Sem fogos,
só tiro: moradores do Jacarezinho denunciam violência policial desde o ano novo
O
Jacarezinho vem sofrendo operações policiais diárias desde às 21h do dia 31 de
dezembro de 2023. Enquanto parte dos cariocas virava o ano embasbacados com
shows de luzes e fogos, os quase 38 mil moradores (estimativa do Instituto
Pereira Passos) da comunidade da Zona Norte da capital fluminense tiveram que
se entocar no interior de seus lares em meio à atuação do caveirão e dos
militares do 3° Batalhão e do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Rio de
Janeiro (BCChq).
Relatos
feitos à Agência Pública durante as últimas semanas dão conta que o tiroteio
não cessou nem à meia noite de réveillon. Muitos residentes do Jacarezinho
tiveram de passar a virada escondidos em suas casas, se protegendo em quartos
com paredes grossas, tentando distinguir o som de tiros dos fogos de bairros
vizinhos.
“Eles
destruíram as lonas que a gente botou na rua para comemorar o ano novo”, conta
Jéssica*, uma senhora na faixa dos 60 anos, que reside sozinha e teme ser alvo
de uma bala perdida.
Até o
fechamento desta reportagem, a favela teve 25 dias consecutivos com a mesma
rotina: com apoio dos carros blindados apelidados de caveirão, os homens do
Choque invadem o bairro por suas principais entradas e entram em conflitos com
traficantes do Comando Vermelho (a facção local). Segundo os depoimentos, os
militares estariam entrando em casas e lajes sem autorização, atirando em
geradores de energia, xingando moradores e danificando ruas, residências e a
infraestrutura geral do local, afetando o cotidiano e o funcionamento do centro
comercial do bairro. Em alguns casos, outros batalhões, como o Bope, atuam para
auxiliar o 3° Batalhão e do Choque.
A Pública
foi ao Jacarezinho em duas datas: nos dias 17 e 23 de janeiro. Sob o sol
escaldante da primeira incursão, vimos lojas fechadas, ruas esvaziadas e pouca
movimentação do tráfico de drogas; sob a chuva torrencial da segunda visita,
presenciamos militares subindo e descendo o morro em formação, caveirões
parados em posições estratégicas e traficantes receosos com a chance de estarem
diante de um delator ou policial à paisana. Para a realização da reportagem,
tivemos que modificar o nome de quase todos os entrevistados, uma vez que as
operações seguem ocorrendo e o medo de retaliação — de ambos os lados — é
constante. Jéssica nos relatou, inclusive, que os policiais estariam
monitorando os grupos de WhatsApp do bairro, mirando quem se arrisque a fazer
uma denúncia “contundente demais”.
A
reportagem questionou a Polícia Militar: sobre o motivo das operações e se eles
confirmariam a atuação no território; quanto à frequência com a qual a
corporação atua no bairro; qual posicionamento perante as acusações de cobrança
de R$ 50 mil em propina, invasões a lares, falas agressivas e o uso de
policiais do 3°BPM como guia da comunidade. Numa outra mensagem, questionamos
sobre um vídeo que mostra policiais poluindo os rios da favela com entulho das
barricadas desfeitas.
A
assessoria da Polícia respondeu que “atua diuturnamente na região do
Jacarezinho, por meio do Projeto Cidade Integrada, e que tem como objetivo, a
retomada dos territórios de comunidades dominadas pelo tráfico e pela milícia”.
A corporação também informou uma série de números relativos a apreensões de
armas, drogas, veículos e aparelhos celulares, como resultado da operação.
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Por que isso importa?
• A reportagem mostra como as operações
policiais, que começaram no final de 2023, têm impactado a rotina dos moradores
do Jacarezinho.
• As denúncias de violência policial não
estariam sendo acompanhadas por organizações de direitos humanos devido a falta
de segurança no local e moradores se dizem desamparados em meio aos conflitos
entre polícia e tráfico.
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Sangue, luz apagada e fé abalada
Para os
residentes do Jacarezinho, o dia 16 de janeiro foi talvez o mais violento até
agora. Na área conhecida como Azul — a parte mais alta e antiga da favela —,uma
troca de tiros terminou com dois mortos, três feridos e um preso.
Maria* foi
uma das pessoas que tiveram sorte de sobreviver. A costureira saía do trabalho
quando foi alvejada na perna, de frente a um sacolão. Segundo seu genro,
Pedro*, ela foi socorrida pelos funcionários. “O rapaz do sacolão gritou: ‘É
moradora! É moradora!’ Daí na hora que viu que ela foi baleada, um policial
ensinou o rapaz a fazer um torniquete”, explica o genro.
A Pública
esteve no local e conversou com moradores e o gerente do tráfico naquela região
do morro para entender o que ocorreu: segundo os relatos, os policiais vieram
da parte baixa da rua, na direção oposta à de Maria, que estava de costas para
eles e alheia a presença dos agentes. O confronto foi rápido, contaram. “Eles
estavam de tróia. Vieram de surpresa. E a gente quer saber de que casa eles
vieram”, disse à reportagem o gerente das bocas, um homenzarrão que descansava
sobre uma moto na tarde do dia 17 de janeiro.
Maria
conseguiu atendimento em meia hora, segundo o genro. Mesmo com o torniquete, a
costureira perdeu tanto sangue que chegou pálida “como um defunto” no hospital,
relatou. Ela acabou ficando sedada em estágio de emergência até o dia 23 de
janeiro, quando acordou bastante enfraquecida, balbuciando poucas palavras em
seus escassos minutos de consciência.
Na mesma
ocasião morreram Matheus Soares de Oliveira, de 26 anos, e Diogo Luiz Bucone
Canoza. Já Rodrigo Barbosa Clemente, 23, foi preso. Os três foram expostos pela
polícia como criminosos. Já o funcionário do Sacolão que socorreu Maria foi
atingido por estilhaços de projétil e segue se recuperando em casa. Nenhum
familiar ou amigos das vítimas aceitou conversar com a reportagem por medo de
retaliação por parte dos policiais. O próprio genro de Maria reconheceu que
está se pondo em risco ao falar “com vocês da imprensa”.
As vítimas
da violência policial não se reduzem, porém, apenas às vítimas humanas. Segundo
as denúncias, um cachorro também morreu, no dia 5 de janeiro, quando um
blindado da polícia teria atropelado o animal criado pela comunidade, que
dormia no meio de uma rua.
Além
disso, outros tipos de violações que a reportagem ouviu são as entradas ilegais
a casas e lajes de moradores. Luciana*, por exemplo, relata que sua casa teria
sido arrombada por policiais por volta das 10h do dia 23 de janeiro. O filho
dela, um jovem de 17 anos matriculado na rede particular de ensino, estava no
segundo andar quando desceu para encontrar o portão escancarado e com as
trincas frouxas, como se tivesse sido atingido por chutes. A mãe, que não
estava no local pela manhã, foi surpreendida pela pergunta quando voltou para
casa: “mãe, foi você quem deixou o portão assim?”. A resposta veio da boca de
um vizinho, que relatou que “os homens [policiais] entraram na marra”,
vasculhando o interior do térreo e, que, por estar em reforma, não teriam
encontrado nada além de material de construção.
Para além
do susto da invasão, Luciana teve também que lidar com a falta de energia
elétrica. “Fiquei do dia 10 ao dia 22 sem luz.” Ela conta que a geladeira não
sustentou a comida por mais de um dia, ainda mais com o Rio de Janeiro refém de
ondas de calor que fizeram a sensação térmica passar de 45ºC. Manicure
profissional, Luciana viu-se impossibilitada de receber as clientes em sua
casa, o que dificultou ter dinheiro para repor a comida que estragou.
Restou-lhe apenas o atendimento da clientela de fora do Jacarezinho e as ajudas
de sua mãe, uma pastora pentecostal que não abre a congregação desde o dia 31
de dezembro de 2023, relegando os cultos às ligações por vídeo. “São umas 20
pessoas por ligação”, explica a pastora, enquanto mostra os buracos de bala
acumulados em sua congregação.
As
sucessivas incursões da Polícia Militar do Rio de Janeiro no Jacarezinho estão
abalando até mesmo a fé dos moradores. Pastora há mais de 30 anos, Joyce*
relata como os militares tratam os moradores: eles estariam acusando, sem
provas, garotos negros de serem bandidos e fariam provocações a parentes de
egressos do sistema penal.
A
comunidade, segundo ela, está desamparada: “Não temos uma liderança forte. Não
podemos contar com o Estado, nem com o vizinho e nem com a associação [de
moradores]. A polícia estava impedindo a Light [empresa que fornece energia
elétrica] de arrumar os transformadores onde eles atiraram. Era para alguém
bater de frente e dizer: ‘nós temos direito de ter luz!’”, diz.
A falta de
energia vem sendo um problema generalizado para a maior parte das regiões do
Jacarezinho. A reportagem teve acesso, através dos moradores, a inúmeros
protocolos da Light que suplicavam pela resolução da falta de luz recorrente.
Isso, porém, pode ter uma origem bem específica.
Segundo
moradores, além dos tiroteios atingirem a fiação local acidentalmente,
policiais teriam atirado de propósito nos transformadores para impor a
escuridão. A Pública encontrou um gerador com marcas de tiro a 300 metros da
entrada da rua Amaro Rangel. Procurada, a assessoria da Light não nos retornou
sobre quantas vezes a comunidade do Jacarezinho ficou sem luz desde o dia 31 e
quantos transformadores foram trocados devido a trocas de tiro.
O
problema, porém, não se limita à falta de luz. Com as operações diárias, poucos
podem sair de casa para o trabalho e vice-versa com tranquilidade, seja qual
for o meio de transporte. Até quem só passa por lá é afetado. A favela do
Jacarezinho tem uma estação de trem que, desde o dia 1º de janeiro, teve de
suspender o serviço algumas vezes. A assessoria da Supervia não respondeu aos
questionamentos da reportagem sobre como as operações afetaram o funcionamento
e os impactos desde o fim do ano passado.
• Comércio no vermelho, tiro e desespero
Em meio à
chuva intensa do dia 23 de janeiro, a Pública presenciou um caveirão de plantão
na frente da rua XV de Agosto, considerada pelos moradores como uma das que
mais vêm sofrendo com essas operações. Quase todo dia os tiroteios passam por
ali, contam.
A XV de
Agosto é um dos pólos comerciais do Jacarezinho e serve para compreender como
as operações vêm afetando os lojistas. Em conversa com a reportagem, os relatos
são de total desespero com as dívidas: a previsão de diversos comerciantes para
este primeiro mês do ano é de fechar as contas no vermelho. Muitos pagam
aluguéis que variam de R$ 600 a R$ 1,3 mil por mês. Em alguns casos, as vendas
mal pagam o aluguel. Lojistas se vêem forçados a buscar fontes de renda
alternativas, aumentando ainda mais o corre diário e o cansaço físico e mental.
O gerente
de uma farmácia da rua nos informou que a loja, que tem 13 funcionários, já
conta com um prejuízo de R$ 30 mil. “Nem entrega a gente tá fazendo. Como que
eu vou mandar um motoboy sair com as ruas assim, cheias de tiro?”, explica.
Ele, assim como a maioria dos lojistas entrevistados, passou pelo menos três
dias do mês sem poder abrir o estabelecimento por consequência direta dos
tiroteios. Além disso, como quase todos os negócios da região, o horário de
funcionamento da farmácia passou das 9h às 21h para 11h às 17h — quando não
fecha antes.
“Se eu
tiver condições de mudar a loja para fora da favela, eu mudo”, assume o dono de
uma loja de festas e presentes. Sem clima para comemorações, explica ele, fica
difícil alguém querer comprar. Além de registrar a queda de mais de 60% dos
lucros, na segunda-feira, dia 22 de janeiro, durante uma intensa troca de
tiros, sete pessoas se refugiaram no interior da loja, o que atraiu três
policiais para a frente do estabelecimento, numa prática que os moradores
apelidam “fazer de escudo”. Segundo as denúncias, ao usarem o interior de uma
casa ou estabelecimento como base para o tiroteio, os policiais fariam os
moradores e funcionários de reféns.
Na mesma
rua XV de Agosto, onde tiroteios ocorrem diariamente, há também alguns pontos
de mototáxi onde muitas vezes os policiais descansam. No dia 21, na
segunda-feira, três agentes teriam pego uma das pranchetas de um ponto local e
deixaram um desaforo para os traficantes do Comando Vermelho: NÃO BANCA NADA
SEUS C****/ CHOQUE VAI ENFIAR A R*** EM VCS/ C.V = C* VERMELHO…/ CVRL: C*
VERMELHO RECHEADO DE LINGUIÇA. A imagem circulou nas redes dos moradores e o
fato foi confirmado por um mototaxista à reportagem.
• “Quer dinheiro, pede pro Governador”,
diz traficante sobre denúncia envolvendo policiais
Os 25 dias
consecutivos de operações são apontados pelos moradores como algo atípico, que
não ocorria desde a morte em confronto do inspetor da Polícia Civil Bruno
Guimarães Buhler, apelidado de Xingu, em 2017. Porém, se há sete anos os
conflitos se iniciaram para vingar a morte de um colega policial, agora, em
2024, a motivação seria outra.
O gerente
do tráfico na região disse à Pública que, no final de dezembro de 2024, por
volta do dia 29, os policiais do Batalhão de Choque teriam pedido R$ 50 mil
para “um churrasco de fim de ano”, ou seja, uma propina para divertimento
pessoal dos militares. O núcleo do Comando Vermelho no Jacarezinho é conhecido
no Rio de Janeiro pela recusa em pagar o “arrego” — como são apelidados os
pedidos de propinas —, e dessa vez não foi diferente. No dia 30 de dezembro, um
caveirão teria ficado parado na entrada da Amaro Rangel à espera da propina,
como um ultimato. Sem resposta, teriam começado as operações do dia 31.
Quando
questionado quanto a se iriam pagar essa propina eventualmente, o gerente nos
redarguiu revoltado: “quem tem que pagar eles é o governador. A gente pagar a
polícia? Eles que vão pedir pro governador!” Ele explicou que, desde o dia 31,
os militares teriam avisado que vão continuar “azucrinando” até eles pagarem.
A Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro foi questionada sobre a acusação de
extorsão. A resposta foi: “a Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de
Polícia Militar informa que, nesta terça-feira (16/1), equipes do Comando de
Operações Especiais (COE) atuaram na Comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte
da Cidade do Rio. Durante as ações, o Batalhão de Ações com Cães (BAC)
conseguiu apreender 402 tiras de Maconha. A apreensão gerou um prejuízo de
aproximadamente 7.500 reais ao tráfico de drogas da região. A operação já foi
encerrada”.
• Silêncio dos moradores aumenta vazio na
imprensa e das autoridades
Até o
fechamento deste texto, poucas instituições de direitos humanos haviam pisado
no interior do Jacarezinho, seja por receio dos confrontos ou por falta de
ativação por parte da própria comunidade. Desamparados, os moradores do
Jacarezinho acabam ficando também à mercê do crime organizado. Jéssica*
desabafou que os traficantes da região desestimularam manifestações públicas
contra as operações, reforçando que “a guerra seria deles e que não era pra
morador se meter”. O resultado são poucos relatos públicos — seja em
reportagens ou relatos pessoais — sobre um dos piores inícios de ano na favela.
Segundo
dados do Fogo Cruzado, Instituto que usa tecnologia para produzir e divulgar
dados abertos e colaborativos sobre violência armada, nos 16 primeiros dias
deste ano, o Jacarezinho teve a mesma quantidade de tiroteios que a soma de
registros dos bairros que ocupam a segunda, terceira e quarta posição no
ranking de mais afetados por violência armada respectivamente. Com 15 tiroteios
mapeados, 9 ocorreram durante ações e/ou operações policiais, com oito
baleados, dois mortos e seis feridos.
A
Ouvidoria da Defensoria Pública respondeu que está acompanhando a situação a
partir de denúncias dos moradores e as encaminhado para o Plantão do Ministério
Público Estadual, pois são eles que fazem o controle das polícias. “Além de
cobrar a atuação do MP por meio de encaminhamento via plantão, estamos também
com outros atores (comissão DH OAB, Comissão DH Alerj, Fórum popular, Fogo
Cruzado) organizando ações junto ao MPF por meio da ADPF 635 e acolhimento para
as famílias impactadas pela violência que segue acontecendo há 22 dias”, disse
a ouvidora da Defensoria Fabiana Silva. A assessoria do Ministério Público do
Rio de Janeiro não respondeu à Pública.
A Comissão
de Direitos Humanos da OAB disse à reportagem que não foi acionada por
moradores ou pela associação local.
Já a
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro esteve
presente no Jacarezinho em algumas ocasiões via seu membro João Luis Silva, que
disse que o que viu no local é um sinal claro do fracasso da política de
integração proposta pelo programa Cidade Integrada. “Como um projeto
implementado há mais de dois anos que, dentre outras coisas, prometia a
ocupação do território por parte da polícia não impediu que armas, drogas e
munições chegassem à comunidade? Os frequentes confrontos que estamos
acompanhando hoje são resultado das promessas não cumpridas. Isso é mais
desintegrar do que integrar”, pontuou João.
• Traumas não esquecidos e programa
Inoperantes
Berço da
maior chacina da história do Rio de Janeiro, o Jacarezinho ainda vive a tensão
do dia 6 de maio de 2021. Naquela manhã, 294 policiais civis, em suporte a uma
operação da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) programada
com anuência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ),
entraram com tudo na comunidade: portando fuzis, pistolas, helicóptero
transportando atirador profissional (conhecido por Caveirão Voador), viaturas e
blindados.
Já no
começo da operação, um policial foi baleado na cabeça. Depois disso, a polícia
saiu da favela após 27 mortos. Das vítimas, 23 são homens negros (pretos e
pardos). A morte dos 27 aconteceu em uma ação que envolveu mais de 3,7% do
efetivo da Polícia Civil de todo estado fluminense. Atualmente, apenas uma
morte segue sendo investigada pelo Ministério Público: a de Omar Pereira da
Silva, que tem indícios de fraude processual e falsidade ideológica, ou seja,
de que Omar foi executado. Todas as outras, com exceção da morte do policial,
foram arquivadas, segundo apurou a reportagem.
A
comunidade do Jacarezinho se torna a cada ano uma das que mais sofre
violências. Com um total de 348 operações que terminaram em 216 mortes entre
2007 e 2023, segundo dados levantados pelo Grupo de Estudos de Novos
Ilegalismos (GENI/UFF), a favela ocupa o segundo lugar na relação mortos por
operação, abaixo apenas de Vicente de Carvalho.
Para a
diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado, Maria Isabel
Couto, a localização e a formação histórica do Jacarezinho contribuem para que
seja uma comunidade tão visada pela polícia. “A favela fica em uma parte da
Zona Norte bem próxima ao Centro da cidade. É, por isso, uma região
movimentada, que abrigou fábricas, e segue farta de comércio e opções de
transporte — há uma estação de trem dentro e uma estação de metrô bem próxima.
O Jacarezinho tornou-se, assim, uma favela populosa. Com uma posição
privilegiada para distribuição e venda de drogas e armas. O Comando Vermelho se
consolidou na região, e líderes do tráfico de drogas local, a partir da década
de 1990, ganharam importância e passaram a fazer parte da cúpula da facção”,
conta.
O programa
Cidade Integrada foi concebido diretamente nesse contexto, alguns dias depois
da chacina, quando o governador Cláudio Castro anunciou ocupações de favelas
com o objetivo de integrar o “Estado” nesses locais. Pouco mais de 7 meses
depois, ainda sob a sombra da chacina de 6 de maio de 2021 e das antigas
Unidades de Polícias Pacificadoras, as UPPs, no dia 22 de janeiro de 2022,
nasceu o Cidade Integrada. Originalmente o Pavão-Pavãozinho teria sido a favela
inicial do programa junto com a Muzema, mas o Jacarezinho acabou sendo
escolhido.
“O Cidade
Integrada não é um plano de segurança pública. Ele é um projeto, como tanto
outros que existiram em gestões passadas, como as UPPs, o Grupamento de
Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) e os Destacamentos de Policiamento
Ostensivo (DPO). Com um agravante, os outros projetos (ou mesmo programas
citados) apresentavam objetivos mais claros e previsão de investimentos para
alcançá-los. O Cidade Integrada, por sua vez, ao menos publicamente, se resume
a um conjunto de intenções anunciado em coletiva para imprensa. A falta de
planejamento ajuda a explicar a falta de resultados — ou pior, os resultados
negativos”, explica Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do
Instituto Fogo Cruzado.
Dois anos
depois, o programa segue com promessas em diversos âmbitos do programa, tais
como obras de mobilidade, habitação, construção e reforma de equipamentos
públicos, melhoria da gestão de resíduos sólidos, etc. Segundo Daniel Hirata,
coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal
Fluminense (Geni-UFF), seria importante que, da mesma forma que o programa foi
anunciado com pompa em ano eleitoral, houvesse uma prestação de contas digna
sobre o que acontece nos meandros do Cidade Integrada.
“Depois do
período eleitoral, nós não tivemos a mesma publicização das informações acerca
do que ocorre nas áreas iniciais”, aponta Hirata, explicando que há diferenças,
por exemplo, na atuação das forças policiais na Muzema e no Jacarezinho, uma
vez que a primeira está sob controle territorial de milícias e no Jacarezinho o
tráfico de drogas.
“Em nome
do enfrentamento da criminalidade organizada, são as vidas das pessoas que
ficam ali à disposição. Ao passo que se a gente tivesse ações que fossem
realmente inteligentes, de desbaratamento de redes criminais, atuação efetiva
com relação aos vínculos desses grupos com as suas atividades econômicas, etc.
Isso seria muito mais efetivo e teria um impacto na vida dos moradores muito
menor”.
Em 2022,
organizações que integram o Observatório do Cidade Integrada realizaram uma
pesquisa que entrevistou moradores para avaliarem o programa: seis em cada dez
entrevistados pediram o seu fim.
Fonte: Por
Matheus Moura e Leonardo Coelho, da Agencia Pública
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