O desmentido traumático do racismo no
futebol
Da FIFA
à Lula, passando por diversos clubes, foram feitas as notas de praxe.
- Eis a história
O
Palmeiras havia colocado o Cerro Portenho para bailar no Paraguai. Jogavam pela
Libertadores sub-20. O placar estava três a zero para o time brasileiro. No
segundo tempo, um torcedor adversário, com uma criança no colo, imitou um
macaco. Em seguida, Luighi, do
Palmeiras, recebeu cuspidas e foi insultado com gestos racistas. No
final do jogo, ele foi escolhido para a entrevista.
“– Qual
a sua sensação sobre o resultado da partida?”, questionou o repórter.
Com voz
embargada, Luighi respondeu:
“– Não,
não, não, não! É sério isso? Vocês não vão perguntar sobre o ato de racismo que
fizeram comigo? [Luighi então começa a chorar]. É sério? Até quando a gente vai
passar isso? Me fala até quando a gente vai passar isso? O que fizeram comigo
foi um crime, pô! E vocês vão perguntar isso? Sobre o jogo mesmo? A Conmebol
vai fazer o que sobre isso? A CBF, sei lá? Vocês não iam perguntar sobre isso?
Não iam, né?”
Da FIFA
à Lula, passando por diversos clubes, foram feitas as notas de praxe. O Cerro
Portenho se manifestou de maneira curiosa. Estendeu sua solidariedade aos
jogadores vitimados, mas associou o racismo à incapacidade dos jogadores de
resistir às provocações da torcida: “Evitemos cair em provocações que possam
derivar este tipo de condutas”, dizia o texto. A Conmebol aplicou uma multa de
US$ 50 mil ao clube paraguaio. Considerando branda a punição, a presidente do
Palmeiras, Leila Pereira, sugeriu que os clubes brasileiros se desfiliassem da
Conmebol, e passassem a participar dos torneios da Concacaf (entidade de clubes
da América Central e do Norte).
Após a
declaração contundente de Leila, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez,
disse que a Libertadores sem os clubes brasileiros seria como o Tarzan sem a
Chita, sua companheira macaca.
- O desmentido
como fixação do traumático
No
final século XIX, ao escutar relatos de abuso sexual de pacientes histéricas,
Freud cogitou uma teoria da sedução baseada na ideia de que os adultos
traumatizavam as crianças. A hipótese era de que elas sofreriam de
reminiscências de um evento sexual traumático. No entanto, Freud abandonou a
hipótese ao constatar que tais abusos poderiam ser meras fantasias, e não
necessariamente fatos da realidade. Até o final da Primeira Guerra Mundial, o
trauma ficou esquecido na teoria freudiana. O tema só foi retomado com a escuta
dos ex-combatentes e a assunção da pulsão de morte, na virada de 1920, com o
célebre “Além do princípio do prazer”.
Apesar
da lateralidade que Freud conferiu ao trauma, Ferenczi fez dele seu eixo
teórico e clínico. Se fosse possível resumir o conjunto da obra ferencziana em
uma única palavra, seria difícil encontrar outra que não trauma. No artigo
“Reflexões sobre o trauma”, Ferenczi o descreveu como “um choque inesperado,
não preparado e esmagador”, marcado pela “suspensão de toda espécie de
atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido
de toda e qualquer resistência”, capaz de interromper momentaneamente as
faculdades de percepção e pensamento, levando o sujeito a sentir um desamparo
análogo ao dos primeiros momentos de vida (1934/2011, p. 129-130).
Se essa
noção é próxima àquela proposta por Freud em seus primeiros anos, Ferenczi
acrescentou à sua teoria do trauma dois elementos diferenciais: o processo
traumático se dá em diferentes tempos no psiquismo, e é constituído a partir de
relações marcadas por vulnerabilidade. Em sua traumatogênese, propôs então que,
“após uma violação grave – que pode ser sexual, física ou psicológica –, a
criança ou qualquer outro sujeito em estado de vulnerabilidade, buscaria um
terceiro em que confia para testemunhar a dor causada pela agressão sofrida”
(Kupermann, 2022, p.33-34). O traumatismo só se efetivaria se esse testemunho
fosse desmentido, ou seja, descredibilizado, ignorado, não reconhecido pela
terceira pessoa, deixando a vítima abandonada, sem ter com quem contar.
O
primeiro tempo do trauma é, portanto, o (1) tempo do
indizível, momento da “violação externa causada pelo agressor”.
Ferenczi fala em choque ou comoção psíquica para se referir a esse primeiro
tempo. O segundo é o (2) tempo do testemunho, marcado pela “busca de
auxílio de uma terceira pessoa ou mesmo de autoridades ou instituições
competentes da vida social”, que possam servir de ouvintes e testemunhas da
narrativa desse choque traumático. O terceiro é o (3) tempo do desmentido,
ou do descrédito, ou do não reconhecimento, quando se diz, ou se insinua à
vítima, por meio da indiferença, que nada de grave aconteceu, ou mesmo quando a
vítima é punida ou culpabilizada pela violência sofrida” (Kupermann, 2022,
p.33-34).
Veja-se
que, para Ferenczi, o traumático não está na ocorrência de um evento danoso,
mas no não reconhecimento da violência sofrida, exatamente como aconteceu com
Luighi. Dessa forma, o que se desmente nesse terceiro tempo não é o evento, mas
o próprio sujeito que conta, sem ser acolhido, sobre o dano que sofreu (Gondar,
2012, p. 196).
- Desmentir a
violência do racismo
As
denúncias de um racismo desmentido remontam ao canônico Pele Negra,
Máscaras Brancas, escrito nos anos 1950 por Frantz Fanon. Depois do escrito
ter sido rejeitado como tese de doutorado em psiquiatria, o livro foi publicado
na França três anos depois. Nessa época, entendia-se que o racismo existia
apenas em países como Estados Unidos, Grã-Bretanha e África do Sul. O típico
leitor francês, embora perturbado com a publicação, rejeitava a hipótese
onipresente do racismo, simplesmente dizendo que ele não existia (Gordon,
1952/2008, p. 14).
Entre
nós, o desmentido do racismo se configura no desprezo pelos efeitos nefastos da
escravidão. Lembremos que o ex-vice-presidente Hamilton Mourão anunciava aos
quatro ventos que “não existia racismo no Brasil”. O não reconhecimento das
dores do racismo ocorre quando se nega o lugar de subalternidade e de
silenciamento da população negra. O lugar daquele que não pode falar e que,
quando fala, não é escutado.
Assim,
“a forma de relação social e cultural construída entre brancos e negros parece
evidenciar a lógica do desmentido ferencziano: o modo dos negros verem e
significarem o mundo, o modo deles existirem, é desmentido pelos brancos que
impõem sua linguagem, o seu universo simbólico, caracterizando uma relação de
caráter traumático” (Farias, 2018, p. 114).
Na
história que abre esse texto, podemos observar a repetição de três desmentidos.
Primeiro, o do repórter que despreza o racismo ocorrido com Luighi e trata a
entrevista como outra qualquer. Depois, o do Cerro Portenho que, em nota,
sugeriu haver culpa das vítimas diante do racismo que sofreram, em função de
suposta falta de capacidade dos jogadores de resistir às provocações. As
mulheres que sofrem violência e todo tipo de abuso sabem bem o que significa
ser culpabilizadas pelos crimes dos homens. E, por fim, a metáfora
infeliz do presidente da Conmebol que, com toda a potência performativa do
cargo que ocupa, comparou os clubes brasileiros com uma macaca, personagem
coadjuvante de um herói remoto de nossa cultura. Nesse último caso, seja por
má-fé ou por ignorância – hipótese que abre a possibilidade de pensarmos em
formas inconscientes de racismo – o desdém com o qual o sofrimento foi tratado
não ameniza os efeitos deletérios do desmentido racial.
Todas
as palavras que não encontram destino, sejam as ditas ou as silenciadas, são
lanternas apontadas para um passado que segue, insistentemente, doendo no
presente.
Fonte:
Por Paulo Ferrareze Filho, no Le Monde

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