sexta-feira, 26 de abril de 2024

O direito à cidade e à linha do horizonte

“Aí eu fui entender o papel que a arte tem para acordar a memória: é uma forma da gente resistir, é o nosso jeito de cada dia. Como eu sou Guarani, acordar a memória para a gente é sempre acordar pela memória – e a gente entende aquela memória como patrimônio, que são os nossos saberes, nossa forma de não perder as coisas que nos fazem” (Sandra Benites).

Laerte profetiza um futuro próximo para a cidade de São Paulo, no qual prédios cada vez mais altos esconderão as vistas.

Diferentes especialistas vêm denunciando que o Plano Diretor não está passando por uma revisão “para o povo e com o povo”. Vejamos este trecho: “2. Quem impõe mudanças é a indústria da construção civil de acordo com seus interesses, no caso construir prédios cada vez mais altos. 3. Não interessa o sepultamento de monumentos históricos, da memória histórica e arquitetônica da cidade, o desaparecimento de paisagens. 4. As consequências negativas para a infraestrutura da cidade – transportes, trânsito, abastecimento de água, coleta de esgoto, falta de moradia para a população de baixa renda, impactos ambientais. 6. Modificação drástica no clima da cidade, em consequência, por exemplo, da diminuição de áreas verdes, e da circulação dos ventos pela cidade..”.

Seguindo a deixa aberta pela cartunista Laerte, ainda dentro do campo das artes, trago contribuições de poetas e artistas para abordar questões levantadas no manifesto acima. Começo pelo “[…] sepultamento de monumentos históricos, da memória histórica e arquitetônica da cidade, o desaparecimento de paisagens”. Vejamos como nos auxilia o texto do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969) sobre a paisagem que via de sua casa no alto de Perdizes (zona oeste de São Paulo).

– Que ideia a sua, ir morar naquele fim de mundo!

Era o que me diziam os amigos quando, há doze anos, construí a minha casa nesta colina, a oeste do vale do Pacaembu.

Fim de mundo?

–Podia mesmo parecer isso. Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente (a minha foi a quarta) separadas por terrenos sem muro nem cerca e eriçados de mato hirsuto e anônimo – era apenas uma estrada rústica. A nota agreste: – ponto alto e deserto, exposto a descabeladas ventanias que assobiavam noite e dia; e, numa árida escarpa, a uns quarenta metros dos meus muros, o ninho de todos os gaviões que erguiam voo -pinhé! pinhé! – e iam, lá longe, fisgar os pardais da Praça da República. A nota fúnebre: – no jardim da casa fronteira, uma lâmpada triste, única iluminação da rua, pendia de um “L” invertido feito de fortes vigas de peroba que formavam exatamente uma forca; e atrás, em pano-de-fundo, parte pobre de um cemitério, uma encosta semeada de túmulos e cruzes. A nota gloriosa: – no horizonte, ao norte, fechando a perspectiva da rua, o recorte pontudo do Jaraguá, o “Senhor do Plaino”, a primeira numeração de ouro no Brasil; e, sobrelevando o apinhado central, a sudeste, o Banco do Estado, ascensional, alvo obus de louça, com a sua ogiva de luz fluorescente nas noites caladas. A nota simbólica: – com o Estádio Municipal, que é toda a alegria da Vida, de um lado, e, de outro, a necrópole do Araçá, que é toda a tristeza da Morte, assim, entre os dois extremos da contingência humana, a minha rua ia indo filosófica, indiferentemente. A nota pessoal: – -aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim”.

Chama a atenção não só os monumentos históricos que o poeta vislumbrava de sua casa, como também o Pico do Jaraguá, marco na paisagem de São Paulo.

Este pico está em quase todas as obras do artista e professor, Evandro Carlos Jardim (1935). Disse Jardim: “Descobri o Jaraguá numa tarde. Estava andando lá pelos lados da Lapa e eu o vi (…)”. Desde então, o Pico do Jaraguá passou a ser representado nas suas gravuras em metal, sempre à serviço de sua poética, como parte de uma imagética não factual.

Voltemos no tempo para entendermos, brevemente, parte da história do Pico do Jaraguá.

Em 1825, Hercules Florence (1804-1879), desenhista da Expedição Langsdorff, assim descreve sua descoberta: “ A três léguas de São Paulo vi o monte Jaraguá, palavra indígena que significa rei das montanhas, por ser o ponto mais elevado da região. Ao pé dessa montanha foi descoberta a primeira mina de ouro do Brasil, por volta do ano 1520, fato que despertou o interesse de Portugal pelo Brasil, até este momento pouco apreciado”.

Esta descoberta sinaliza o início de uma história marcada a ferro e fogo pela escravização de negros e indígenas; história de exploração com começo, mas sem fim, pois os exploradores se sucedem até hoje cobiçando, sem cessar, as riquezas da região. Ao ciclo do ouro que iniciou essa exploração, sucedeu-se o do café. Hoje interesses de particulares e do Estado, vêm tentando apropriar-se dos territórios (TIs) dos Guarani-Mybiá do Jaraguá, privatizar o Parque Estadual do Jaraguá, construir condomínios privados cercados, levantar loteamentos clandestinos, etc. Sempre à custa da floresta, de territórios e vidas indígenas.

O Pico do Jaraguá, porém, é um dos principais atrativos turísticos da cidade, tal como se lê abaixo: “O Parque Estadual do Jaraguá abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica da região metropolitana de São Paulo. É representado pelo icônico morro do Jaraguá, onde está localizado o Pico do Jaraguá, que representa o ponto mais alto da cidade de São Paulo, com 1.135 metros de altitude e proporcionando ao visitante um vislumbre inusitado e belo da maior cidade da América Latina”.

O guia estimula as pessoas a visitarem o Pico do Jaraguá para admirar um “vislumbre inusitado e belo” da cidade. Esta atitude de contemplação esconde tudo que incomoda a paisagem única e “perfeita” da cidade de São Paulo. Refiro-me à precariedade da vida nos exíguos territórios (TIs) dos Guarani-Mybiá do Jaraguá situados no sopé do pico (Mybiá é um dos subgrupos do povo Guarani -família linguística tupi-guarani).

No final da Rodovia dos Bandeirantes já próximo de São Paulo, o Pico do Jaraguá vai ficando cada vez mais para trás. A fotografia a seguir mostra o Pico do Jaraguá a 40 km de São Paulo.

À medida que se entra na cidade, vê-se um enorme contingente da população que não usufrui de qualquer paisagem. São homens, mulheres e crianças que vivem embaixo de viadutos, nas margens de canteiros de jardins, em cantos das avenidas e ruas da cidade. Quando atrapalham a beleza da maior cidade da América Latina, ocupando lugares cobiçados pela indústria da construção civil, “ameaçando” a “segurança” daqueles /as que passam a pé ou de carro, a prefeitura é eficiente… Garante a “limpeza” do local, evitando que as pessoas retornem, erguendo grades e colocando viaturas policiais.

·        Enxota as pessoas!

Volto à nota pessoal, que encerra o texto de Guilherme de Almeida, “–aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim”.

Retorno tambémao cartum de Laerte que abre este texto. Neste uma pessoa sentada em um sofá de seu apartamento, aprecia a vista que via da janela: céu com nuvens, e, ao longe, uma série de prédios. Inesperadamente, um rosto invade a janela e tapa a sua vista.

Duas questões, ao menos, são suscitadas por este acontecimento: a primeira evoca a ausência de paisagem, pois ao habitante do apartamento vizinho só resta o que ele vê e aprecia de sua janela, o sofá alheio; a segunda remete à invasão da privacidade sentida pela pessoa que tem um rosto entrando em sua sala, tapando toda sua visão do exterior.

Esta invasão é uma ameaça à vida dos habitantes da cidade de São Paulo, uma vez que arranha céus cada vez mais altos, são levantados todos os dias praticamente colados a prédios novos ou antigos. Perde-se não só a vista, mas algo mais profundo, o devaneio, o sonho, a memória. A nossa memória segundo, Sandra Benides – citada na epígrafe – é nosso “patrimônio” baseado em nossos “saberes”.

O antropólogo Tim Ingold (1948) vem refletindo sobre a capacidade que idealmente temos, ao circularmos por paisagens – lugares impregnados de histórias- de arquivar em nossa memória experiências e conhecimentos.  Ora, se desaparecerem as paisagens, os monumentos históricos, os pontos de referência da cidade, as áreas verdes, a imensidão infinita do céu com nuvens, estrelas e lua, corremos o risco de perder, não só, grande parte do conteúdo acumulado em nossa memória, como também partes de nossa história e de nossa capacidade de sonhar, de criar poesia. Como resistir? De acordo com a potencialidade evocada por Sandra Benites.

A memória é negada ao povo da rua que mora e circula em um ambiente impregnado de passado histórico, pois a urgência está, antes de tudo, na tentativa de sobreviver dia a dia. Há, pois que refletir sobre o que é paisagem para cada segmento da população paulistana.

Da luz à sombra, da satisfação à frustração, estas talvez sejam as mensagens poéticas transmitidas por Laerte no cartum com o qual fecho estas reflexões.

 

Fonte: Por Ana Maria de Niemeyer, no A Terra é Redonda

 

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