O direito à cidade e à linha do horizonte
“Aí eu fui entender o
papel que a arte tem para acordar a memória: é uma forma da gente resistir, é o
nosso jeito de cada dia. Como eu sou Guarani, acordar a memória para a gente é
sempre acordar pela memória – e a gente entende aquela memória como patrimônio,
que são os nossos saberes, nossa forma de não perder as coisas que nos fazem”
(Sandra Benites).
Laerte profetiza um
futuro próximo para a cidade de São Paulo, no qual prédios cada vez mais altos
esconderão as vistas.
Diferentes
especialistas vêm denunciando que o Plano Diretor não está passando por uma
revisão “para o povo e com o povo”. Vejamos este trecho: “2. Quem impõe
mudanças é a indústria da construção civil de acordo com seus interesses, no
caso construir prédios cada vez mais altos. 3. Não interessa o sepultamento de
monumentos históricos, da memória histórica e arquitetônica da cidade, o
desaparecimento de paisagens. 4. As consequências negativas para a
infraestrutura da cidade – transportes, trânsito, abastecimento de água, coleta
de esgoto, falta de moradia para a população de baixa renda, impactos
ambientais. 6. Modificação drástica no clima da cidade, em consequência, por
exemplo, da diminuição de áreas verdes, e da circulação dos ventos pela
cidade..”.
Seguindo a deixa
aberta pela cartunista Laerte, ainda dentro do campo das artes, trago
contribuições de poetas e artistas para abordar questões levantadas no
manifesto acima. Começo pelo “[…] sepultamento de monumentos históricos, da
memória histórica e arquitetônica da cidade, o desaparecimento de paisagens”.
Vejamos como nos auxilia o texto do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969)
sobre a paisagem que via de sua casa no alto de Perdizes (zona oeste de São
Paulo).
– Que ideia a sua, ir
morar naquele fim de mundo!
Era o que me diziam os
amigos quando, há doze anos, construí a minha casa nesta colina, a oeste do
vale do Pacaembu.
Fim de mundo?
–Podia mesmo parecer
isso. Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente (a
minha foi a quarta) separadas por terrenos sem muro nem cerca e eriçados de
mato hirsuto e anônimo – era apenas uma estrada rústica. A nota agreste: –
ponto alto e deserto, exposto a descabeladas ventanias que assobiavam noite e
dia; e, numa árida escarpa, a uns quarenta metros dos meus muros, o ninho de
todos os gaviões que erguiam voo -pinhé! pinhé! – e iam, lá longe, fisgar os
pardais da Praça da República. A nota fúnebre: – no jardim da casa fronteira,
uma lâmpada triste, única iluminação da rua, pendia de um “L” invertido feito
de fortes vigas de peroba que formavam exatamente uma forca; e atrás, em
pano-de-fundo, parte pobre de um cemitério, uma encosta semeada de túmulos e
cruzes. A nota gloriosa: – no horizonte, ao norte, fechando a perspectiva da
rua, o recorte pontudo do Jaraguá, o “Senhor do Plaino”, a primeira numeração
de ouro no Brasil; e, sobrelevando o apinhado central, a sudeste, o Banco do Estado,
ascensional, alvo obus de louça, com a sua ogiva de luz fluorescente nas noites
caladas. A nota simbólica: – com o Estádio Municipal, que é toda a alegria da
Vida, de um lado, e, de outro, a necrópole do Araçá, que é toda a tristeza da
Morte, assim, entre os dois extremos da contingência humana, a minha rua ia
indo filosófica, indiferentemente. A nota pessoal: – -aí assentei a minha casa,
porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos
para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim”.
Chama a atenção não só
os monumentos históricos que o poeta vislumbrava de sua casa, como também o
Pico do Jaraguá, marco na paisagem de São Paulo.
Este pico está em
quase todas as obras do artista e professor, Evandro Carlos Jardim (1935).
Disse Jardim: “Descobri o Jaraguá numa tarde. Estava andando lá pelos lados da
Lapa e eu o vi (…)”. Desde então, o Pico do Jaraguá passou a ser representado
nas suas gravuras em metal, sempre à serviço de sua poética, como parte de uma
imagética não factual.
Voltemos no tempo para
entendermos, brevemente, parte da história do Pico do Jaraguá.
Em 1825, Hercules
Florence (1804-1879), desenhista da Expedição Langsdorff, assim descreve sua
descoberta: “ A três léguas de São Paulo vi o monte Jaraguá, palavra indígena
que significa rei das montanhas, por ser o ponto mais elevado da região. Ao pé
dessa montanha foi descoberta a primeira mina de ouro do Brasil, por volta do
ano 1520, fato que despertou o interesse de Portugal pelo Brasil, até este
momento pouco apreciado”.
Esta descoberta
sinaliza o início de uma história marcada a ferro e fogo pela escravização de
negros e indígenas; história de exploração com começo, mas sem fim, pois os
exploradores se sucedem até hoje cobiçando, sem cessar, as riquezas da região.
Ao ciclo do ouro que iniciou essa exploração, sucedeu-se o do café. Hoje
interesses de particulares e do Estado, vêm tentando apropriar-se dos
territórios (TIs) dos Guarani-Mybiá do Jaraguá, privatizar o Parque Estadual do
Jaraguá, construir condomínios privados cercados, levantar loteamentos
clandestinos, etc. Sempre à custa da floresta, de territórios e vidas
indígenas.
O Pico do Jaraguá,
porém, é um dos principais atrativos turísticos da cidade, tal como se lê
abaixo: “O Parque Estadual do Jaraguá abriga um dos últimos remanescentes de
Mata Atlântica da região metropolitana de São Paulo. É representado pelo
icônico morro do Jaraguá, onde está localizado o Pico do Jaraguá, que
representa o ponto mais alto da cidade de São Paulo, com 1.135 metros de
altitude e proporcionando ao visitante um vislumbre inusitado e belo da maior
cidade da América Latina”.
O guia estimula as
pessoas a visitarem o Pico do Jaraguá para admirar um “vislumbre inusitado e
belo” da cidade. Esta atitude de contemplação esconde tudo que incomoda a
paisagem única e “perfeita” da cidade de São Paulo. Refiro-me à precariedade da
vida nos exíguos territórios (TIs) dos Guarani-Mybiá do Jaraguá situados no
sopé do pico (Mybiá é um dos subgrupos do povo Guarani -família linguística
tupi-guarani).
No final da Rodovia
dos Bandeirantes já próximo de São Paulo, o Pico do Jaraguá vai ficando cada
vez mais para trás. A fotografia a seguir mostra o Pico do Jaraguá a 40 km de São
Paulo.
À medida que se entra
na cidade, vê-se um enorme contingente da população que não usufrui de qualquer
paisagem. São homens, mulheres e crianças que vivem embaixo de viadutos, nas
margens de canteiros de jardins, em cantos das avenidas e ruas da cidade. Quando
atrapalham a beleza da maior cidade da América Latina, ocupando lugares
cobiçados pela indústria da construção civil, “ameaçando” a “segurança”
daqueles /as que passam a pé ou de carro, a prefeitura é eficiente… Garante a
“limpeza” do local, evitando que as pessoas retornem, erguendo grades e
colocando viaturas policiais.
·
Enxota as pessoas!
Volto à nota pessoal,
que encerra o texto de Guilherme de Almeida, “–aí assentei a minha casa, porque
o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para
olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim”.
Retorno tambémao
cartum de Laerte que abre este texto. Neste uma pessoa sentada em um sofá de
seu apartamento, aprecia a vista que via da janela: céu com nuvens, e, ao
longe, uma série de prédios. Inesperadamente, um rosto invade a janela e tapa a
sua vista.
Duas questões, ao
menos, são suscitadas por este acontecimento: a primeira evoca a ausência de
paisagem, pois ao habitante do apartamento vizinho só resta o que ele vê e
aprecia de sua janela, o sofá alheio; a segunda remete à invasão da privacidade
sentida pela pessoa que tem um rosto entrando em sua sala, tapando toda sua
visão do exterior.
Esta invasão é uma
ameaça à vida dos habitantes da cidade de São Paulo, uma vez que arranha céus
cada vez mais altos, são levantados todos os dias praticamente colados a
prédios novos ou antigos. Perde-se não só a vista, mas algo mais profundo, o
devaneio, o sonho, a memória. A nossa memória segundo, Sandra Benides – citada
na epígrafe – é nosso “patrimônio” baseado em nossos “saberes”.
O antropólogo Tim
Ingold (1948) vem refletindo sobre a capacidade que idealmente temos, ao
circularmos por paisagens – lugares impregnados de histórias- de arquivar em
nossa memória experiências e conhecimentos. Ora, se desaparecerem as
paisagens, os monumentos históricos, os pontos de referência da cidade, as
áreas verdes, a imensidão infinita do céu com nuvens, estrelas e lua, corremos
o risco de perder, não só, grande parte do conteúdo acumulado em nossa memória,
como também partes de nossa história e de nossa capacidade de sonhar, de criar
poesia. Como resistir? De acordo com a potencialidade evocada por Sandra
Benites.
A memória é negada ao
povo da rua que mora e circula em um ambiente impregnado de passado histórico,
pois a urgência está, antes de tudo, na tentativa de sobreviver dia a dia. Há,
pois que refletir sobre o que é paisagem para cada segmento da população paulistana.
Da luz à sombra, da
satisfação à frustração, estas talvez sejam as mensagens poéticas transmitidas
por Laerte no cartum com o qual fecho estas reflexões.
Fonte: Por Ana Maria
de Niemeyer, no A Terra é Redonda
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