Antonio Barsch
Gimenez: Religião, revolução e Estado
O jurista soviético
Petr Ivanovich Stucka (1974, p. 188), em sua análise sobre o direito, coloca em
foco a relação entre as teorias do direito natural e o direito positivo, isto
é, as leis criadas pela humanidade: “el dualismo entre derecho vigente y derecho
ideal, entre derecho positivo […] y derecho natural […] es como un hilo rojo
que atraviesa toda la historia del derecho […]. Solamente en los grandes trastornos, en el
curso de revoluciones […], cuando prevalece una nueva clase, se advierte una
conjunción o también, por un instante, la unificación de las dos esferas, pues
sólo en nombre de los derechos generales de la sociedad puede una clase
especial reivindicar para sí la dominación general”.
O direito natural é,
por conseguinte, uma forma de justificar as revoluções frente à ordem
estabelecida. Por isso, o direito natural foi uma ferramenta valiosíssima para
as revoluções burguesas, em especial para a Revolução Francesa. O
jusnaturalismo do contrato social de Rousseau e da defesa da propriedade são os
elementos que legitimam a revolução, a qual, quando concluída, declamou a união
das leis com o direito natural na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão.
Após a vitória da
burguesia, que ela comemorou como uma vitória do povo como um todo, o
jusnaturalismo foi eliminado e substituído pelas teorias positivistas e
“lógicas”, convertendo-se, assim, em uma forma de manutenção das suas
conquistas; isto é, torna-se contrarrevolucionária a ideologia que antes havia
postulado o direito de revolução (STUCKA, 1974, p. 190, 193-195, 201).
Não é surpresa,
portanto, que o direito natural não seja mais sustentado como fundamento do
Estado ou até mesmo seja rejeitado o seu fundamento metafísico como
anti-científico. Este é exatamente o ponto de vista do maior expoente do
positivismo jurídico, Hans Kelsen (1973, p. 99-102 e 108-109), que estabelece a
conexão entre o direito natural e a metafísica com a monarquia absolutista e a
ditadura.
Hegel (1984, p.
451-453 e 458-460) já ressaltava a conexão íntima entre Estado, religião e
direito natural, principalmente na mente do povo, que considera a religião como
fundação do Estado. Embora a religião seja uma forma anterior à razão (esta que
o Estado encarna), ambas têm como objeto o saber absoluto, que na religião é
Deus; além disso ambos se relacionam com a liberdade: a religião enquanto
liberdade perante Deus no culto, e o Estado e o Direito enquanto concretização
terrena da liberdade.
No entanto, as
modernas teorias sobre a Constituição realizaram um descolamento entre religião
e Estado com base na dualidade entre subjetividade interior (religião) e da
objetividade pública (direito), algo que seria impossível de sustentar, pois:
(i) o direito precisa ser aplicado e, assim, depende da convicção – isto é, a
dimensão interior – de quem o aplica, da crença de que as leis são justas; e
(ii) a dimensão interior sem um direito leva sempre à ruína, pois os sujeitos
não teriam direitos que os protegessem.
É esse ponto que
demonstra um equívoco da parte de Petr Ivanovich Stucka em identificar o
direito natural apenas como ferramenta da burguesia, pois foi esse mesmo
jusnaturalismo que motivou as revoltas do campesinato no Sacro Império Romano
Germânico (SIRG), atual Alemanha. Embora fortemente motivada pela piora
considerável na vida desse campesinato, que precisou carregar o peso de todo o
aumento da necessidade de recursos causada pela centralização do Estado e do
capital mercantil, as justificativas para a rebelião foram baseadas na religião
(BLOCH, 1973, p. 44-45 e 51-52).
A primeira
“revolução”, que deu origem à espoliação do campesinato, foi justificada por
Lutero. Além de sua teologia permitir o rompimento com a Igreja Católica Romana
e a apropriação pelos príncipes dos bens da Igreja, também determinava o Estado
como uma necessidade para conter a natureza pecadora de toda a humanidade. Não
há salvação nem boas-intenções, pois a humanidade é inerentemente má; o Estado
pune o pecado, daí sua indispensabilidade. Qualquer um que queira se libertar
de sua posição ou voltar-se contra a opressão não o faz com nenhuma boa
intenção, pois a humanidade é pecadora e, portanto, precisa ser punida pelo
príncipe (BLOCH, 1973, p.124-128).
Em contraposição, os
camponeses que se levantaram contra os príncipes adotaram a teologia de Thomas
Münzer, que se baseava na possibilidade de se atingir a libertação e a salvação
por meio de um árduo caminho: o sofrimento do fiel, ocasionado pelos príncipes,
e sua revolta contra eles; apenas assim o fiel poderia ouvir a voz de Deus e
criar o Reino de Deus na terra. Em outras palavras, é atingir a utopia divina;
esta, que, para Thomas Münzer e para os rebeldes, envolveria a propriedade
comum da terra – isto é, a propriedade comum dos meios de produção –, conforme
demandava o cristianismo primitivo (BLOCH, 1973, p. 93, 178-183, 194-195, 205).
Demonstra-se,
portanto, que o direito natural e a religião podem ser utilizados – e quase
sempre são – por movimentos revolucionários. Como ressalta Bloch (1973, p. 48):
“A situação do respectivo desígnio econômico é já […] dependente de conjuntos
de decisões mais altas e complexas, principalmente de sentido religioso,
conforme Max Weber demonstrava […]. Assim representada, não basta uma pura
reflexão econômica para, sozinha, explicar as condições e as causas da erupção
de um acontecimento histórico com a violência da Guerra camponesa […]. O
próprio Marx dá seu devido valor às exaltações místicas, pelo menos no começo
de cada revolução”.
Diante disso, o que
ocorreu no dia 08 de janeiro de 2023 (RICUPERO, 2024) não foi um acaso, e sim
um desdobramento necessário da retórica utilizada pelo bolsonarismo. O elemento
religioso, de uma guerra santa, está sempre presente nos discursos dos líderes
desse movimento; durante as eleições de 2022, a ex-ministra Damares Alves já
havia se pronunciado: “estamos diante dessa eleição não é de uma disputa
política, mas de uma guerra espiritual” (SOUZA, 2022). Em especial, pode-se ver
o tom de pregação do discurso utilizado por Michelle Bolsonaro durante o ato
feito em prol do ex-presidente Jair Bolsonaro em 25 de fevereiro de 2024, no
qual o Salmo 24 é utilizado como base teológica: “[…] por um bom tempo formos
negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião.
E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação.
[…] eu acredito em um Deus vivo. Um Deus todo poderoso que é capaz de restaurar
e curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças. Não
desistam do nosso país. Continue orando, continue clamando porque eu sei que o
nosso Deus, do alto dos céus, irá nos conceder um socorro.” (Poder360).
Enquanto o fervor da
fé motiva muitos a uma “revolução” pelo lado da extrema direita, a esquerda se
prende à defesa das instituições, retratando toda e qualquer ação do governo
como uma vitória. É exatamente esse o caso do recente projeto de lei que busca
regular o trabalho por aplicativos, que é apresentado como tendo “por objetivo
garantir direitos mínimos para motoristas de aplicativos” (BRASIL, 2024).
No entanto, já no art.
3º do projeto excetuam-se esses trabalhadores das proteções e direitos dados
aos empregados pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), como permitir o
trabalho de doze horas por dia, conforme o art. 3º, §2º, do projeto de lei, ao
passo que os arts. 58 e 59 da CLT limitavam a jornada de trabalho a até oito
horas por dia e mais duas horas extras. Não é surpresa, portanto, que a Uber
(2024) tenha se posicionado de forma favorável ao projeto de lei. É um
retrocesso brutal ao século XIX, onde a jornada de trabalho se estendia para
além de dez horas, obrigando os trabalhadores a se levantarem contra essa
exploração inviável em razão de todos os males, físicos e mentais, que causavam
essas jornadas (MARX, 1996, p. 353, 391-405, 411-413).
Diante da derrubada do
resultado de anos de luta dos trabalhadores, nada é feito. Chegou-se a um ponto
em que um metafísico é mais útil do que qualquer um daqueles que diz falar em
nome dos trabalhadores e representar seus interesses. Enquanto o bolsonarismo
se anima espiritualmente para uma “guerra santa”, a esquerda vive letárgica,
comemorando resultados favoráveis às elites como se fossem vitórias populares.
A mudança fica associada à transformação interna, por meio das instituições
existentes. Cria-se uma aversão à luta, à ruptura, pois a democracia
supostamente seria uma ferramenta pacífica para superar a luta de classes
(KELSEN, 2000, p. 132-133; STUCKA, 1974, p. 208-209).
A esquerda brasileira
está morta, como disse Vladimir Safatle (2024). Ela se prendeu a um modelo que
não se sustenta mais por suas contradições internas; as medidas tomadas durante
os anos 2000 não têm mais aplicabilidade hoje, pois a concentração de renda é
tão violenta que o modelo de expansão do consumo às classes baixas não é mais
possível, não ao menos sem ações mais incisivas, como greves. No entanto, “é
evidente que alguns tentam nos impor a ideia de uma espécie de escolha forçada:
ou capitalismo ou servidão; ou a defesa da democracia liberal como temos hoje
ou o autoritarismo” (ibid.). Enquanto isso, a extrema direita se fortalece…
Ø O minotauro do fascismo.
Por Gustavo Felipe Olesko
Há atualmente um
grande e até certo ponto proveitoso debate sobre a morte da esquerda no Brasil
e no mundo. Constrói-se sob os escombros da caquética política de conciliação
de classes debates sobre os a crise da esquerda, sobre se o Partido dos
Trabalhadores é ou não é de esquerda, quase uma disputa para ver quem está
mais a gauche. Contudo, aqui se faz uma provocação, inspirada no
recém encantado geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves: “A esquerda está em
crise. Viva a esquerda!”.
Portanto, partindo de
dois pontos, busca-se aqui destacar as possibilidades de reestruturação do
pensamento crítico brasileiro, tendo por base algumas análises pretéritas, as
quais já marcavam a crise de esquerda. Robert Kurz, um dos marxistas mais ácidos,
já destacava há mais de três décadas que
Com gestos de
relativização, de masoquista humildade, que se revoga qualquer conceito, apenas
pronunciado. A preocupação contínua com as “diferenças”, exacerbada a ponte de
se converter em vício, parece dissolver os objetos históricos e sociais,
tornando-os irreconhecíveis (KURZ, 1997, p. 16).
Justamente a
relativização pós-moderna, levada como vício, leva a esquerda e a teoria
crítica para uma crise. Durante os anos de governos do PT, criou-se ao largo do
pensamento acadêmico – arrisco dizer também o político – a noção de que havia
no país um predomínio das ideias ditas “progressistas”. Como o rei Minos,
soberbo e arrogante, esse pensamento acabou sendo punido com a criação de um
minotauro, no caso o protofascismo brasiliano, que tem sua essência um culto a
figuras chaves, um bonapartismo torpe e esquálido de substância. Isso se
comprovado quando do choque de parte da esquerda com a vitória dessa extrema
direita nas eleições de 2018. Oras, o monstro já havia quebrado os muros do
labirinto na qual fora enfurnado e havia tomado de assalto os municípios já em
2016.
Foi justamente esse
vício na diferença e o desdém para com a unidade, que produziu uma derrota
acachapante e que permite que até os dias, dentre outros fatores já muito
trabalhados em diversos textos aqui no site A Terra é Redonda ou em outros
meios, sejam acadêmicos, políticos, sindicais, etc. façam com que o minotauro
do fascismo ainda esteja à solta. A maior força política do país no atual
momento, e não é somente Vladimir Safatle que destaca, Paulo Arantes já o havia
feito um ano antes em diversas mídias, é o da extrema direita.
Sua unicidade
monstruosa mostra como sim, é possível, na diferença, criar uma unidade. Afinal
de contas, a extrema direita nacional é formada por uma gama enorme de grupos:
parte dos neopentecostais, latifundiários rentistas, empresários rurais
grileiros de terra, militares, forças de segurança, indignados com a corrupção,
viúvas da ditadura, neoyuppies daytraders fãs de
bilionários, boleiros etc. A lista é infindável. Agora, na esquerda as fraturas
são gigantescas.
A questão de classe,
retornando a Robert Kurz, foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam
trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos,
atrasados ou simplesmente ignorados. Não que as outras questões devam ser
postas de lado, muito pelo contrário. Ronaldo Tadeu de Souza nos auxilia
enormemente ao nos citar que: “[…] a esquerda brasileira morre não por que se
apropria grandemente de tais teorias sociais para compor o leque de
entendimento e ação na realidade; quanto a isso estamos na vanguarda do que
sugerem Perry Anderson e Göran Therborn. Mas o absoluto desprezo com que a
esquerda brasileira, ressalvando pouquíssimas vozes, tem com relação ao
marxismo e as flechas da aljava da teoria socialista clássica é escandaloso.
Uma esquerda que ainda estivesse lendo, apenas O que fazer?, de
Lênin, escrito em 1902, e não soubesse o que está escrevendo Butler e Honneth,
Laval e Rahel Jaeggi seria um problema grave. Contudo, uma esquerda que somente
se debruça sobre a teoria queer e estudos sobre desigualdade,
psicanálise e pós-colonialidade, esfera pública e teoria da justiça e sequer
vislumbra averiguar, por exemplo, o que significa o conceito de imperialismo de
Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e Hilferding […],não deixa de ser
sintomático de sua crise profunda (é constrangedor, nesse caso, o uso
insistente da noção de correlação de forças para justificar as condutas
políticas de Lula, Haddad e do PT).
Ou seja, o decoro
atual da esquerda é estar na busca constante do mais novo e fragmentado
pensamento crítico, porém, colocando na sombra justamente o pensar crítico
clássico, do qual muitas vezes nasceram essas outras teorias sociais. Trazemos
como exemplo a própria Teoria decolonial, por muitos apregoada como
antimarxista (sic), sendo que um de seus principais expoentes (para alguns até
mesmo formulador) foi um dos maiores marxistas que o América Latina produziu,
no caso Enrique Dussel.
Agora, por que Carlos
Walter nos é importante? Sua análise final sobre a crise da Geografia era a de
que é precisamente a crise que traz a possibilidade de superação da mesma, uma
superação onde se construa mais unicidade, menos repartições, menos fraturas
dentro da esquerda, não somente a acadêmica, mas principalmente a da
materialidade, ou seja, dos movimentos sociais e das classes em luta.
Uma teoria crítica que
saiba resgatar o camponês, em vez de segmentar e judicializar a luta das
diversas frações do campesinato, que saiba unificar a luta dos trabalhadores
urbanos em seus mais diversos extratos, que consiga alcançar aquela e aquela
trabalhadora aos trapos, os lumpen, do magnetismo da extrema
direita. Por uma esquerda que busque em Marx, em Tristan, em Kropotkin, em
Reclus, em Luxemburgo as armas da crítica para atacar e revolucionar, e não
somente resistir “pela lei”.
Que a esquerda
brasileira ache seu cipó de aroeira, para dar em quem mandou bater, que
encontre nesses mares hoje cada vez mais vermelhos de sangue marinheiras e
marinheiros que batam no peito e gritem: eu também sei governar.
Fonte: A Terra é Redonda
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