'Violência
fascinante': como o ódio nas redes leva à radicalização de crianças no Brasil
O contato
com conteúdo extremista on-line está ocorrendo cada vez mais cedo, sendo hoje
por volta dos dez anos de idade, incluindo a radicalização de meninas e os
desafios com prêmios para aqueles que cometem atos violentos. Em reportagem
especial, analistas explicam à Sputnik Brasil quais as causas dessa tendência e
como combatê-la. A faixa etária de crianças brasileiras radicalizadas após
terem contato com conteúdo extremista nas redes sociais caiu. Se antes o
primeiro contato se dava por volta dos 15 anos, hoje ele ocorre aos dez anos de
idade, conforme explicam especialistas à Sputnik Brasil. Outra mudança
alarmante apontada é o avanço na radicalização de meninas. Antes, os principais
alvos de extremistas eram ataques on-line ou no mundo físico. Hoje, elas vêm
sendo cooptadas e transformadas em agentes da radicalização em subculturas
on-line, como são chamadas as comunidades em redes sociais, como o Discord e
fóruns on-line criados para difundir conteúdo extremista. Voando fora do radar
dos familiares, em uma época onde os dispositivos eletrônicos são usados como
uma espécie de babá eletrônica para manter crianças sob controle, essas
subculturas lançam dinâmicas que premiam aqueles que realizam atos violentos,
seja contra pessoas ou animais. Os que conseguem executar o ato, às vezes
filmando, ganham status dentro do grupo.
• Crianças como agentes radicalizadores de
outras crianças?
Em
entrevista à Sputnik Brasil, Michele Prado, pesquisadora do grupo Monitor do
Debate Político no Meio Digital e pesquisadora fellow na Social Change
Initiative (SCI), explica que esse processo de radicalização ocorre sem
necessariamente a existência de um líder ou adulto por trás, cooptando e
aliciando crianças. Segundo a pesquisadora, atualmente não existe apenas um
líder, mas vários pequenos líderes que acessam conteúdos plenamente disponíveis
nas redes, se autorradicalizam e passam a reproduzir conteúdo extremista. "Às
vezes, essa radicalização ocorre entre eles, é recíproco, entre os próprios
adolescentes, entre as próprias crianças ocorre essa radicalização. Um menino
daqui da Bahia se conecta on-line, numa subcultura on-line nociva, com um
menino de Vitória, no Espírito Santo, e um radicaliza o outro. E essa
radicalização é recíproca." Nesse contexto, a radicalização tem como uma
das forças motrizes a função algorítmica das redes sociais, que sugere
conteúdos voltados ao que o usuário pesquisa, sem uma regulação capaz de coibir
o acesso a temas danosos. "Esse conteúdo extremista, hoje, você não
precisa procurar por ele. Às vezes, a própria função algorítmica das
plataformas, de funcionamento da web, em geral, traz para você, traz para uma
criança de dez anos, nove, oito, um conteúdo extremista, mesmo que ela não
procure por esse conteúdo." Ademais, ela afirma que plataformas como o
Discord, por exemplo, criado para a troca de áudios e usado, em especial, pelo
público gamer, não têm função algorítmica, mas serve como um espaço seguro para
a radicalização. "É uma rede onde todas essas plataformas se conectam,
então o indivíduo está no TikTok, do TikTok ele é direcionado para uma
subcultura on-line no Discord. No Discord ele consegue um espaço seguro, porque
é mais difícil a moderação dentro do Discord pelo próprio design da plataforma,
e a partir daí ele começa um processo de autorradicalização on-line, que pode
chegar até o extremismo violento, ideologicamente motivado, em forma, por
exemplo, de atentados em ambientes escolares."
• Avanço do extremismo é fruto da terceira
onda de radicalização on-line
A
pesquisadora aponta que toda essa tendência é fruto da chamada terceira onda de
radicalização on-line. Ela afirma que a primeira onda de radicalização se deu
entre os anos 1980 e 2000, com a ascensão de blogs e fóruns ligados a
supremacistas brancos. A segunda onda se deu entre os anos 2000 e 2010, com o
surgimento das redes sociais. "Aí tudo se amplifica de uma forma muito
mais rápida. Porque você não está mais sozinho falando no blog ou num mural ou
num fórum. Você está se conectando com outras pessoas de forma global. Aqueles
conteúdos que você produz são rapidamente disseminados, sem nenhum tipo de
fronteira, de barreira física, que nós tínhamos antes nas comunicações." Em
seguida, veio a terceira onda de radicalização on-line, que, segundo Michele,
foi alimentada por uma série de novas funcionalidades trazidas pela tecnologia,
como a web descentralizada, a chamada web 3.0, e a inteligência artificial, que
ampliou o alcance do conteúdo extremista, em especial, aquele voltado para a
radicalização política.
• Por que as crianças se tornaram o
principal alvo?
Michele
explica que as crianças e os adolescentes são a parcela da sociedade mais
vulnerável à radicalização. Isso porque eles ainda estão em fase de formação da
própria personalidade e carecem de conhecimento sobre fatos históricos
relevantes, como a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e outros genocídios e
eventos violentos ocorridos ao longo da história. "Então elas são como um
livro em branco, onde quem chega consegue escrever e moldar aquela criança da
forma que bem entender. Além disso, a gente tem mudanças na própria sociedade
que foram ocorrendo e que, obviamente, mudaram também o jeito da criança viver
hoje." A pesquisadora acrescenta que a falta de contato e de atividades
fora do ambiente virtual também tem um papel nesse processo. Ela destaca que há
30 anos as crianças não tinham acesso a tantos elementos eletrônicos, e as
brincadeiras, as gincanas e outra atividades eram feitas nas ruas. Em
contraponto, hoje a principal atividade das crianças é a Internet. "Então,
o que acontece com isso? Seu escopo social, de sociabilidade, o contato social
que é necessário para a criança se desenvolver e conhecer outras pessoas,
também foi restrito a relações parassociais, ou seja, só pela Internet. Isso,
claro, traz consequências não apenas no âmbito do extremismo e da
radicalização, mas também da saúde mental e em diversas outras esferas."
Diante
disso, queixas legítimas normais dessa fase da vida — como o bullying, a
sensação de não se sentir pertencente dentro de seu grupo e a dificuldade para
conseguir namorar — passam a ser extravasadas nas redes e acabam servindo como
adubo para a radicalização. "Às vezes, eles têm ali queixas legítimas. Às
vezes, aquela criança está sofrendo algum tipo de preconceito, algum tipo de
violência. Às vezes, ela não consegue se relacionar. Então ela fica mais
vulnerável a outros indivíduos maliciosos que chegam para poder trazer novas
ideias extremistas para aquela pessoa e falar para ela: 'Olha, mas isso é culpa
desse tal grupo', ou 'Isso é culpa dos judeus', ou 'Isso é culpa de um suposto
grupo globalista'", afirma a pesquisadora. Essa aproximação é alimentada
pela sensação de acolhimento que o contato com subculturas on-line traz, como
aponta à Sputnik Brasil a pesquisadora Cleo Garcia, mestranda em educação pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduada em direito pela
Universidade Anhanguera São Paulo, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Educação Moral (Gepem) da Unicamp e autora, junto com a pesquisadora Telma
Vinha, da pesquisa "Ataques de violência extrema em escolas no
Brasil". "Nós temos que pensar que o adolescente necessita desse
acolhimento e desse pertencimento. E, realmente, [a Internet] é um local onde
as pessoas que fazem esse tipo de aliciamento são experts em trazer esse
pertencimento. Porque elas acolhem quem for, quem chegar. Então, não se olha
ali cor, raça, gênero, idade… Eles aceitam a pessoa como ela é. Então isso traz
um grau de pertencimento muito grande", afirma a pesquisadora. Ela
acrescenta que, diante do acolhimento, é criado um grau de confiança, no qual
conteúdos, principalmente teorias conspiracionistas, passam a ser aceitos sem
questionamento. "Ele [jovem] acaba entrando em muitos discursos de
conspiração que não são construídos nem provados cientificamente. Há um grande
sentimento de pertencimento naquela comunidade. 'Eles pensam como eu penso,
eles me aceitam como eu sou. Então o que eles estão dizendo é verdade.' Toma-se
por verdade notícias que não têm o mínimo embasamento. Mas, mais uma vez, essas
notícias, esses discursos de ódio, têm uma razão de ser. Elas não são apenas
divulgadas inocentemente. Tudo tem um encaixamento de como isso se deve dar e a
quem isso deve atingir."
Cida
Alves, psicóloga, doutora em educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
e membro do grupo de atenção a crianças e adolescentes Rede Não Bata, Eduque,
ressalta que, nesse contexto, as subculturas atuam como uma fraternidade
on-line, onde crianças e jovens encontram eco para as suas angústias. "Com
uma sensação de fraternidade, eles passam a apresentar um comportamento de
seita. Em alguns casos, essa violência on-line migra para o mundo físico na
forma de ataques a escolas." Ela acrescenta, ainda, que a ideia de
anonimato presente nas redes e de não responsabilização também contribui para a
radicalização. "Inclusive, uma grande teórica, que é a Hannah Arendt, vai
falar disso nos estudos dela sobre os fenômenos totalitários, ou seja, quando
você quebra as identidades grupais, seja familiar, religiosa, comunitária,
algum vínculo que te dá identidade grupal e se transforma numa massa
indefinida."
Cleo
Garcia, por sua vez, lembra que a busca por acolhimento e pela sensação de
pertencimento tem apelo, em especial, em jovens que sofrem bullying. Ela cita
como exemplo o Massacre de Columbine, ocorrido em abril de 1999, o primeiro
ataque a escola divulgado em tempo real pela mídia. "O que eu quero dizer
é que existem vários fatores que levam a esse tipo de extremismo, e não
necessariamente que os adolescentes sejam engajados nessa ideologia. Por
exemplo, vamos voltar para Columbine. Existiam aqueles casacos pretos que ainda
hoje alguns autores [de ataques a escolas] utilizam, sobretudos pretos. Mas
isso nada mais era do que uma vestimenta utilizada por adolescentes de anos
anteriores a Columbine, que eram veteranos. Então eles se chamavam de 'máfia do
sobretudo'. E eles eram excluídos, se sentiam excluídos. Era uma turma de uns
12 que usava aqueles casacos." Segundo a pesquisadora, o uso dos
sobretudos era uma forma de os estudantes se sentirem temidos. Ela afirma que
os autores do Massacre de Columbine gostariam de participar do grupo, mas
quando ele existia, eles ainda estavam no primeiro ano, enquanto os outros
membros do grupo eram veteranos. Porém, no dia do ataque, eles usaram a
vestimenta.
• O humor 'despretensioso' como primeira
isca para crianças
Uma das
principais estratégias difundidas em subculturas on-line para radicalizar
crianças e adolescentes é o uso de humor, especialmente na forma de memes
replicados nas redes sociais, que têm como principal alvo mulheres e negros. Segundo
dados do Ministério Público de São Paulo (MPSP) obtidos pela Sputnik Brasil,
nessa estratégia, extremistas assumem a posição de trolls, figuras on-line que
têm como objetivo instigar reações fortes e se alimentar da própria capacidade
de gerar confrontos e expor os outros ao ridículo. Em contraponto, os trolls se
colocam como defensores do humor sem limites, livres das amarras do
politicamente correto, como aponta a cartilha "Orientações para a defesa
de crianças e adolescentes no ambiente digital", elaborada pelo MPSP. "Assumindo
a posição de trolls, os movimentos extremistas conseguem inserir no debate que
se desenvolve na Internet mensagens de cunho racista, misógino, neonazista e de
apologia à violência, as quais, contudo, vêm camufladas com um verniz humorístico,
como se não precisassem ser levadas a sério. Assim, não apenas espalham as suas
ideologias no formato de memes como ainda criam uma armadilha para seus
opositores, que, ao reagirem com indignação, tornam-se alvo de chacota dos
trolls e os ajudarão, em última instância, a trazer para o seu lado aqueles que
querem recrutar; sobretudo, crianças e adolescentes, indivíduos especialmente
vulneráveis a essas táticas", diz a cartilha.
Professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Extremos,
grupo de estudos de política, religião e violência, Michel Gherman afirma que
essa estratégia é fortalecida pela chamada economia da atenção, amplamente
utilizada pelas big techs, como são chamadas as gigantes da tecnologia como a
Meta — dona das redes Facebook, Instagram e WhatsApp e cujas atividades são
proibidas na Rússia por serem consideradas extremistas — e a ByteDance — dona
do TikTok. Ele explica que, na economia da atenção, o lucro é gerado pela
quantidade de acessos e cliques e tem no público infanto-juvenil seu principal
gerador de conteúdo. "Hoje, por exemplo, você tem redes como TikTok, cujo
público majoritário é […] de menos de 15 anos de idade. E essas redes ganham
dinheiro […] produzindo atenção, produzindo respostas rápidas para demandas
complexas e produzindo a ideia de que tem muita gente que pensa como eu, aquilo
que alguns autores vão chamar de política do eco, que é a ideia de que eu falo
e todo mundo escuta o que eu estou dizendo porque todo mundo concorda comigo.
Todo mundo, nesse caso, são as bolhas produzidas por esse clique que eu
dou."
• O que fez do Brasil um território fértil
para extremistas?
Há anos,
Gherman se dedica a estudar as estruturas de ideologias extremistas. À
reportagem, ele explica como a onda de extremismo on-line conseguiu permear o
Brasil. Segundo ele, nessa tendência, pesou o fato de o Brasil ter um passado
colonial e escravocrata. "Se você parar para ver as pesquisas feitas sobre
o início da radicalização, o início do extremismo político, você vai perceber
que tem duas coisas que contribuem para isso. A primeira são os eventos
externos, mudanças políticas no país." Gherman afirma que o avanço de
políticas públicas de integração e ressarcimento de grupos específicos de
excluídos, vivenciado no Brasil a partir dos anos 2000, criou uma reação em
setores da sociedade que confundem a expansão de direitos com a perda de
privilégios. Ele cita como exemplo a promulgação da Emenda Constitucional nº
72, em abril de 2013, que criou um arcabouço legal para a proteção de mulheres
que trabalham como empregadas domésticas. Gherman afirma que após a promulgação
da lei, mulheres — em grande maioria negras, que trabalhavam como empregadas
domésticas, sem direitos trabalhistas, muitas vezes tendo de dormir em serviço,
sendo privadas de serem mulheres, mães de família que cuidam dos seus filhos —
passaram a ter direitos como décimo terceiro, horário de trabalho e benefícios
em lei. "Ao mesmo tempo, essa classe média remediada começa a se sentir
prejudicada porque perde o privilégio. Os prédios construídos a partir desse
momento são prédios que começam a não ter mais quartos de empregada. O que
significa que essa pequena senzala, produzida em cada casa de cada família de
classe média, começa a desaparecer." O antropólogo argumenta que isso
levou alguns setores da classe média a se radicalizar, aderindo ao extremismo
político. "Começa a ter uma reação em relação a isso. A percepção é que o
direito das mulheres que começam a poder educar suas crianças afeta o
privilégio das classes médias."
Gherman
afirma que essa reação criou um terreno fértil no Brasil para a difusão de
conteúdos extremistas, que invertiam propositadamente a lógica dos elementos ao
afirmar que os autores de políticas sociais eram os responsáveis por fomentar a
divisão. Dessa forma, aponta o especialista: o problema não era o negro, mas o
negro que resiste; o problema não era a mulher, mas a feminista; o problema não
era o judeu, mas o judeu progressista. E, aí, aponta o especialista, a segunda
contribuição vem do campo tecnológico, com a ascensão de determinadas
modalidades de jogos on-line. "Jogos que também são vinculados a essas
redes de adolescentes e crianças e que acabam produzindo uma linguagem meta
clara, uma coisa que está sublinear nas estruturas dos jogos e acaba produzindo
a noção de que aqueles jogos reproduzem na dinâmica deles a vida real",
explica o professor, destacando que, assim, crianças de até dez anos de idade
são submetidas a uma gramática extremista.
·
O vício em ódio e o fascínio pela violência
como forma de resolução de conflitos
Cida Alves
explica que o ódio e outros sentimentos extremos, como medo e raiva, geram um
componente psíquico que, em alguns aspectos, pode ser viciante. Não à toa,
esses são os principais sentimentos acionados por aqueles que promovem a
radicalização. "Existem pessoas que acabam vivendo tantos conflitos de
violência, e isso afeta até a adrenalina do corpo, que em ambientes de mais
calma e tranquilidade eles se sentem desprovidos de vitalidade", argumenta
a psicóloga. Ela afirma que, na grande maioria das vezes, esse ódio é calcado
na exaltação da cultura masculinista, que tem a mulher como principal
"inimiga", enquanto exalta a construção de uma subjetividade
masculina que usa a violência como forma de resolução de conflitos. Ela cita
como principais grupos masculinistas os incels (aglutinação do termo
"celibatários involuntários" em inglês) e os red pills (movimento que
considera o feminismo uma conspiração para subjugar os homens). "Os
meninos tendem a ser capturados por esses grupos, inicialmente pela pauta de
uma rejeição, de uma dificuldade com o feminino, com a sexualidade e o
feminino. A partir do ingresso desses conteúdos, vêm outros que vão se
incrementando, que são os conteúdos racistas, então vem a ideologia
supremacista, muito implementada." Ela afirma que nesses grupos há uma
ampla gama de teorias conspiratórias, que apresentam pautas com o combate ao
machismo e ao racismo como tramas criadas para subverter a sociedade. "Existe,
por exemplo, contra o feminino uma ideia que associa a supremacia branca, que é
de que os povos que são de origem africana e de religiões não cristãs, que são
os islâmicos, que eles têm mais mulheres, eles têm mais filhos e,
proporcionalmente, eles vão dominar o mundo porque, em termos numéricos, são
mais numerosos."
Cida Alves
cita como exemplo o ataque à escola de Realengo, no Rio de Janeiro, ocorrido em
abril de 2011, um dos casos que ela estudou. "O próprio atentado de
Realengo é muito simbólico nesse aspecto. Se você pega as vítimas, né, as
meninas, ele atirava em partes letais, principalmente na cabeça, para matar, e
os meninos para ferir."
• O que explica o supremacismo pardo?
O termo
"supremacismo pardo" é utilizado de forma pejorativa em discussões
quando vem à tona episódios nos quais jovens pardos promovem ataques calcados
na ideologia nazista pela qual, paradoxalmente, eles mesmos seriam as vítimas.
À
reportagem, Michele explica que essa tendência reflete o que é classificado
como "extremismo violento composto", também chamado por pesquisadores
do tema de "extremismo de buffet de salada". Nessa tendência,
ideologias extremistas, como o nazismo, atuam como pano de fundo para ecoar
queixas legítimas que nada têm a ver com a ideologia, mas que contribuem para a
radicalização. "Dentro do extremismo pós-organizacional, o que a gente tem
também? A gente tem um extremismo violento composto. O que seria isso? Que é
indefinido. Muitas vezes, aquele jovem que se radicalizou e cometeu um atentado
violento, ele não se radicalizou apenas numa ideologia extremista, ou apenas no
neonazismo ou apenas no incelismo [termo usado para designar os incels],
não", explica a pesquisadora. "Ele monta um combo. Então, de cada
ideologia extremista, ele tira um pouco do que responde às suas queixas e
depois pega de uma outra ideologia extremista o que responde a algumas outras
queixas dele. E forma o seu próprio prato, né, o seu próprio combo de
ideologias extremistas", complementa.
Ela
acrescenta como exemplo o ataque ao Colégio Estadual Helena Kolody, em Cambé,
no Paraná, ocorrido em 19 de junho de 2023, quando um ex-aluno de 21 anos
invadiu o colégio e disparou contra estudantes, causando a morte de dois
adolescentes. Na ocasião, investigações apontaram que o jovem teve contato com
conteúdo extremista on-line. "O indivíduo [autor do ataque] claramente, a
partir das evidências empíricas que a gente colheu, se radicalizou tanto no
incelismo quanto no aceleracionismo, [na intenção de] causar um caos, produzir
um atentado terrorista em nome de uma suposta supremacia para conseguir
promover uma guerra racial. Mas ele também se radicalizou no extremismo
violento islâmico, as pegadas digitais dele indicaram [isso]. Manifestos ou
vídeos que ele gravou indicaram que ele também teve contato com o conteúdo do
extremismo violento islâmico, especificamente ligado ao Estado Islâmico [Daesh,
organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países]. Então,
nesse caso específico do atentado em Cambé, nós tivemos aí um exemplo nítido,
cristalino, de extremismo violento composto."
• Como impedir a radicalização?
Questionados
sobre o que poderia ser feito para impedir a radicalização de crianças e
jovens, os quatro entrevistados apontam que uma das principais medidas seria a
regulação das redes, debate em pauta no Brasil e no mundo. Cida Alves afirma
considerar a regulação urgente. "As redes sociais não têm nenhuma forma de
regulação e, às vezes, até a própria circulação das informações, os cidadãos
mesmo, por exemplo, no WhatsApp, em outras redes, que às vezes querem denunciar
uma situação, expõem a imagem da vítima. Eles não percebem que, ao denunciar,
eles aumentam a circulação daquela imagem, o que aumenta o ibope daquele autor
de violência. Então a gente precisa urgentemente fazer essa regulamentação. A
gente tem que investir todas as nossas fichas nesse momento, porque existem
etapas do enfrentamento." A psicóloga afirma que os pais também podem
auxiliar no combate à radicalização promovendo o que ela chama de
"monitoramento positivo". "A gente sabe que a criança precisa
ter o seu espaço, a sua intimidade, mas as famílias precisam fazer um acordo
com os filhos, [dizer]: 'Olha, eu vou precisar monitorar os conteúdos que você
está tendo acesso.' Crianças pequenas, adolescentes, os pais precisam
monitorar. Isso faz parte do cuidado mesmo. Isso tem que ser dito, tem que ser
acordado." Ela acrescenta que é preciso investir na desconstrução da
cultura armamentista e em ações de conscientização. "Isso tem que entrar
em todos os espaços. Então eu acho que é muito importante, em especial depois
da pandemia, quando aumentaram os casos de ansiedade, as tentativas de
suicídio. Nós estamos vivendo num ambiente muito hostil. Eu acho que a gente
precisa fazer um amplo trabalho de retomada da convivência entre as pessoas,
práticas de esporte, de preferência práticas de lazer na natureza. Se a gente
não fizer essa virada de chave, nós estaremos criando um clima muito adoecedor
para os nossos jovens", alerta a psicóloga.
Michele
Prado, por sua vez, concorda com a necessidade da regulação das redes sociais,
e destaca a importância de combater a tendência de desumanização daqueles que
pensam diferente, componente também presente na radicalização. "Um dos
principais marcadores dentro de grupos extremistas e ecossistemas extremistas é
justamente a desumanização do outro. Quando você coloca intragrupo versus
extragrupo. Então aquele outro é visto como um inimigo a ser aniquilado, e a
misantropia também é muito forte dentro desses ecossistemas extremistas",
explica a pesquisadora. "A desumanização que vem, por exemplo, a partir de
memes, o discurso de desumanização da sátira, as características que
transformam aquela pessoa humana, animaliza aquelas características. Por
exemplo, chama de verme, de rato, de barata, de inseto. Tudo isso são
marcadores muito importantes dentro de processos de radicalização. Por sinal,
serve até como um alerta para pais, professores. Quando escutarem, lerem
discursos desse tipo vindo de adolescentes, esse é um sinal importante de
radicalização do extremismo violento."
·
O que dizem as big techs?
A Sputnik
Brasil procurou a Meta, a ByteDance e a Discord para saber que medidas as
empresas tomam para coibir a replicação de conteúdo extremista em suas
plataformas. A Meta afirmou à reportagem que suas políticas "proíbem
conteúdo que incite ou promova violência, e isso inclui contas ou conteúdos
elogiando atos violentos e seus autores". "Além disso, a empresa não
permite a presença de pessoas ou organizações que anunciem uma missão violenta
ou estejam envolvidas em atos de violência nas plataformas da Meta. Isso inclui
atividade terrorista, atos organizados de ódio, assassinato em massa (incluindo
tentativas) ou chacinas, tráfico humano e violência organizada ou atividade
criminosa. A Meta remove, ainda, conteúdo que expresse apoio ou exalte grupos,
líderes ou pessoas envolvidas nessas atividades, e também não tolera discurso
de ódio no Facebook e no Instagram e remove qualquer conteúdo que viole nossos
Padrões da Comunidade." Quanto ao aplicativo de troca de mensagens
WhatsApp, a Meta afirmou que "como informado nos Termos de Serviço e na
Política de Privacidade do aplicativo, o WhatsApp não permite o uso do seu
serviço para fins ilícitos ou que instigue ou encoraje condutas que sejam
ilícitas ou inadequadas". "Nos casos de violação destes termos, o
WhatsApp toma medidas em relação às contas como desativá-las ou suspendê-las. O
aplicativo encoraja que as pessoas reportem condutas inapropriadas diretamente
nas conversas, por meio da opção 'denunciar' disponível no menu do aplicativo
(menu > mais > denunciar). Os usuários também podem enviar denúncias para
o e-mail support@whatsapp.com, detalhando o ocorrido com o máximo de
informações possível e até anexando uma captura de tela." Procuradas, a
Discord e a ByteDance, dona do TikTok, não enviaram retorno até a publicação da
reportagem.
• Soberania digital, a próxima fronteira
contra o radicalismo
Michel
Gherman aponta uma necessidade urgente de o Brasil passar pelo que ele chama de
letramento digital, no qual crianças e adultos passam a aprender como usar as
redes sociais. "A gente está passando por uma fase agora de construção de
soberania digital. Isso começa com letramento e passa por uma estrutura legal
que a gente ainda não tem. É uma comparação que a gente faz com as outras
formas de soberania." Ele afirma que, assim como ocorre com a soberania
territorial, aérea e marítima, que impedem a atuação de grupos em território
brasileiro sem o conhecimento do Estado, é necessário construir também a
soberania digital. "A gente não tem ainda essa noção de fronteira digital.
As instituições, a partir de uma perspectiva de mundo globalizado, de economia
globalizada, funcionam dentro do nosso país sem que elas tenham compromisso, em
termos de produção de conteúdo, com as leis do nosso país. Se a gente não tiver
uma noção de que as redes sociais são parte do território brasileiro e precisam
funcionar a partir da soberania brasileira, a gente perdeu a guerra contra o
extremismo." Gherman acrescenta que dialogar com aqueles que foram
radicalizados é necessário para reverter o processo de radicalização. "É
fundamental que a gente adote as estratégias feitas fora do Brasil e traga para
cá. As estratégias para que a gente tire dessas seitas radicalizadas pessoas
que estão por lá, porque em algum sentido receberam respostas para dramas e
traumas que elas têm na família, dramas e traumas que elas têm na vida. É preciso
começar um processo de desradicalização no Brasil, sem sombra de dúvida."
Ele
aponta, ainda, as resoluções do grupo de trabalho criado pelo Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em fevereiro de 2023, para a
apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo, o
qual integrou. Dentre as estratégias traçadas pelo grupo de trabalho para
enfrentar o discurso de ódio e o extremismo on-line, está a capacitação das
escolas para lidar com o tema. Isso porque as escolas, atualmente, utilizam
"conteúdos de 20 anos atrás para crianças que estão vivendo 20 anos à
frente". "A gente desenvolveu uma relação com o Ministério da
Educação, onde se produziu uma espécie de estratégia de formação de professores
e de alunos para lidar com esses temas", destaca, acrescentando que, com o
Ministério da Justiça, o grupo traçou um plano de punição aos que usam as redes
sociais para promover a radicalização ou obter lucro com ela. "Esse
controle vai ser feito a partir da aprovação de leis que intimidem uma
liberdade supostamente incontrolável dessas redes sociais. As redes sociais não
funcionam de forma livre, elas funcionam a partir de uma lógica de mercado e
lucro. E essa lógica de mercado e lucro é o que condiciona as formas que elas
têm de funcionar. O que a gente está tentando produzir a partir do grupo de
trabalho são leis que impeçam que essa suposta liberdade continue sem controle
e vinculando essas leis à lei do país."
• Educação como porta de saída da
radicalização
Já Cleo
Garcia destaca que a educação midiática pode ser uma das estratégias para
reverter a tendência de radicalização de jovens no mundo virtual e impedir que
ela escale para a violência no mundo físico. "A educação midiática é
necessária, muito necessária. Eu falo também em educação digital. A midiática,
nós estamos aqui falando sobre os conteúdos que são acessados. E não somente
para os adolescentes, com certeza, mas para adultos. E a educação digital é
como nós fazemos esse acesso, como eu chego a esses conteúdos." Segundo
Garcia, para esse aprendizado produzir resultados efetivos, ele não deve
abranger apenas crianças e adolescentes. "Nós, adultos, também fomos
jogados para esse mundo virtual sem termos conhecimento, sem termos uma
preparação de como utilizá-lo. Então nós só podemos orientar esses adolescentes
se também tivermos uma preparação e uma educação", explica a psicóloga.
Além
dessas mudanças, por último, a especialista acredita na necessidade de uma
transformação um pouco mais subjetiva, que é o resgate de valores perdidos,
como a empatia e o respeito ao próximo. "Nós temos hoje no Brasil, acho
que não só no Brasil, acho que no mundo todo, um tribunal virtual, né? Todos
querem apontar o dedo e mostrar que a pessoa está errada, julgando, dizendo o
que é melhor, e muitas vezes esquecem de olhar para si mesmos. Então acredito
que a regulação talvez permita que as pessoas possam fazer essa reflexão. Mas,
antes de tudo, é necessária a educação", afirma a pesquisadora. "Educação
transforma mais do que leis. Eu acredito que as leis são necessárias, sim,
porque nós precisamos delas para viver em sociedade, regularmos o nosso
convívio, mas a educação faz com que nós tenhamos essa criticidade e essa
consciência de que é necessário compreender as leis, e não apenas aplicar como
uma punição se não há transformação. As leis cerceiam, regulam, mas não
transformam. O que transforma realmente é a educação, é a conscientização, é a
responsabilização", finaliza.
Fonte:
Sputnik Brasil
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