Por que são dez anos e não dois de guerra
na Ucrânia
Em 24 de fevereiro de
2022, Maryna Lyushyna ministraria um curso de culinária com chocolate. Ela
arrumou as mesas na noite anterior e estava ansiosa pela chegada das crianças
que compareceriam ao seu teatro infantil na cidade de Konotop, no norte da Ucrânia.
Na véspera, a atriz e mãe de dois filhos não dormiu bem: ouviu barulhos e
pensou que fosse o bonde.
"Às sete da
manhã, um amigo telefonou e disse: 'ligue a TV, é a guerra'", lembra
Lyushyna, que agora mora em Bonn, na Alemanha.
Konotop fica a cerca
de 80 quilômetros da fronteira com a Rússia.
Dois anos atrás, a cidade foi cercada por tropas russas em questão de horas.
Houve resistência, mas as forças eram desiguais, e o exército ucraniano recuou (eventualmente, a cidade acabaria sendo libertada
pelas tropas de Kiev).
Nos primeiros dias da
guerra, Lyushyna fugiu para a casa da mãe nos arredores da cidade, onde
encontrou soldados russos.
"Perguntei o que
eles faziam ali. E a resposta foi: 'viemos buscar o presidente
[Volodimir] Zelenski'", conta. Ela ficou indignada: era como se a
Ucrânia não fosse um Estado independente.
Segundo a ucraniana,
os ocupantes russos pensaram que seriam bem-vindos – e ficaram surpresos quando
não foi bem assim. Após três dias, Lyushyna fugiu para o oeste da Ucrânia e de
lá, juntamente a milhões de compatriotas, para a União Europeia. O marido ficou.
Hoje, ela ainda se
sente desamparada e traída. "Não esperava que houvesse uma grande guerra.
Como pode ocorrer algo assim no meio da Europa em pleno século 21?",
questiona. Lyushyna acusa o Ocidente de ver a Ucrânia como um peão e uma moeda
de troca. "A Europa observou e esperou para ver se seríamos mortos ou
não", diz.
Nem todos os aliados
da Ucrânia agiram com passividade. Estados Unidos, Reino Unido e outros países
já forneciam armas a Kiev antes da invasão russa. Apesar da demora em sua
reação, a Alemanha está atualmente no topo da lista de países apoiadores.
Muitos ficaram
surpresos na época, inclusive na própria Ucrânia. Mas, na realidade, o ataque
russo havia começado oito anos antes, com a anexação da Crimeia,
em 27 de fevereiro de 2014. Naquela época, homens armados, mascarados e sem
distintivo ocuparam o parlamento e a administração da península. O presidente
russo, Vladimir Putin, admitiu mais tarde que eram seus soldados.
Não é uma guerra
congelada
Na época, a Ucrânia
ficou gravemente debilitada. Em Kiev, protestos da oposição forçaram o então
presidente pró-Moscou Viktor Yanukovych a fugir para a Rússia. O novo governo pró-Ocidente não se
atreveu a defender a Crimeia com armas. O Ocidente também recomendou que Kiev
agisse com moderação – e isso mesmo quando batalhas na região carbonífera do
Donbass, no leste da Ucrânia, eclodiram na primavera europeia de 2014.
Não houve sanções
duras. A Rússia colocou o seu próprio povo à frente das forças pró-Moscou em
Donetsk e Lugansk e os armou secretamente cada vez mais. O Ocidente tentou
congelar o conflito por meio de negociações; a Ucrânia não impôs uma lei
marcial. A guerra foi chamada de "operação antiterrorista".
Tudo isso fez a guerra
parecer distante para muitos. "A maioria dos ucranianos não entendia que a
guerra era deles", diz Lyushyna.
Isto não se aplica a
Maksym Kosub. O intérprete de Kiev lembra-se de ter participado de um protesto
que pedia o rompimento das relações com Moscou em frente à embaixada russa, em
junho de 2014. "Entendi que era uma guerra", diz Kosub. Ele se ofereceu
como voluntário para a frente no Donbass e foi ferido. Fazia parte de uma
minoria patriótica que se interpôs no caminho da Rússia – e voltou a lutar no
exército ucraniano após o ataque de fevereiro de 2022.
A Ucrânia deveria ter
lutado pela Crimeia? Muitos pensam que sim. "Sou inclinada a dizer que
deveríamos ter tentado", destaca Susan Stewart, especialista em Ucrânia
do think tank de Berlim Fundação Ciência e Política (SWP). No
entanto, ela ressalta a "liderança fraca em Kiev" na época.
O fato é que a Rússia
também concentrou tropas ao longo das fronteiras ucranianas em 2014 e ameaçou
uma invasão massiva. O exército ucraniano na Crimeia ficou desmoralizado e
grande parte desertou.
A importante ajuda
ocidental
A guerra no Donbass
parecia congelada entre 2015 e 2022, mas, na verdade, foi uma guerra de
trincheiras, com milhares de mortes. Por que o Ocidente acreditou que
continuaria assim, não fornecendo armas pesadas à Ucrânia e seguindo com
projetos empresariais com a Rússia, como o gasoduto Nord Stream 2? Susan Stewart vê a resposta na crença de que a integração pode
prevenir guerras na Europa.
Depois de 2022, a
Ucrânia mudou. "Nós resistimos e continuamos lutando pela Ucrânia, mesmo
que o preço seja muito alto", afirma o soldado Maksym Kosub.
O exército evoluiu
muito e se profissionalizou, embora ainda haja problemas. "A sociedade tem
demonstrado muita auto-organização", diz Kosub. Como exemplo, ele cita os
voluntários que abastecem o exército há dez anos – com carros, aparelhos de visão
noturna e medicamentos.
Kosub acredita que a
guerra será longa, com muitas vítimas, mas com uma vitória ucraniana no final.
Olhando para trás, ele garante: "Todos subestimaram Putin e a sua vontade
de ignorar as regras".
Lyushyna também
acredita na vitória. A guerra a tornou mais dura e intransigente em relação à
Rússia, à língua e à cultura russas. No futuro, ela gostaria de voltar para o
marido, mas não quer mais viver em Konotop, e, sim, no oeste da Ucrânia:
"lá é mais seguro." A Rússia continuará sendo um vizinho perigoso.
Stewart não ousa fazer
previsões para além de um ano. Ela não espera nenhuma "surpresa" na
Rússia. Com o apoio ocidental, a Ucrânia resistirá, mas a exaustão após dez
anos de guerra se torna cada vez mais perceptível. "Não se pensa o suficiente
sobre o que acontecerá se a Ucrânia perder", diz a especialista. Os custos
seriam "muito mais elevados", avalia.
Ø Ucrânia promete vitória no segundo aniversário da invasão russa
O presidente da
Ucrânia, Volodimir Zelensky, prometeu neste sábado (24) que o país vencerá as
tropas da Rússia, no dia em que a guerra completa dois anos e no momento em que
Kiev enfrenta um desgaste com a redução da ajuda das potências ocidentais para
enfrentar Moscou.
“Nós estamos lutando
por isto durante 730 dias de nossas vidas. E nós venceremos, no melhor dia das
nossas vidas”, afirmou Zelensky em um evento ao ar livre no aeroporto de
Gostomel, perto de Kiev, na presença de alguns líderes ocidentais.
Mais cedo, apesar das
dificuldades atuais, o comandante das Forças Armadas ucranianas, general
Oleksander Sirski, insistiu que a vitória está na “unidade”.
“A luz sempre
prevalece sobre as trevas”, afirmou o militar, que foi nomeado para o cargo no
início de fevereiro, como substituto do general Valeri Zaluzhni.
A primeira-ministra
italiana, Giorgia Meloni, desembarcou em Kiev, onde presidirá uma reunião
virtual do G7 sobre a ex-república soviética. O encontro terá a participação de
Zelensky e examinará uma nova série de sanções contra Moscou.
O primeiro-ministro
canadense, Justin Trudeau, seu homólogo belga Alexander de Croo e a presidente
da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também estão na capital ucraniana
para expressar apoio ao país no segundo aniversário da invasão russa.
O presidente da
Rússia, Vladimir Putin, esperava ocupar a capital Kiev em poucos dias quando
ordenou a invasão, em 24 de fevereiro de 2022. Mas as tropas de seu país
sofreram derrotas humilhantes para a resistência ucraniana.
A Ucrânia, por sua
vez, teve seus planos frustrados em 2023 com o fracasso de uma grande
contraofensiva no verão (hemisfério norte, inverno no Brasil). Atualmente, o
Exército de Kiev enfrenta a escassez de soldados, munições e de baterias
antiaéreas.
– Unidade –
A presença de vários
líderes ocidentais neste sábado em Kiev não modifica a realidade: a ajuda dos
Estados Unidos está bloqueada pelos opositores republicanos do presidente, Joe
Biden, e a assistência da União Europeia enfrenta atrasos.
Zelensky afirmou na
sexta-feira que as decisões sobre a entrega de ajuda militar devem ser “a
prioridade”.
O Reino Unido anunciou
neste sábado um pacote de 245 milhões de libras (1,54 bilhão de reais) a Kiev
para estimular a produção de armas e mais 8,5 milhões de libras (R$ 53,8
milhões) de ajuda humanitária.
O secretário-geral da
OTAN, Jens Stoltenberg, afirmou que Kiev e os aliados não devem perder a
esperança porque “o objetivo do presidente (russo Vladimir) Putin de dominar a
Ucrânia não mudou”.
Ao desembarcar em
Kiev, Von der Leyen, presidente do Executivo europeu, destacou a “resistência
extraordinária do povo ucraniano” e afirmou que o bloco apoiará a nação “até
que o país seja finalmente livre”.
A solidariedade
econômica, no entanto, começa a demonstrar fragilidades devido ao bloqueio das
fronteiras por agricultores poloneses que não aceitam o aumento das importações
de cereais ucranianos.
– Uma questão de fé –
Ao mesmo tempo, a
Rússia celebra o aumento das ações no front e reivindicou vitórias como a
tomada de Avdiivka, no leste do país, em 17 de fevereiro, após meses de
combates violentos.
As tropas russas
também passaram à ofensiva em outra área da região leste, nas proximidades
Mariinka.
“Hoje, em termos de
proporção de forças, a vantagem está do nosso lado”, afirmou o ministro da
Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, durante uma visita às tropas neste sábado.
Porém, os ucranianos
entrevistados em Kiev pela AFP se declararam convencidos da vitória contra os
invasores.
“Aprendemos a
resistir, a nos fortalecer e a acreditar. Aqui dizemos que quem tem fé será
recompensado”, declarou Nina, uma aposentada.
A Rússia também está
animada com as vitórias recentes. Putin parabenizou na sexta-feira os “heróis”
de seu Exército que lutam na Ucrânia. Quase 500.000 pessoas se alistaram nas
Forças Armadas em 2023 e outras 50.000 em janeiro, enquanto a economia do país
foi orientada para apoiar a máquina de guerra.
A oposição russa foi
dizimada pela repressão e pela morte de seu principal líder, Alexei Navalny, em
16 de fevereiro em uma prisão na região do Ártico.
Putin não tem nenhum
obstáculo no caminho de sua vitória nas eleições presidenciais programadas para
março.
Mas os críticos, que
podem ser condenados a longas penas de prisão, mantêm prudência. “Estamos tão
afastados da verdade que é difícil tomar decisões”, disse Konstantin, um
professor de teatro.
Neste sábado, a
polícia russa prendeu várias pessoas, incluindo jornalistas, durante uma
manifestação de esposas de soldados russos que exigem o retorno dos militares
que estão na batalha da Ucrânia.
Todos os sábados, as
esposas dos soldados depositam flores no túmulo do soldado desconhecido, uma
ação simbólica perto do muro do Kremlin, conhecida como movimento “Put Domoi”
(caminho para a casa, em russo).
Ao comentar as sanções
que isolaram a Rússia do mundo ocidental, o ex-presidente russo e atual número
dois do Conselho de Segurança, Dmitri Medvedev, afirmou que o país se vingará
das medidas.
“Temos que nos
recordar e nos vingarmos deles sempre que possível. São nossos inimigos”,
escreveu no Telegram após as novas restrições anunciadas nos últimos dias por
Estados Unidos, UE e Reino Unido.
Fonte: Deutsche Welle/IstoÉ
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