Câncer de próstata: quando o homem realmente deve fazer os exames
preventivos?
A cada hora, oito homens brasileiros recebem o
diagnóstico de câncer de
próstata. Desses, dois irão morrer por causa do problema.
Em números absolutos, essa doença provoca 71,7 mil
casos e 16,3 mil mortes ao ano no país. Isso faz desse tumor o segundo tipo
mais frequente no público masculino, atrás apenas do câncer de pele não
melanoma.
Quando o assunto é a prevenção dessa enfermidade,
existem duas estratégias principais. A primeira delas foca em controlar os fatores de risco que
predispõem o surgimento do tumor — como não fumar e manter o
peso adequado ao longo da vida por meio de uma dieta adequada e da prática
regular de exercícios físicos.
A segunda envolve a detecção precoce do câncer
nessa glândula do sistema reprodutivo, responsável pela produção do líquido que
compõe o sêmen junto com os espermatozoides.
Durante muitos anos, as campanhas que incentivam o
rastreamento do tumor na próstata — que
se intensificam com a chegada do Novembro Azul, o mês de conscientização sobre
o tema — traziam uma mensagem relativamente simples: todos os homens com mais
de 45 ou 50 anos deveriam procurar o médico e realizar de tempos em tempos os
exames PSA e o toque retal.
O PSA, sigla em inglês para antígeno específico da
próstata, é uma enzima medida no sangue. Se ela passa de um certo limite
estabelecido pelos especialistas, pode indicar algo de errado na glândula
masculina.
Já o toque retal é um exame feito no próprio
consultório, em que o profissional da saúde insere o dedo no ânus do paciente
para tocar a próstata (ela fica próxima do reto) e checar se há alguma formação
estranha ali.
A orientação de realizar esses testes, no entanto,
passou a ser mais questionada, debatida e relativizada nos últimos anos no
Brasil e no mundo.
De um lado, algumas instituições — como o
Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) — contraindicam a
realização do rastreamento do câncer de próstata.
De outro, entidades como a Sociedade Brasileira de
Urologia (SBU) defendem a importância desses exames periódicos para alguns
públicos.
Quais são os argumentos apresentados nessa
discussão? E, mais importante, o que os homens devem fazer em prol da própria
saúde para flagrar um eventual tumor na próstata logo nos primeiros estágios,
quando as chances de cura são bem maiores?
·
O que diz o Inca
No final de outubro, o Inca e o Ministério da
Saúde publicaram
uma nota técnica em que justificam por que contra-indicam o rastreamento
populacional do câncer de próstata.
O argumento principal apresentado no texto é o
risco de sobretratamento — ou a aplicação de recursos terapêuticos sem
necessidade e além do desejado, de modo que os prejuízos superam os benefícios.
E aqui cabe uma explicação: entre 30 e 40% dos
tumores que brotam na glândula masculina têm um comportamento indolente (ou
seja, são pouco agressivos e crescem devagar).
Na prática, isso significa que o indivíduo
futuramente vai morrer com o câncer, mas não em decorrência dele.
E o problema está justamente aí. Nesses casos em
que a doença é praticamente inofensiva, os médicos costumam indicar a
realização da chamada vigilância ativa — em outras palavras, basta fazer o
acompanhamento por meio de exames, sem a necessidade de submeter o paciente a
tratamentos ou cirurgias.
Essas intervenções só são adotadas se os testes
indicarem alguma alteração no quadro, como o início de algo mais agressivo e
potencialmente fatal.
"Mas nem sempre é possível dizer, no momento
do diagnóstico, quais tumores terão comportamentos agressivos e quais terão
crescimento lento", aponta a nota do Inca/Ministério da Saúde.
"O sobretratamento é o tratamento de cânceres
que não evoluiriam a um ponto ameaçador e pode gerar importante impacto na
qualidade de vida dos homens, como as disfunções sexual e urinária",
complementa o texto.
Outro perigo apontado pelos representantes dos
órgãos vinculados ao Governo Federal está relacionado à biópsia. Em resumo,
aqueles pacientes que apresentam alguma alteração importante no PSA e/ou no
toque retal precisam ser submetidos a um procedimento que retira um pedacinho
do nódulo suspeito.
Esse material é analisado em laboratórios de
patologia para definir se se trata de um câncer mesmo ou de algo benigno.
Na avaliação do Inca e do Ministério da Saúde, a
necessidade de fazer biópsia pode estar relacionada a "complicações como
dor, sangramento e infecções, além de ansiedade e estresse no indivíduo e na
família".
Em entrevista à BBC News Brasil, Renata Maciel,
chefe da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede -
Coordenação de Prevenção e Vigilância do Inca, destaca que o posicionamento
recém-divulgado é apenas um reforço de algo que a instituição defende desde
2015.
"Temos estudos que avaliaram essa questão e
mostraram que o rastreamento do câncer de próstata está relacionado a uma
diminuição da mortalidade. Essa redução, porém, é acompanhada de danos à saúde
do homem", diz ela.
"Então, quando colocamos esses fatores na
balança, entendemos que os riscos relacionados ao rastreamento na população
assintomática superam os benefícios", pontua a especialista.
Mas, seguindo essa linha de raciocínio, o que pode
ser feito para se proteger ou fazer a detecção precoce do câncer de próstata?
"O homem tem que prevenir os fatores de risco
e adotar hábitos saudáveis, como diminuir o consumo de bebidas alcoólicas, não
fumar, praticar atividade física", responde Maciel.
"Vale também ficar atento aos sinais e
sintomas e acessar o serviço de saúde rapidamente. Se há algo de diferente, é
importante ir até uma unidade de saúde e conversar com um profissional para
fazer o diagnóstico mais precoce possível deste tumor", complementa ela.
Entre os sintomas preocupantes citados pela
especialista, estão alterações no hábito urinário, dificuldade ou dor para
fazer xixi, e aparecimento de sangue ou um líquido rosado na urina.
"Nós fazemos o acompanhamento das evidências,
até porque a ciência é dinâmica. Se sair algum estudo que prove o contrário e
mostre o valor do rastreamento, vamos reavaliar nosso posicionamento",
pontua Maciel.
"Quando pensamos na saúde pública, não podemos
cometer erros. Porque nossas recomendações influenciam a vida de milhões de
pessoas e precisamos sempre ter muito cuidado", finaliza ela.
·
O que diz a SBU
Num posicionamento também
divulgado no final de outubro, a Sociedade Brasileira de Urologia
defendeu individualizar a realização de exames periódicos para flagrar o câncer
de próstata, "após ampla discussão de riscos e potenciais benefícios, em
decisão compartilhada com o paciente".
"Os homens, a partir de 50 anos e mesmo sem
apresentar sintomas, devem procurar um profissional especializado, para
avaliação individualizada tendo como objetivo o diagnóstico precoce do câncer
de próstata", aponta o texto.
"Os homens que integrarem o grupo de risco
(raça negra ou com parentes de primeiro grau com câncer de próstata) devem
começar seus exames mais precocemente, a partir dos 45 anos. Após os 75 anos,
somente homens com perspectiva de vida maior do que 10 anos poderão fazer essa
avaliação."
O médico Alfredo Canalini, presidente da SBU,
lembra que em 2012 o U.S. Preventive Task Force — um órgão que ajuda a definir
as políticas públicas de saúde nos Estados Unidos — fez um
posicionamento contrário ao rastreamento do câncer de próstata.
"Anos depois, isso levou a um aumento dos
diagnósticos da doença em estágio avançado por lá", observa ele.
"Portanto, você deixar para fazer os exames
somente quando alguns sintomas aparecem é um equívoco enorme. Nesses casos, a
possibilidade de você estar diante de um paciente com a doença já alastrada e
sem possibilidade de cura supera os 90%", calcula Canalini.
Ainda de acordo com o presidente da SBU, "o
tempo vai mostrar quem está certo e quem está errado" nesse debate sobre a
realização de exames periódicos para a detecção precoce do câncer de próstata
no Brasil.
"Somos uma entidade científica e nossa
obrigação é expor recomendações segundo aquilo que acreditamos correto e as
evidências científicas que temos à disposição", diz ele.
Para Canalini, o risco de sobretratamento do câncer
de próstata — como Inca/Ministério da Saúde chamam a atenção — pode ser
minimizado com o uso de ferramentas e critérios modernos.
"Ao longo do tempo, começamos a entender quais
eram os grupos de pacientes suscetíveis a um câncer mais agressivo ou aqueles
com maior probabilidade de uma doença indolente", avalia ele.
Para fazer essa avaliação, os médicos levam em
conta a idade do paciente e o histórico familiar.
Além disso, exames de imagem como a ressonância
magnética permitem avaliar melhor um caso suspeito antes de partir para a
biópsia.
Ainda segundo especialistas ouvidos pela BBC News
Brasil, o risco de complicações relacionadas à biópsia é baixo — em torno de 1
a 2% — se o procedimento for feito por profissionais treinados em centros
especializados.
Por fim, eles argumentam que a análise da biópsia
permite classificar as células cancerosas segundo o grau de agressividade
delas.
Para isso, os patologistas usam uma ferramenta
chamada Classificação de Gleason — quanto mais elevado o grau, maior o risco de
que o tumor seja agressivo ou tenha se espalhado para outros tecidos (num
processo conhecido como metástase).
"Nos últimos tempos, também aprendemos que nem
todo indivíduo com PSA elevado é portador de câncer na próstata, e nem todo
mundo com um PSA dentro dos limites está livre do risco de um tumor
desses", acrescenta Canalini.
"Por isso que aliamos o PSA com o toque retal.
Isso nos ajuda a fazer um diagnóstico mais preciso", complementa o
urologista.
A partir de todas essas ponderações e cuidados, a
SBU defende a realização de exames periódicos para flagrar o câncer de próstata
em estágio precoce, como mencionado anteriormente.
"Apesar dos avanços terapêuticos, cerca de 25%
dos pacientes com câncer de próstata ainda morrem devido à doença. Atualmente,
cerca de 20% ainda são diagnosticados em estágios avançados, embora um declínio
importante tenha ocorrido nas últimas décadas em decorrência, principalmente,
de políticas para o diagnóstico precoce da doença e maior conscientização da
população masculina", afirma a entidade.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Radioterapia
(SBRT) adotou uma posição parecida.
"Sabemos que no Brasil, o acesso e compreensão
da população masculina sobre as questões relativas ao rastreamento é limitado.
Desta forma, contraindicar tal procedimento restringe o acesso e tem potencial
de grande prejuízo sobre a população de risco mais elevado, pois pode levar a
uma má compreensão sobre o tema", diz o texto.
"A ida ao urologista constitui em muitos casos
a única oportunidade de o paciente comparecer ao médico de forma preventiva no
Brasil. Várias oportunidades de rastreio de outras condições podem ser perdidas
com a contraindicação ao rastreio do câncer de próstata, além da perda das
oportunidades de avaliações de outras questões urológicas infecciosas e
orientações urológicas e saúde sexual aos pacientes", conclui a SBRT.
·
Rastreamento 'inteligente e direcionado'
Na avaliação do médico Gustavo Guimarães, diretor
do Instituto de Urologia, Oncologia e Cirurgia Robótica (IUCR), em São Paulo,
os estudos mais recentes não deixam dúvidas de que o diagnóstico precoce do
câncer de próstata aumenta as chances de sobrevida e cura do paciente.
"Por um lado, um rastreamento populacional
irrestrito gera um risco de sobretratamento. Por outro, não fazer nada aumenta
o diagnóstico de casos avançados e a mortalidade por este câncer", pondera
ele.
"O ideal seria fazer um rastreamento
inteligente e direcionado aos grupos de maior risco", propõe o urologista,
que também é diretor dos Departamentos Cirúrgicos Oncológicos da BP - A
Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Essa estratégia "inteligente e
direcionada" serviria para balancear a necessidade de detectar o tumor na
glândula masculina nos primeiros estágios e os recursos públicos disponíveis
para manter um programa como esse nos sistemas de saúde.
"A grande questão é: dentro de um orçamento
curto, como eu consigo selecionar os homens que mais precisam fazer os exames e
baratear os custos desse processo?", questiona o oncologista Fernando
Maluf, fundador do Instituto Vencer o Câncer.
"Um rastreamento populacional num país como o
nosso talvez devesse ser feito entre os 50 e os 70 anos", opina ele.
Ainda segundo Maluf, o primeiro exame é essencial
para definir a periodicidade desse check-up.
"Se o valor do primeiro PSA for muito baixo,
você não precisa repetir o teste em um ano. Talvez só seja necessário refazê-lo
daqui a três anos", sugere o especialista, que também atua na BP e no
Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista.
"Isso diminui os custos e seleciona melhor
aqueles pacientes que precisam ser acompanhados de perto", conclui ele.
Guimarães lembra que o debate sobre gastos com
saúde deve ser mais amplo.
"Um homem brasileiro de 50 ou 60 anos
representa uma força de trabalho essencial para nossa economia", destaca.
Seguindo essa linha de raciocínio, o médico pontua
que a detecção de um câncer avançado nesses indivíduos representa um prejuízo
duplo: primeiro, o valor elevado do próprio tratamento contra o tumor; segundo,
o afastamento do trabalho para lidar com uma doença que, em muitos casos,
poderia ser diagnosticada numa etapa inicial (quando os cuidados terapêuticos
costumam ser mais simples e baratos).
Por fim, há um aspecto em que todas as partes
envolvidas nesse debate parecem concordar: o homem está no centro dos cuidados
e, junto do médico, deve ser parte ativa de qualquer estratégia sobre fazer (ou
não) os exames periódicos.
"Isso é uma tendência na Medicina:
individualizar as condutas e tomar decisões compartilhadas", constata
Canalini.
"Por questões culturais, os homens não estão
acostumados a acessar os serviços de saúde. E precisamos passar o recado de que
eles devem ficar atentos e fazer o acompanhamento não só para câncer, mas
também para uma série de doenças crônicas, como hipertensão arterial e
diabetes", diz Maciel.
"O paciente precisa estar no centro das
decisões e entender os prós e contras de qualquer medida. Mas não podemos
ignorar que a palavra e a orientação do médico são muito importantes nesse
processo", pondera Maluf.
"Para que toda discussão tenha frutos, ela
precisa necessariamente incluir os principais interessados em toda essa
história: os próprios homens", conclui Guimarães.
Fonte: BBC News Brasil
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