sexta-feira, 26 de abril de 2024

A Argentina acordou do pesadelo Milei?

Mais de 1.100 caminhões saem todas as noites para recolher lixo na cidade de Buenos Aires. Normalmente carregam 12 mil quilos cada. Na mesma rota atualmente coletam apenas 5 mil. A informação foi reportada por Pablo Moyano, dirigente sindical dos caminhoneiros. Ilustra a situação econômica que a Argentina atravessa desde que Javier Milei tenta transformá-la num paraíso para as grandes empresas — e num inferno para todos os outros.

Em dezembro, a Argentina era um país barato em dólares. Pessoas cruzavam de países fronteiriços para adquirir certos bens. Desde que Milei assumiu o cargo, a inflação não só tem sido alta em pesos, mas também disparou na moeda estadunidense. Buenos Aires é hoje mais cara que muitas cidades europeias. Mas os salários giram em torno de 10%. Se a inflação em pesos e a desvalorização do dólar continuassem no ritmo atual, em poucos meses a Argentina poderia ser o país mais caro do mundo, mas com salários típicos das nações mais pobres. É por isso que, durante a Semana Santa, algo se inverteu: milhares de argentinos cruzaram as fronteiras para comprar nos países vizinhos.

A administração conduzida pelo presidente ultraliberal aplica um programa de ajuste tão radical que até os economistas neoliberais do Fundo Monetário Internacional o consideram excessivo. Já lhe recomendaram três vezes que relaxe, partilham dos objetivos de Milei, mas temem que não seja sustentável a longo do tempo. Através do ajuste fiscal, o governo procura reduzir a inflação sem considerar as consequências sociais que esta poderá ter. Ele está apostando todas as suas fichas nisso, para ter sucesso nessa frente que lhe permita ganhar tempo e paciência social diante da queda do nível de vida. Para ajudar a compreender porque é que um povo suportaria isso – a partir de países que não têm a inflação que aflige a Argentina atualmente, cerca de 275% – devemos ter em mente que a inflação a estes níveis produz um desequilíbrio social que influencia todas as esferas da vida cotidiana. Recentemente, Álvaro García Linera publicou um artigo pertinente para compreender este fenômeno.

Nos últimos dias, Milei recebeu duas notícias que afetam a sustentabilidade dessa rota. A primeira é que devido à recessão autoinduzida, a arrecadação de impostos caiu 16% e abre mais uma vez um fosso entre receitas e despesas que o obriga – se quiser preservar o superávit – a continuar apertando o torniquete que já está muito apertado.

Além disso, essa queda na arrecadação complica seu já difícil relacionamento com os governadores. O imposto sobre o rendimento caiu 40,2%, enquanto o IVA foi reduzido em 15%. Ambos são compartilhados, são automaticamente transferidos para as províncias. Desta forma, caem os recursos à disposição dos tesouros provinciais, o que obrigará os governadores a redobrar a pressão para obter receitas do Estado nacional por outros meios. A resposta que receberão provavelmente será negativa, aumentando a tensão nas relações entre o presidente e os governadores — e no conjunto social dentro de cada uma das províncias.

A segunda notícia negativa que afeta outra coluna do plano do ministro da Economia, Luis Caputo, é a exigência das entidades agrícolas para melhorarem os rendimentos que o setor recebe com a venda de soja e do milho no mercado mundial. Existem duas maneiras de alcançar essa melhoria. Uma delas – descartada – é reduzir as retenções (direitos de exportação) pagas pelos produtores. Desta forma, as contas públicas ficam ainda mais desfinanciadas e o déficit cresce, que no diagnóstico do governo é o culpado pela inflação.

A segunda opção é uma nova desvalorização que aumente o valor do dólar e aumente a quantidade de pesos que os produtores recebem. O problema desta variante é que este aumento no valor da moeda forte seria imediatamente transferido para os preços locais e também aceleraria a inflação. Essa atitude impediria que Milei tivesse o único “sucesso” que poderia demonstrar nesses meses de gestão: uma queda da inflação, a pedra de toque em que aposta para ganhar o tempo e a paciência mencionados. Desativar esse grande perturbador social.

Existe outra opção. O que acontece se ele ignorar o campo e não implementar um mecanismo para melhorar sua renda? Os proprietários rurais têm a possibilidade de estocar a produção e aguardar o cumprimento de suas exigências. A questão então é quem tem mais tempo para sentar e observar o pôr do sol no horizonte dos Pampas.

A colheita é a principal receita em dólares que o país gera. O Banco Central apresenta saldo negativo e precisa desses dólares para cumprir compromissos externos, os únicos invioláveis para este governo hegemonizado pela grande concentração de capital financeiro nacional e internacional. No limite, ele teria de deixar de pagar, não tanto o Fundo Monetário Internacional, que fornecerá dólares destinados a pagar a si mesmo, mas sim os compromissos assumidos com entidades privadas. Ou financiar-se no mercado de dívida, algo que o ministro da Economia tem feito com paixão. Um dos itens que recebem apenas uma fração são as importações feitas de dezembro até hoje, que são pagas à alíquota de 25% a cada 30 dias. Haverá dólares para isso ou o desastre no sistema produtivo nacional se aprofundará?

Para evitar esta cilada, Caputo viajará novamente aos Estados Unidos em busca de alguns bilhões. Se os conseguir, ganharia tempo na aposta para acelerar uma primavera que permita a estabilização da macroeconomia e do governo. Isto não dará origem a um plano econômico, mas permitirá que um plano de negócios seja alargado ao longo do tempo. Esse é o único objetivo que importa para Caputo, mas não para Milei, que tem visões mais amplas.

O preço será o mesmo que o país paga ininterruptamente desde 1982: uma dívida cada vez maior que levará no futuro aos mesmos males que o afligem hoje, reaparecendo amanhã, agravados por mais dívida. Nesse futuro hipotético, algum Milei ou algum Caputo, como antes Menem e Cavallo, terá que vender outros quinquilharias que podem ser confundidos com uma bonança que nunca virá.

O desastre que ameaça na frente externa através da escassez de dólares tem o seu análogo em pesos na frente interna. O governo implementa uma contabilidade criativa para que a planilha de Excel mostre superávit. Ao mesmo tempo, este formulário é um insumo para que “jornalistas amigos” – digamos mercenários de plantão – possam ocupar minutos com algo que ressoe com boas notícias – tarefa cada vez mais árdua e, por isso, cada vez mais importante – para manter a imagem de o governo pro cima do local onde os resultados da gestão o conduzem.

Esse superávit foi construído com a interrupção do pagamento de coisas, algumas delas extremamente sensíveis. Para que se entenda, através de um exemplo – sempre polêmico – que equipara a economia familiar a uma economia nacional: o excedente de Milei equivale a uma família que comemora que no último dia do mês tem dinheiro no bolso mas não contabiliza que deve o aluguel e não pagou a conta de luz. Entre as coisas que o Estado argentino deixou de pagar estão as contas das geradoras de energia elétrica.

Além da economia, o meio ambiente também ameaça a administração ultraliberal. Nos últimos 30 dias, uma conspiração de mosquitos acelerou uma epidemia de dengue que já conta com 260 mil infecções e 161 mortes. Poderia ser uma fatalidade da natureza, mas o presidente e sua equipe deram sua contribuição. O país carece de repelentes e inseticidas. Sem reflexos, o governo não conseguiu intervir a tempo e resolver a carência. Duas coisas convergiram aí: a péssima práxis – a equipe do governo não é má, mas horrível – e uma mais profunda, a sua concepção ideológica. Desde a sua chegada, ele revogou a Lei de Abastecimento e todos os instrumentos que lhe teriam permitido detectar o que iria acontecer. Acredita tolamente que o mercado deve regular-se sem intervenção estatal.

Devido a esses devaneios, a imagem positiva de Milei já caiu entre 20 e 25 pontos segundo diferentes medidas. Nos próximos 90 dias, tudo o que está errado vai piorar. Aumentos sucessivos na eletricidade, gás e transportes continuam por vir. Como função inversa das tarifas, é provável que a imagem de Milei continue seguindo essa inclinação, com o seu epicentro no setor social normalmente definido como a classe média – predominantemente a classe trabalhadora.

Se chegar a um ponto muito baixo, é possível que os inimigos que ele vem colhendo com gosto no sistema político, mas também os amigos de sucesso, se proponham a destroçá-lo. Já terá realizado a tarefa suja que o sistema lhe confiou, uma transferência de recursos para o setor mais concentrado do capital e uma limpeza das variáveis mais desequilibradas do capitalismo argentino. Se for esse o caso, os caminhos que são celebrados como excêntricos retornarão ao lugar de onde nunca deveriam ter saído e serão condenados como execráveis. Ainda incipientes, diante da força da realidade, os dois jornalistas a quem Milei agradece mais enfaticamente pela construção midiática do repugnante personagem que ele encarna – para eles foi um negócio de audiência, para o país uma calamidade que será paga por décadas – começaram a tecer expressões pontuais onde se distanciam de sua criação. Estamos nos referindo a Alejandro Fantino e Jonatan Viale. Não os mencionamos porque suas palavras sejam relevantes, mas porque traduzem a temperatura social que eles percebem.

Se algum setor do poder decidir depô-lo através de um julgamento político, as provas necessárias para tal estarão à mão, Milei deixou os dedos marcados sobre quais os motivos de impeachment que poderão existir. Esse é um dos ângulos para entender a entrega do país aos Estados Unidos que Milei exagera com cenas que lembram o filme Bananas, de Woody Allen. Ele busca que o fator externo ordene a política interna. Ele confia que a ameaça do poder imperial disciplinará franjas do poder econômico articuladas com o sistema político, que fantasiam deslocá-lo em favor de uma opção igualmente entreguista porém mais “razoável” no exercício do poder político. Já existem pelo menos quatro alternativas de substituição nos bastidores. Com a realidade o perseguindo, Milei tem meses pela frente, onde percorrerá um caminho sinuoso e escorregadio.

 

Ø  Uma das melhores universidades da América Latina está em risco sob Milei?

 

Dezenas de milhares de argentinos disseram na terça-feira (23/4) ao presidente Javier Milei que não querem que a "motosserra" de cortes do presidente chegue às universidades públicas.

As enormes manifestações que percorreram as ruas do país contra os cortes que o novo governo pretende fazer no ensino superior mostraram a crescente inquietação diante da política econômica, bem como o poder mobilizador do movimento estudantil no país.

Mas, talvez, os protestos também tenham destacado algo mais profundo: o lugar privilegiado que a universidade pública ocupa no coração e no orgulho dos argentinos.

E, no ensino superior argentino, destaca-se a Universidade de Buenos Aires (UBA), a maior do país e uma das mais prestigiadas da América Latina.

Fundada em 1821, a UBA oferece mais de 80 cursos e já formou 16 presidentes argentinos e cinco ganhadores do Prêmio Nobel. O prestígio da instituição atrai estudantes estrangeiros pelos cursos gratuitos e pela qualidade do ensino.

No entanto, os diretores da universidade apontam que a sustentabilidade da instituição está sob risco diante dos cortes orçamentais propostos pelo governo Milei, que afetam o funcionamento das diferentes faculdades e deixaram salas de aula no escuro pela dificuldade no pagamento das contas de energia.

Milei realiza um ajuste sem precedentes nas contas públicas do país — e concedeu às universidades estatais o mesmo orçamento previsto para 2023.

Porém, o país tem a inflação mais alta do mundo, que atualmente está perto de 290% ao ano. Com isso, mesmo com um aumento de 140% nas despesas operacionais em duas ondas, em março e maio, as autoridades universitárias alertaram que o dinheiro é insuficiente.

A UBA declarou emergência orçamentária e avisou que, se esse cenário continuar, corre o risco de não funcionar no segundo semestre.

Já o governo exige auditar as contas das instituições de ensino e, por meio das redes sociais, Milei assegurou que vai "garantir fundos para as universidades".

"Em nenhum momento o governo deu a entender que tem a intenção de fechar as universidades nacionais. Longe disso, na véspera da manifestação já tinha sido feito o repasse de recursos para as despesas de funcionamento de todas as universidades", escreveu Milei no X (o antigo Twitter).

Confira a seguir quatro características que distinguem a UBA de outras universidades da América Latina.

•        1. Gratuidade

A UBA, assim como todas as universidades públicas da Argentina, é gratuita desde 1949, quando o então presidente Juan Domingo Perón assinou um decreto em que dizia que o Estado seria responsável pelo financiamento do ensino superior.

Até então, apenas as classes mais abastadas tinham acesso ao ensino superior, devido ao alto custo das mensalidades, que era proibitivo para famílias com menos recursos.

O fim das mensalidades universitárias impulsionou as matrículas. Em 1949, essas instituições tinham 66.212 alunos. Em 1954, esse número saltou para 135.891, segundo dados do governo argentino.

A gratuidade, porém, foi interrompida durante a ditadura militar (1976-1983) e recuperada com o retorno da democracia. Em 1994, ela foi instituída como direito constitucional.

Desta forma, o financiamento da universidade provém do Estado, que destina 90% dos recursos para pagar os salários de professores e funcionários, e os 10% restantes para as despesas de funcionamento.

Muitos dos que participaram dos protestos recentes na Argentina destacaram que o fato de não terem que pagar pela educação permitiu-lhes o acesso a uma vida melhor.

É o caso de Angélica, uma dentista aposentada de 97 anos. "Ter estudado na UBA me permitiu uma vida que não poderia ter sonhado de outra forma. Me profissionalizar é o exemplo que mais agradeço por ter dado às minhas filhas", disse ela ao veículo argentino Infobae.

•        2. Prestígio da educação

Com cinco vencedores, a Argentina tem o maior número de prêmios Nobel da América Latina. Todos eles passaram pelas salas de aula da UBA como estudantes ou professores.

Dois ganhadores do Prêmio Nobel da Paz — Carlos Saavedra Lamas (1936) e Adolfo Pérez Esquivel (1980) —, dois de Medicina — Bernardo Alberto Houssay (1947) e César Milstein (1984) — e um de Química — Luis Federico Leloir (1970) — são bons exemplos da qualidade do ensino desta universidade.

Entre os professores da instituição, estão gigantes da Literatura como Jorge Luis Borges, que foi nomeado em 1956 professor titular da cátedra de Literatura Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia e Letras da UBA.

A Universidade de Buenos Aires também ajudou a formar 16 presidentes do país.

Ela aparece a cada ano entre as 100 melhores do mundo e uma das primeiras da América Latina, graças à "sua reputação excepcional entre acadêmicos e empregadores, bem como por causa da agenda de pesquisa intensamente colaborativa", segundo a consultoria Quacquarelli Symonds ( QS), que produz uma das classificações mais prestigiadas do ramo.

A UBA possui 13 faculdades, onde são ministrados mais de 80 cursos de graduação.

Seis deles — Línguas Modernas, Antropologia, Direito, Engenharia de Petróleo, Sociologia e Arte e Design — estão entre os 50 melhores do mundo segundo a lista da QS.

Um dos mobilizados nestes dias de protesto foi precisamente Pérez Esquivel, um dos prêmios Nobel da argentina, que recordou no X as palavras do seu colega Nobel Bernardo Houssay: "A ciência não é cara, cara é a ignorância."

•        3. Grande número de estudantes estrangeiros

Um dos debates que tem ocorrido em torno da crise nas universidades públicas é o número de estudantes estrangeiros.

A Argentina é o país da região com maior número de estudantes de outros países, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

E, devido ao prestígio e à gratuidade universal, a UBA tornou-se um foco de atração para estes estudantes internacionais.

Dos mais de 385 mil alunos matriculados na UBA, o percentual de estudantes internacionais em cursos de graduação é de 9,5% — o dobro da média nacional.

Nos cursos de pós-graduação, que são pagos, o número é de 16,5%, segundo dados da universidade e do Ministério da Educação argentino.

A maior parte dos estudantes estrangeiros vem de países da região, como Peru, Brasil, Paraguai, Venezuela, Colômbia, Chile e Equador.

Segundo muitos estudantes, essa mistura cultural enriquece a vida universitária.

O fato de não existirem exames de admissão e de não haver discriminação com base na nacionalidade — além de o país dar a oportunidade de trabalhar durante os estudos — são alguns dos argumentos citados pelos estudantes estrangeiros que optam pela Argentina e pela UBA em particular.

A Medicina é a carreira mais popular entre os estudantes estrangeiros e locais devido à qualidade do ensino, entre outras coisas.

A UBA administra seis hospitais universitários onde a população é atendida e pesquisada. Mais de meio milhão de pessoas passaram por consultas nesses locais no ano passado. A maioria dos graduados também faz a residência nessas instituições.

Os cortes anunciados pelo governo Milei também afetam esses centros médicos, que estão no limite, segundo os gestores.

•        4. Sistema de ingresso

Mas a UBA não se destaca apenas por ser gratuita. Ela também oferece um acesso irrestrito. Ou seja, ela não tem um vestibular: a universidade possui o chamado Ciclo Básico Comum (CBC) desde 1985.

O CBC, com duração de um ano, é o primeiro ciclo de todas as carreiras da Universidade de Buenos Aires, que consiste em seis disciplinas: duas matérias globais, comuns a todos os alunos, independentemente da carreira, duas específicas para a orientação dos cursos e outras duas do ramo do conhecimento escolhido pelo aluno.

Para poder ingressar em qualquer faculdade da UBA, é imprescindível uma aprovação no CBC. O objetivo desse ciclo básico é que todos os alunos iniciem seus respectivos estudos universitários com um nível parecido.

Além disso, ao incluir disciplinas compartilhadas por diferentes formações, o CBC também serve para orientar os alunos e oferece uma educação mais global.

 

Fonte: Por Pablo Gandolfo, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues, para Outras Palavras/BBC News Brasil

 

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