terça-feira, 16 de abril de 2024

Antonio Barsch Gimenez: Religião, revolução e Estado

O jurista soviético Petr Ivanovich Stucka (1974, p. 188), em sua análise sobre o direito, coloca em foco a relação entre as teorias do direito natural e o direito positivo, isto é, as leis criadas pela humanidade: “el dualismo entre derecho vigente y derecho ideal, entre derecho positivo […] y derecho natural […] es como un hilo rojo que atraviesa toda la historia del derecho […]. Solamente en los grandes trastornos, en el curso de revoluciones […], cuando prevalece una nueva clase, se advierte una conjunción o también, por un instante, la unificación de las dos esferas, pues sólo en nombre de los derechos generales de la sociedad puede una clase especial reivindicar para sí la dominación general”.

O direito natural é, por conseguinte, uma forma de justificar as revoluções frente à ordem estabelecida. Por isso, o direito natural foi uma ferramenta valiosíssima para as revoluções burguesas, em especial para a Revolução Francesa. O jusnaturalismo do contrato social de Rousseau e da defesa da propriedade são os elementos que legitimam a revolução, a qual, quando concluída, declamou a união das leis com o direito natural na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Após a vitória da burguesia, que ela comemorou como uma vitória do povo como um todo, o jusnaturalismo foi eliminado e substituído pelas teorias positivistas e “lógicas”, convertendo-se, assim, em uma forma de manutenção das suas conquistas; isto é, torna-se contrarrevolucionária a ideologia que antes havia postulado o direito de revolução (STUCKA, 1974, p. 190, 193-195, 201).

Não é surpresa, portanto, que o direito natural não seja mais sustentado como fundamento do Estado ou até mesmo seja rejeitado o seu fundamento metafísico como anti-científico. Este é exatamente o ponto de vista do maior expoente do positivismo jurídico, Hans Kelsen (1973, p. 99-102 e 108-109), que estabelece a conexão entre o direito natural e a metafísica com a monarquia absolutista e a ditadura.

Hegel (1984, p. 451-453 e 458-460) já ressaltava a conexão íntima entre Estado, religião e direito natural, principalmente na mente do povo, que considera a religião como fundação do Estado. Embora a religião seja uma forma anterior à razão (esta que o Estado encarna), ambas têm como objeto o saber absoluto, que na religião é Deus; além disso ambos se relacionam com a liberdade: a religião enquanto liberdade perante Deus no culto, e o Estado e o Direito enquanto concretização terrena da liberdade.

No entanto, as modernas teorias sobre a Constituição realizaram um descolamento entre religião e Estado com base na dualidade entre subjetividade interior (religião) e da objetividade pública (direito), algo que seria impossível de sustentar, pois: (i) o direito precisa ser aplicado e, assim, depende da convicção – isto é, a dimensão interior – de quem o aplica, da crença de que as leis são justas; e (ii) a dimensão interior sem um direito leva sempre à ruína, pois os sujeitos não teriam direitos que os protegessem.

É esse ponto que demonstra um equívoco da parte de Petr Ivanovich Stucka em identificar o direito natural apenas como ferramenta da burguesia, pois foi esse mesmo jusnaturalismo que motivou as revoltas do campesinato no Sacro Império Romano Germânico (SIRG), atual Alemanha. Embora fortemente motivada pela piora considerável na vida desse campesinato, que precisou carregar o peso de todo o aumento da necessidade de recursos causada pela centralização do Estado e do capital mercantil, as justificativas para a rebelião foram baseadas na religião (BLOCH, 1973, p. 44-45 e 51-52).

A primeira “revolução”, que deu origem à espoliação do campesinato, foi justificada por Lutero. Além de sua teologia permitir o rompimento com a Igreja Católica Romana e a apropriação pelos príncipes dos bens da Igreja, também determinava o Estado como uma necessidade para conter a natureza pecadora de toda a humanidade. Não há salvação nem boas-intenções, pois a humanidade é inerentemente má; o Estado pune o pecado, daí sua indispensabilidade. Qualquer um que queira se libertar de sua posição ou voltar-se contra a opressão não o faz com nenhuma boa intenção, pois a humanidade é pecadora e, portanto, precisa ser punida pelo príncipe (BLOCH, 1973, p.124-128).

Em contraposição, os camponeses que se levantaram contra os príncipes adotaram a teologia de Thomas Münzer, que se baseava na possibilidade de se atingir a libertação e a salvação por meio de um árduo caminho: o sofrimento do fiel, ocasionado pelos príncipes, e sua revolta contra eles; apenas assim o fiel poderia ouvir a voz de Deus e criar o Reino de Deus na terra. Em outras palavras, é atingir a utopia divina; esta, que, para Thomas Münzer e para os rebeldes, envolveria a propriedade comum da terra – isto é, a propriedade comum dos meios de produção –, conforme demandava o cristianismo primitivo (BLOCH, 1973, p. 93, 178-183, 194-195, 205).

Demonstra-se, portanto, que o direito natural e a religião podem ser utilizados – e quase sempre são – por movimentos revolucionários. Como ressalta Bloch (1973, p. 48): “A situação do respectivo desígnio econômico é já […] dependente de conjuntos de decisões mais altas e complexas, principalmente de sentido religioso, conforme Max Weber demonstrava […]. Assim representada, não basta uma pura reflexão econômica para, sozinha, explicar as condições e as causas da erupção de um acontecimento histórico com a violência da Guerra camponesa […]. O próprio Marx dá seu devido valor às exaltações místicas, pelo menos no começo de cada revolução”.

Diante disso, o que ocorreu no dia 08 de janeiro de 2023 (RICUPERO, 2024) não foi um acaso, e sim um desdobramento necessário da retórica utilizada pelo bolsonarismo. O elemento religioso, de uma guerra santa, está sempre presente nos discursos dos líderes desse movimento; durante as eleições de 2022, a ex-ministra Damares Alves já havia se pronunciado: “estamos diante dessa eleição não é de uma disputa política, mas de uma guerra espiritual” (SOUZA, 2022). Em especial, pode-se ver o tom de pregação do discurso utilizado por Michelle Bolsonaro durante o ato feito em prol do ex-presidente Jair Bolsonaro em 25 de fevereiro de 2024, no qual o Salmo 24 é utilizado como base teológica: “[…] por um bom tempo formos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. […] eu acredito em um Deus vivo. Um Deus todo poderoso que é capaz de restaurar e curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças. Não desistam do nosso país. Continue orando, continue clamando porque eu sei que o nosso Deus, do alto dos céus, irá nos conceder um socorro.” (Poder360).

Enquanto o fervor da fé motiva muitos a uma “revolução” pelo lado da extrema direita, a esquerda se prende à defesa das instituições, retratando toda e qualquer ação do governo como uma vitória. É exatamente esse o caso do recente projeto de lei que busca regular o trabalho por aplicativos, que é apresentado como tendo “por objetivo garantir direitos mínimos para motoristas de aplicativos” (BRASIL, 2024).

No entanto, já no art. 3º do projeto excetuam-se esses trabalhadores das proteções e direitos dados aos empregados pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), como permitir o trabalho de doze horas por dia, conforme o art. 3º, §2º, do projeto de lei, ao passo que os arts. 58 e 59 da CLT limitavam a jornada de trabalho a até oito horas por dia e mais duas horas extras. Não é surpresa, portanto, que a Uber (2024) tenha se posicionado de forma favorável ao projeto de lei. É um retrocesso brutal ao século XIX, onde a jornada de trabalho se estendia para além de dez horas, obrigando os trabalhadores a se levantarem contra essa exploração inviável em razão de todos os males, físicos e mentais, que causavam essas jornadas (MARX, 1996, p. 353, 391-405, 411-413).

Diante da derrubada do resultado de anos de luta dos trabalhadores, nada é feito. Chegou-se a um ponto em que um metafísico é mais útil do que qualquer um daqueles que diz falar em nome dos trabalhadores e representar seus interesses. Enquanto o bolsonarismo se anima espiritualmente para uma “guerra santa”, a esquerda vive letárgica, comemorando resultados favoráveis às elites como se fossem vitórias populares. A mudança fica associada à transformação interna, por meio das instituições existentes. Cria-se uma aversão à luta, à ruptura, pois a democracia supostamente seria uma ferramenta pacífica para superar a luta de classes (KELSEN, 2000, p. 132-133; STUCKA, 1974, p. 208-209).

A esquerda brasileira está morta, como disse Vladimir Safatle (2024). Ela se prendeu a um modelo que não se sustenta mais por suas contradições internas; as medidas tomadas durante os anos 2000 não têm mais aplicabilidade hoje, pois a concentração de renda é tão violenta que o modelo de expansão do consumo às classes baixas não é mais possível, não ao menos sem ações mais incisivas, como greves. No entanto, “é evidente que alguns tentam nos impor a ideia de uma espécie de escolha forçada: ou capitalismo ou servidão; ou a defesa da democracia liberal como temos hoje ou o autoritarismo” (ibid.). Enquanto isso, a extrema direita se fortalece…

 

Ø  O minotauro do fascismo.  Por Gustavo Felipe Olesko 

 

Há atualmente um grande e até certo ponto proveitoso debate sobre a morte da esquerda no Brasil e no mundo. Constrói-se sob os escombros da caquética política de conciliação de classes debates sobre os a crise da esquerda, sobre se o Partido dos Trabalhadores é ou não é de esquerda, quase uma disputa para ver quem está mais a gauche. Contudo, aqui se faz uma provocação, inspirada no recém encantado geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves: “A esquerda está em crise. Viva a esquerda!”.

Portanto, partindo de dois pontos, busca-se aqui destacar as possibilidades de reestruturação do pensamento crítico brasileiro, tendo por base algumas análises pretéritas, as quais já marcavam a crise de esquerda. Robert Kurz, um dos marxistas mais ácidos, já destacava há mais de três décadas que

Com gestos de relativização, de masoquista humildade, que se revoga qualquer conceito, apenas pronunciado. A preocupação contínua com as “diferenças”, exacerbada a ponte de se converter em vício, parece dissolver os objetos históricos e sociais, tornando-os irreconhecíveis (KURZ, 1997, p. 16).

Justamente a relativização pós-moderna, levada como vício, leva a esquerda e a teoria crítica para uma crise. Durante os anos de governos do PT, criou-se ao largo do pensamento acadêmico – arrisco dizer também o político – a noção de que havia no país um predomínio das ideias ditas “progressistas”. Como o rei Minos, soberbo e arrogante, esse pensamento acabou sendo punido com a criação de um minotauro, no caso o protofascismo brasiliano, que tem sua essência um culto a figuras chaves, um bonapartismo torpe e esquálido de substância. Isso se comprovado quando do choque de parte da esquerda com a vitória dessa extrema direita nas eleições de 2018. Oras, o monstro já havia quebrado os muros do labirinto na qual fora enfurnado e havia tomado de assalto os municípios já em 2016.

Foi justamente esse vício na diferença e o desdém para com a unidade, que produziu uma derrota acachapante e que permite que até os dias, dentre outros fatores já muito trabalhados em diversos textos aqui no site A Terra é Redonda ou em outros meios, sejam acadêmicos, políticos, sindicais, etc. façam com que o minotauro do fascismo ainda esteja à solta. A maior força política do país no atual momento, e não é somente Vladimir Safatle que destaca, Paulo Arantes já o havia feito um ano antes em diversas mídias, é o da extrema direita.

Sua unicidade monstruosa mostra como sim, é possível, na diferença, criar uma unidade. Afinal de contas, a extrema direita nacional é formada por uma gama enorme de grupos: parte dos neopentecostais, latifundiários rentistas, empresários rurais grileiros de terra, militares, forças de segurança, indignados com a corrupção, viúvas da ditadura, neoyuppies daytraders fãs de bilionários, boleiros etc. A lista é infindável. Agora, na esquerda as fraturas são gigantescas.

A questão de classe, retornando a Robert Kurz, foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos, atrasados ou simplesmente ignorados. Não que as outras questões devam ser postas de lado, muito pelo contrário. Ronaldo Tadeu de Souza nos auxilia enormemente ao nos citar que: “[…] a esquerda brasileira morre não por que se apropria grandemente de tais teorias sociais para compor o leque de entendimento e ação na realidade; quanto a isso estamos na vanguarda do que sugerem Perry Anderson e Göran Therborn. Mas o absoluto desprezo com que a esquerda brasileira, ressalvando pouquíssimas vozes, tem com relação ao marxismo e as flechas da aljava da teoria socialista clássica é escandaloso. Uma esquerda que ainda estivesse lendo, apenas O que fazer?, de Lênin, escrito em 1902, e não soubesse o que está escrevendo Butler e Honneth, Laval e Rahel Jaeggi seria um problema grave. Contudo, uma esquerda que somente se debruça sobre a teoria queer e estudos sobre desigualdade, psicanálise e pós-colonialidade, esfera pública e teoria da justiça e sequer vislumbra averiguar, por exemplo, o que significa o conceito de imperialismo de Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e Hilferding […],não deixa de ser sintomático de sua crise profunda (é constrangedor, nesse caso, o uso insistente da noção de correlação de forças para justificar as condutas políticas de Lula, Haddad e do PT).

Ou seja, o decoro atual da esquerda é estar na busca constante do mais novo e fragmentado pensamento crítico, porém, colocando na sombra justamente o pensar crítico clássico, do qual muitas vezes nasceram essas outras teorias sociais. Trazemos como exemplo a própria Teoria decolonial, por muitos apregoada como antimarxista (sic), sendo que um de seus principais expoentes (para alguns até mesmo formulador) foi um dos maiores marxistas que o América Latina produziu, no caso Enrique Dussel.

Agora, por que Carlos Walter nos é importante? Sua análise final sobre a crise da Geografia era a de que é precisamente a crise que traz a possibilidade de superação da mesma, uma superação onde se construa mais unicidade, menos repartições, menos fraturas dentro da esquerda, não somente a acadêmica, mas principalmente a da materialidade, ou seja, dos movimentos sociais e das classes em luta.

Uma teoria crítica que saiba resgatar o camponês, em vez de segmentar e judicializar a luta das diversas frações do campesinato, que saiba unificar a luta dos trabalhadores urbanos em seus mais diversos extratos, que consiga alcançar aquela e aquela trabalhadora aos trapos, os lumpen, do magnetismo da extrema direita. Por uma esquerda que busque em Marx, em Tristan, em Kropotkin, em Reclus, em Luxemburgo as armas da crítica para atacar e revolucionar, e não somente resistir “pela lei”.

Que a esquerda brasileira ache seu cipó de aroeira, para dar em quem mandou bater, que encontre nesses mares hoje cada vez mais vermelhos de sangue marinheiras e marinheiros que batam no peito e gritem: eu também sei governar.

 

Fonte:  A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário: