Vozes dos
territórios por uma transição energética justa e popular
Os efeitos
e impactos das energias tradicionais e não renováveis na atmosfera fizeram com
que se aprofundasse as discussões no planeta de tal forma que a comunidade
científica e política percebeu a necessidade iminente de mudanças, em vista de
um menor impacto no meio ambiente e no modelo de desenvolvimento mundial.
É
necessário entendermos que “energia” e “meio ambiente” estão de tal modo
intrinsecamente conectados que não podemos, de modo algum, separá-los; o modo
de produção energética nos indica o modelo de desenvolvimento que queremos,
isto é, para que e para quem ela é destinada. Claro que não podemos negar que a
eletricidade, da Revolução Industrial para cá, melhorou em muito a vida das
pessoas em todo o mundo e alavancou o desenvolvimento social e econômico de
tantos grupos, mesmo sabendo que boa parte da população ainda está longe de
desfrutar de uma melhor qualidade de vida.
O consumo
de eletricidade e o consequente uso das tecnologias fazem aumentar a
necessidade de conforto. Isso aprofunda um modelo de desenvolvimento e a busca
por novas fontes produtoras de energia para serem exploradas no dia a dia.
Estas, no entanto, sempre ficam restritas a pequenos grupos de maior poder
aquisitivo, muitas vezes sobrando à grande maioria da população apenas os seus
impactos negativos.
Desse
modo, nos últimos anos, com o aumento do perigo da escassez das energias
fósseis e com as mudanças climáticas gerando catástrofes em todo o planeta,
tem-se aprofundado a discussão sobre a produção de energias renováveis.
Oriundas do sol e do vento, portanto, elas se renovam, não cessam e são
consideradas energia “limpa”.
Energias
renováveis, sim. Mas limpas, não! A destruição provocada em todo o processo de
composição, desde a manufatura de peças, com a utilização de minérios (como
cobre, alumínio, silício, lítio etc. por exemplo) – que por si já deixam um
rastro de destruição, tendo em vista a forma como as mineradoras agem para
extraí-los, muitas vezes com trabalho análogo à escravidão, exploração de
menores e desrespeito ao meio ambiente –, até a instalação com processos de
desmatamento – destruindo berços da fauna e da flora – poluição sonora,
poluição visual etc. – atesta que não são tão limpas como propagado pelas
empresas e governos.
Nessa
perspectiva, o Serviço de Assistência Rural e Urbano-SAR e um conjunto de
organizações parceiras, sociais e de ensino e pesquisa, demandados pelo clamor
de várias comunidades atingidas por estas energias vêm acompanhando a situação
ambiental e social no Nordeste e, sobretudo, no Estado do Rio Grande do Norte.
Em 2023,
foram realizadas oficinas territoriais com a participação de lideranças e
agentes sociais de várias comunidades atingidas que culminaram com a criação de
Cartografias Sociais que apontam não apenas os impactos negativos das energias
renováveis, como também os aqueles pontos essenciais que cada comunidade julga
imprescindível que permaneça intocáveis em vista do equilíbrio ambiental,
social, cultural e religioso em seus territórios. Esses aspectos foram
denominados de “achados territoriais”.
Importante
ter presente que, no final de 2023, só no Rio Grande do Norte, de acordo com a
Aneel, entre parques onshore (i) operando, (ii) em construção, (iii) já
licenciados, mas com construção ainda não iniciada, e aqueles (iv) aguardando o
licenciamento (DRO), estão previstos um total de 488 parques eólicos com um
montante de 4830 torres. Igualmente em relação às fazendas fotovoltaicas ou
parques solares, a previsão é de instalação de 531 fazendas, apenas
considerando o Rio Grande do Norte, conforme tabela abaixo:
Uma
preocupação que começa a ser levantada na fala de várias pessoas nas
comunidades diante desses dados é em relação à questão da soberania. Isso
porque as energias renováveis – e neste caso somente os parques eólicos
construídos até agosto de 2023 – já detém 262 mil hectares (o que equivale a 5%
do território potiguar). Essas área estão nas mãos dos chamados “latifundiários
dos ventos”, que detêm 27 empresas brasileiras e 19 estrangeiras. Chama-nos a
atenção para o fato de que muitos proprietários e agricultores familiares cujas
terras foram arrendadas reclamam que “perderam o controle da terra e não
recebem os valores prometidos”.
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Em relação a esta questão da soberania, destacamos ao menos três situações
preocupantes:
a)
Soberania Alimentar e Nutricional: Os
proprietários e agricultores que arrendam suas terras não podem mais cultivar
suas lavouras e nem criar animais naquela área. Isso significa que,
paulatinamente, haverá uma perda na produção de alimentos tanto para a
comercialização como para a própria subsistência, atingindo sobretudo a
produção da agricultura familiar da qual esses alimentos compõem, no geral, 70%
do que consumimos. Além disso, esse modelo agrava a situação previdenciária dos
agricultores e agricultoras que perdem seus direitos e seus benefícios, como a
aposentadoria rural.
b)
Soberania hídrica: num território encravado no semiárido
brasileiro onde há escassez de água – e, diga-se de passagem, já desertificado
pela ação humana – e diante de uma crise hídrica mundial, é um risco entregar,
seja vendendo diretamente ou arrendando, territórios inteiros que ficam sob o
controle dessas empresas que poderão explorar ao seu bel prazer os recursos
naturais daquela propriedade, inclusive a água.
c)
Soberania territorial: Arrendamentos de
glebas de terra por uma média de quarenta anos (podendo ser renovados
automaticamente por igual período) indicam um risco de grilagem com a perda da
propriedade que hoje encontra-se, boa parte, nas mãos dos agricultores e
agricultoras familiares, sobretudo nos assentamentos da reforma agrária. É uma
reconcentração de terra nas mãos de um novo tipo de latifúndio. Essa é uma
realidade que aponta sérios riscos, inclusive da constituição de “territórios
estrangeiros” dentro do próprio território nacional, com a perda total, por
parte das comunidades, do acesso e do uso da terra por essas comunidades.
Estas
questões foram levantadas pelas lideranças e agentes sociais presentes nas
oficinas territoriais que elaboraram as Cartografias Sociais, cujos dados acima
mencionados fizeram parte de todo um debate. Também foram levados em
consideração não apenas os parques de energia eólica onshore e as “fazendas
fotovoltaicas”, mas também os futuros parques offshore que ameaçam uma
atividade milenar e que vai gerar uma onda de desempregos diretos e indiretos
ligados à pesca artesanal, atingindo mais de 10 mil pescadores (a pesca
artesanal é responsável por colocar na mesa do brasileiro cerca de 70% do
pescado que é consumido no dia a dia). Só na região litorânea do Rio Grande do
Norte, entre a divisa do estado com o Ceará até o município de Touros, serão
instaladas mais de 1.200 torres de energia eólica no mar, onde nove grandes
parques disputam o espaço que tem o objetivo também de produzir hidrogênio
verde para exportação. Daí também a existência de um projeto de construção do
chamado “Porto Verde” que, por suas dimensões afetará sobretudo Caiçara do
Norte e municípios pesqueiros circunvizinhos que constituem importantes
territórios pesqueiros do Rio Grande do Norte.
Outras
questão apontada pelas comunidades é a saúde, que começa se deteriorar com a
proximidade das torres das casas, a poeira no trajeto dos carros com os
equipamentos para a instalação das torres (inclusive impedindo a produção de
alimentos em várias comunidades), a gravidez precoce de adolescentes sem o
reconhecimento paterno (filhos dos ventos), o aumento nas comunidades das
infecções sexualmente transmissíveis, o aumento da drogadição, entre outros.
Além da
devastação ambiental e social, outro problema grave é o desrespeito à Convenção
169, da OIT, da qual o Brasil é signatário. Esta trata da importância de
realizar uma “consulta livre, prévia e informada sempre que alguma obra, ação,
política ou programa for ser desenvolvido e afete os povos tradicionais,
independente da iniciativa pública ou privada” e, pelo que consta e pelo que
cada comunidade atesta, esse processo não é feito. No máximo é realizada uma
audiência pública que por si já não diz muito, tendo em vista as limitações dos
comunitários com os dados eminentemente técnicos e de difícil compreensão.
Foi diante
de toda esta problemática apontada pelas comunidades que nos dias 25 a 27 de
outubro de 2023 o SAR realizou o “I Seminário Vozes dos Territórios por uma
Transição Energética Justa e Solidária”. O evento foi promovido juntamente com
outros parceiros, atores sociais de estados do Nordeste e diversas lideranças
para aprofundar o debate sobre os impactos dos grandes projetos nas comunidades
“a partir do olhar sistêmico sobre as relações sociais, econômicas e ambientais
impactadas pelos empreendimentos de energia eólica e solar, bem como fortalecer
a atuação de grupos e organizações da sociedade civil organizada na geração de
alternativas ao enfretamento do modelo de produção de energia nos territórios”.
Ao final do seminário, os representantes das comunidades e dos territórios
presentes e todos os demais participantes decidiram criar e lançar o Movimento
dos Atingidos pelas Renováveis-Mar, que vem promovendo a articulação entre as
comunidades atingidas, as organizações parceiras, sociais de ensino e pesquisa
pelos estados do Nordeste.
Além da
criação e lançamento do MAR, foi também lançado o “Manifesto Vozes dos
Territórios por uma Transição Energética Justa e Popular”. O documento
“expressa com profunda legitimidade as vozes dos sujeitos de direito que
defendem a agenda pública da transição energética e lutam pela construção de um
país sem pobreza, sem exploração predatória dos recursos naturais e com maior
equidade e justiça social”.
O
Manifesto traz as denúncias sobre um modelo de produção energética que não
respeita o meio ambiente, não valoriza o modo de viver das comunidades e e gera
insegurança alimentar na medida que vai ocupando glebas imensas de terra que
ficam sem produzir alimentos e não respeita a biodiversidade e os direitos dos
povos e comunidades tradicionais. Além disso, o Manifesto exige do governo, em
suas várias esferas, do poder judiciário, das empresas e da sociedade como um
todo, um modelo de desenvolvimento que leve em consideração as pessoas, as
comunidades e os territórios, respeitando seus direitos e assegurando a
participação da sociedade civil para garantir os direitos constitucionais de
todos e de todas.
O modelo
de desenvolvimento que vem despontando nessa transição energética aponta para
os mesmos problemas que desde os primórdios da colonização vivenciamos, de um
racismo ambiental esdrúxulo, em que os pobres e suas comunidades sempre são
penalizados em favor dos colonizadores; e agora do capital nacional e
internacional cada vez mais explorador dos recursos naturais e das pessoas.
As
comunidades têm consciência que há alternativas mais justas e inclusivas. Elas
podem levar em conta a segurança alimentar e nutricional e o seu modo de ser e
viver, respeitando o meio onde vivem com toda a sua biodiversidade, produzindo
de forma agroecológica e sustentável, garantindo qualidade de vida de todos e
de todas. O Estado também pode assumir sua responsabilidade e direcionar
políticas públicas capazes de atender os mais vulnerabilizados e, legalmente,
obrigar as empresas para que assumam uma política de contenção dos efeitos e
mitigação dos impactos causados nos diversos processos de produção das energias
renováveis.
Assim, o
Manifesto esclarece que os mais pobres e vulneráveis não podem, diante desse
modelo devastador e concentrador de renda, arcar com as consequências de um
modelo desenvolvimentista que reflete um racismo ambiental que se agrava a cada
dia e do qual eles são suas principais vítimas.
Ao final,
é necessário que todos os cidadãos e cidadãs tomem consciência da problemática
e busquemos juntos as devidas soluções, de forma respeitosa e dialógica, para
que sejam sanados os passivos sociais, ambientais, econômicos e culturais nas
comunidades e territórios atingidos por esse modelo.
Fonte: Por
Francisco Adilson da Silva e Moema Hofstaetter, no Le Monde
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