentro do ser humano, a guerra é sempre um potencial
latente. A tensão vive dentro do homem quando ele acha que, na derrota do
outro, vai encontrar seu sucesso e sua felicidade”, diz a filósofa.
Questionada sobre o ponto de vista do filósofo e
matemático estadunidense Charles Eisenstein, que defende a necessidade de
sermos, por vezes, contidos em relação a nossas convicções para podermos
restabelecer canais de diálogo com as pessoas que pensam diferente da gente, de
modo a distensionar a polarização e criarmos uma rede cada vez maior de pessoas
que acreditam que o mundo possa ser melhorado, ela concorda e acrescenta o
seguinte:
“A partir do momento que o homem tem a convicção,
como dizia Sócrates, do ‘só sei que nada sei’, do tamanho da sua ignorância, e
se coloca diante do mundo como um aprendiz, haverá menos tensões de ideologias
que se acham donas da verdade. Quando o homem diz ‘eu sei muito’, significa que
vive naquilo que eu chamo de universo quitinete, um universo restrito do qual
acha que conhece uma parcela muito grande. O homem deveria sempre ter o
espírito de aprendiz e a convicção de que não é dono de nenhuma verdade. Isso
nos aliviaria de muitos conflitos e pacificaria bastante as tensões em que
vivemos”.
Com espírito de aprendiz, com vontade de ganhar
juntos, com crianças e adultos menos traumatizados após tantos treinamentos
pedagógicos, palhaçarias e outras iniciativas similares, e com a experiência
acumulada neste 2023 tão violento, quem sabe um 2024 mais pacífico e
construtivo esteja no horizonte, validando assim uma ideia contida num artigo
de Christian Dunker publicado pelo UOL em outubro último. “Entendemos que a
brutalidade e injustiça escaladas a um novo nível nestes inaceitáveis
acontecimentos de 2023 podem ser o pretexto faltante para a paz”.
Fonte: Brasil de Fato
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