Como viagem de Darwin ao Brasil influenciou
a Teoria da Evolução
"A mente é um
caos de deleites."
Essa foi a frase
que Charles Darwin (1809-1882)
usou para expressar o que sentiu ao se aventurar pela primeira vez numa floresta tropical no Brasil.
"Quando os olhos
tentam seguir o voo de uma vistosa borboleta, são atraídos por alguma árvore ou fruta exótica. Se observam
um inseto, esquecem-se dele ao contemplar a flor peculiar sobre
a qual rasteja", detalhou ele em seu diário.
O naturalista inglês,
célebre pela obra A Origem das Espécies, em que descreveu em
detalhes a Teoria da Evolução, passou
pelo Brasil por duas ocasiões, em 1832 e 1836.
De acordo com essa
teoria, há uma luta pela sobrevivência na natureza, mas aquele que sobrevive
não é necessariamente o mais forte e, sim, o que melhor se adapta às condições
do ambiente em que vive.
Durante esses anos,
ele integrou a tripulação do navio HMS Beagle, que fazia levantamentos
costeiros e cartográficos de certas regiões da América do Sul.
A expedição começou em
dezembro de 1831 em Plymouth, no Reino Unido, margeou ilhas europeias e
africanas, chegou ao Brasil, "desceu" para Uruguai e Argentina,
cruzou o Estreito de Magalhães, passou
por Chile e Peru, aportou em Galápagos, foi para a Oceania e África do Sul, e
precisou passar de novo pelo nordeste brasileiro antes de voltar para casa em
1836.
Durante todo esse
tempo, Darwin fez observações e coletou muitos animais, plantas e minerais,
além de escrever diversas cartas para colegas e familiares. Não há dúvidas de
que a expedição de quatro anos e meio foi fundamental para que ele tivesse
muitas ideias e posteriormente pudesse realizar os experimentos que culminaram
na Teoria da Evolução.
Mas e o Brasil? Como a
passagem por locais como Fernando de Noronha, Salvador, Recife e Rio de Janeiro
inspiraram e influenciaram o trabalho do cientista inglês?
Para o jornalista
Pedro Alencastro, responsável pela tradução e organização do livro Darwin
no Brasil, lançado recentemente pela Editora Duas Aspas, não há dúvidas de
que a passagem do naturalista por terras brasileiras foi decisiva para o
trabalho que revolucionaria a Biologia.
“O Brasil foi muito
importante para Darwin, porque ele tinha um grande desejo de conhecer florestas
tropicais e desde cedo demonstrava um interesse muito grande pela América do
Sul”, afirma ele.
“Ao chegar em locais
como Fernando de Noronha, Salvador e Rio de Janeiro, ele teve a real percepção
sobre o que é a floresta tropical e de como podem existir tantas espécies
diferentes”, complementa o tradutor.
A bióloga Shirley
Noely Hauff destaca que, até então, o jovem cientista inglês estava acostumado
com os ambientes do Reino Unido, cuja biodiversidade é bem mais limitada quando
comparada a do Brasil.
A especialista
brasileira fez parte de um projeto capitaneado pela Universidade de Brasília
(UnB) e outras instituições que, entre 2015 e 2016, refez parte da viagem de
Darwin pela América Latina.
O biólogo Nelio Bizzo,
professor titular sênior da Universidade de São Paulo (USP), concorda com a
avaliação dos colegas.
"O que está
registrado no diário de Darwin é o espanto que ele teve com a biodiversidade
brasileira, particularmente com a biodiversidade vegetal", detalha o
especialista, que trabalhou nas duas mais recentes traduções d'A Origem das
Espécies para o português, lançadas pelas editoras Martin Claret e
Edipro.
"Darwin tinha o
naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769–1859) como um grande
ídolo", descreve Bizzo.
À época, Humboldt fora
proibido de entrar no Brasil porque suspeitava-se que ele era espião, mas as
expedições do alemão pela América Latina espanhola — e os relatos que
compartilhou em livros, artigos e cartas — fascinaram e influenciaram os
amantes de História Natural na Europa.
"Darwin já tinha
uma noção do que era uma floresta tropical. Mas quando ele viu de fato aquela
diversidade toda, ficou muito emocionado", diz Bizzo.
·
Por onde Darwin passou
e o que viu
O primeiro contato do
naturalista com o território brasileiro aconteceu em fevereiro de 1832, quando
o HMS Beagle alcançou o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, um pequeno
conjunto de ilhéus rochosos no meio do Atlântico.
Dias depois, a viagem
seguiu em direção a Fernando de Noronha e logo se aproximou de Salvador, onde
permaneceu por várias semanas.
No início de abril de
1832, a expedição aportou no Rio de Janeiro, a então capital brasileira.
Dali, o navio seguiu
em direção a Montevidéu, no Uruguai.
Como explicado
anteriormente, o Beagle precisou retornar ao Brasil em 1836. A princípio, a
ideia dos viajantes era margear a costa da África e retornar diretamente à
Europa.
Mas houve a
necessidade de fazer alguns reparos, o que exigiu uma parada em Salvador e
Recife durante algumas semanas de agosto daquele ano — Darwin até escreveu
cartas em que desabafou estar com saudades de casa.
Como a embarcação
ficava muito tempo parada em cada local, o pesquisador tinha a oportunidade de
fazer caminhadas e expedições em terra firme. Muitas vezes, ele passava dias ou
até semanas em viagens exploratórias por terra.
Ele ficou em Salvador,
por exemplo, entre 29 de fevereiro e 17 de março de 1832. No Rio de Janeiro,
mais uma estadia prolongada, de dois meses: Darwin esteve na então capital
brasileira entre 4 de abril e 5 de junho daquele mesmo ano.
Porém, mesmo nos
locais em que as visitas eram mais ligeiras, o cientista dava um jeito de fazer
observações e pesquisas. Foi o caso do Arquipélago de São Pedro e São Paulo,
onde Darwin fez reflexões sobre geologia.
"A constituição
mineralógica do terreno não é simples. Em algumas partes a rocha é de quartzo,
noutras é de natureza feldspática, com finos veios de serpentina",
escreveu no diário.
Ele também notou as
aves, algas e peixes que habitam os arredores dos rochedos — e reparou na
ausência de espécies de plantas ali.
"De certa
maneira, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo foi o local em que Darwin
começou a pensar na questão do isolamento geográfico das ilhas e das espécies
que se desenvolvem nesses locais. Isso foi algo que ele observou com mais
intensidade posteriormente em Galápagos", pontua Alencastro.
Em Fernando de
Noronha, as análises geológicas prosseguiram. Depois, em Salvador, o
naturalista inglês fez a tão aguardada visita à floresta tropical.
Em 29 de fevereiro,
ele anotou: "O dia transcorreu deliciosamente. Mas esse talvez seja um
termo pobre para expressar as emoções de um naturalista que, pela primeira vez,
aventurou-se sozinho em uma floresta brasileira. A elegância da relva, o inusitado
das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde brilhante das folhagens e,
acima de tudo, a exuberância do ambiente me encheram de admiração."
"Uma mistura
paradoxal de som e silêncio se espalha nas profundezas da mata", notou.
Bizzo lembra que
Darwin teve uma formação conservadora. "Ele era um cientista que havia
estudado Teologia Natural, que reforçava a perfeição do mundo e da natureza.
Essa perfeição é concebível num ambiente com poucos elementos. Mas como é
possível conceber tal perfeição num contexto da floresta tropical, em que
milhares de espécies se concentram num mesmo lugar? Como elas se harmonizam
perfeitamente?", questiona o biólogo.
"Essa abundância
exige uma contabilidade muito mais complexa para ser compreendida",
constata ele.
No Rio de Janeiro,
Darwin teve a oportunidade de ir até a cidade de Cabo Frio, onde conheceu a
propriedade de um inglês.
Uma observação
importante que o naturalista fez em terras fluminenses foi a de um macaco dos
trópicos, o primeiro que ele viu em carne e osso.
"O animal estava
morto, mas continuava enrolado pelo rabo a um galho", descreve Alencastro.
"Essa cena causou
uma forte impressão em Darwin, e ele depois escreveu sobre como as caudas
evoluíram nos animais terrestres e qual a função dessa estrutura em diferentes
espécies", complementa o tradutor.
Ao deixar o Brasil,
Darwin seguiu para Montevidéu, no Uruguai. Nas paradas seguintes, ele reuniu
objetos e artefatos que poderia facilmente encontrar também na Região Sul do
Brasil, nas áreas dos Pampas.
"Um exemplo são
os fósseis, principalmente aqueles coletados na Patagônia. Eles foram muito
importantes para o desenvolvimento da Teoria da Evolução", diz Alencastro.
"Nas suas obras,
Darwin fez comparações e citou diversas vezes as descobertas de fósseis de
mamíferos feitas pelo paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880)
na região de Lagoa Santa, Minas Gerais."
·
Amou o Brasil, não
curtiu os brasileiros
A leitura dos diários
de Darwin revela que, em contraste ao deslumbre diante da floresta tropical,
ele ficou bastante incomodado com o que viu da sociedade brasileira da época.
Isso se deve
principalmente ao choque que o naturalista teve diante de um regime
escravocrata — o Brasil só aboliu a servidão completamente mais de cinco
décadas depois.
Num determinado trecho
do diário, ele cita "as atrocidades que só poderiam acontecer num país
escravagista". Em outro, confessa que deseja nunca mais pisar num país
escravocrata como o Brasil.
"Ele achou um
absurdo a forma como as pessoas tratavam os outros", lembra Hauff.
Darwin também reclamou
dos modos dos brasileiros, que ele considerou excessivamente brutos e pouco
corteses.
Bizzo lembra que,
quando Darwin fez a expedição, o Brasil havia se tornado independente há uma
década — e o Reino Unido só reconheceu essa condição de soberania alguns anos
depois.
"Para que isso
acontecesse, D. Pedro I precisou assinar um tratado com o Reino Unido que foi
absolutamente humilhante, com a imposição de tarifas alfandegárias enormes
sobre bens brasileiros e praticamente nenhum tributo sobre os produtos
industrializados que vinham da Inglaterra", contextualiza ele.
À época, o Reino Unido
também impôs a necessidade de acabar com escravidão no Brasil e passou a
monitorar o Atlântico para coibir o comércio de pessoas escravizadas vindas da
África.
Todo esse contexto fez
com que os britânicos não fossem bem quistos, principalmente nas grandes
cidades brasileiras. "Quando Darwin chegou ao país, ele não foi bem
recepcionado, ao contrário do que aconteceria hoje com um turista inglês. Ele
estava ali como representante de uma potência mundial que havia imposto
condições que incomodavam", diz Bizzo.
O biólogo também
destaca que Darwin vinha de uma família com posições progressistas.
"Susan, uma das
irmãs de Darwin, não era apenas militante contra a escravidão, mas foi também
uma das primeiras defensoras dos direitos dos animais e trabalhou para abolir o
uso de algumas armadilhas de caça", exemplifica o pesquisador.
·
O bom filho à casa
torna
Sustos, horrores e
problemas de relacionamento com brasileiros à parte, o naturalista retornou à
Inglaterra depois de 4 anos e meio de viagem, em 1836.
Mas ele só
publicaria A Origem das Espécies, livro que revolucionaria o mundo,
23 anos depois, em 1859.
Bizzo explica que
Darwin saiu da Inglaterra sem ter desenvolvido a Teoria da Evolução — e
retornou ao seu país sem ser um evolucionista.
"Não é verdade
que ele elaborou a Teoria da Evolução durante a viagem no HMS Beagle. O que ele
fez ao longo desse tempo foi coletar muito material e conhecer boa parte do
mundo de um jeito que poucas pessoas conheciam naquela época", esclarece o
professor.
Os entrevistados pela
BBC News Brasil descreveram Darwin como um pesquisador meticuloso, quase
obsessivo, que fez os mais diversos experimentos antes de tornar pública a sua
teoria.
"Darwin era um
pesquisador metódico e observador", caracteriza Hauff.
Um desses estudos, por
exemplo, tentava desvendar quanto tempo as ovas de moluscos sobrevivem nas
lamas grudadas nas patas de aves migratórias.
"Numa de suas
experiências mais inventivas, Darwin colocou dois pés de pato, cortados na
altura do joelho, dentro de um aquário cheio de caramujos de água doce. A ideia
era simular uma ave dormindo com os pés enfiados numa lagoa, hábito comum de
muitas espécies. Passado um tempo, ele retirou os pés do aquário, sacudiu os
dois para imitar o voo de uma ave e pediu aos filhos, que tinham uma visão
muito melhor, para contar quantos filhotes de caramujo encontrariam
nelas", descreve o livro Darwin no Brasil.
O naturalista também
tornou-se um grande especialista em cracas, organismos marinhos que se instalam
em rochas — alguns dos trabalhos que ele publicou sobre esses seres continuam
atuais até hoje.
"Ele estudou cracas por cerca de oito anos, e mesmo
atualmente é bem difícil trabalhar com essa espécie", estima Hauff.
"Darwin fez tudo
isso porque não queria dar brecha nenhuma, pois tinha muito receio de como as
ideias seriam recebidas e questionadas com a religiosidade e a moral da
época", avalia Alencastro.
"Por isso, ele
sempre procurou se cercar do máximo de evidências possíveis, que iam desde as
experiências caseiras até correspondências que trocou com especialistas do
mundo inteiro", conclui ele.
Fonte: BBC News Brasil
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