Piratas da
Amazônia: a disputa pelos rios que desafiam a segurança pública da região
A pouco
mais de 360 quilômetros de Manaus, um município de 70,5 mil habitantes às
margens do rio Solimões chama a atenção pelos problemas de cidade grande:
disputas entre facções criminosas, milícia e tráfico de drogas que levaram a
três assassinatos em apenas um dia no ano passado. Mas a fama de violência que
Coari carrega é por outro motivo.
O pequeno
município é conhecido como a "capital dos piratas", que são grupos de
criminosos que atuam quase livremente nos rios. As hidrovias são o principal
meio de locomoção das comunidades ao longo de cursos d'água como Solimões,
Negro e Amazonas. De entreposto de drogas a mercado consumidor, a cidade
convive diariamente com o medo e a insegurança e se tornou ponto de cooptação
de piratas, geralmente com idades entre 17 e 40 anos, profundos conhecedores
dos rios da região.
Mas o
problema não é exclusivo de Coari e se alastra para toda a Amazônia. A Sputnik
Brasil conversou com um agente da Polícia Federal (PF), que atua há décadas na
região e pediu para não ser identificado. Apesar da falta de dados oficiais,
policiais como ele que estão no dia a dia do combate ao crime possuem um
veredito único: a pirataria é cada vez maior nos rios amazônicos.
"Percebi
que essa questão é fruto de um recolhimento da presença do Estado,
intensificada na região do Alto Solimões a partir de 2013, quando foram
desmobilizadas as operações de fronteira", argumenta.
No rio
Amazonas, que é a principal hidrovia da região, há uma divisão em dois trechos:
de Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru a Manaus, com
1,7 mil quilômetros, e de Manaus a Belém, no Pará, com outros 1,6 mil
quilômetros. De acordo com o agente, não há nenhum posto de fiscalização da PF
em toda essa extensão.
"A
atuação dos piratas é mais intensa entre Tefé, Alvarães e Fonte Boa [todas no
Amazonas]. O estado instalou a Base Arpão [da Polícia Militar] para fiscalizar
e tentar frear a ação dos piratas e traficantes, porém, há canais no rio que
burlam essa atuação. O efetivo e as ações da polícia [local] também são
insuficientes perante a amplitude da criminalidade", explica.
·
Como são os piratas de hoje?
Termo que
está no imaginário da população, os piratas de hoje não são aqueles criminosos
do passado que faziam sucesso nos filmes pelas características singulares.
Quase sempre fortemente armados e até com embarcações poderosas, podem ser
encontrados em todo o mundo, a exemplo da Região Amazônica. Segundo o
pesquisador e mestre em segurança pública pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), Roberto Magno Reis Netto, há nomenclaturas mais apropriadas para esse
grupo de criminosos.
"Acaba
sendo mais fácil usar essa palavra para tratar as pessoas que praticam
criminalidade nos rios ou no mar, mas ela não existe no Judiciário. Se eles
estão envolvidos com o tráfico, são traficantes, ou com assaltos, cometem o
crime de roubo, e por aí vai", pontua.
Já o
agente da PF acrescenta que a pirataria atua nos moldes de uma milícia.
No
Amazonas, esses criminosos têm como foco carregamentos de drogas que vêm do
Peru e da Colômbia.
"As
lanchas são abordadas por embarcações de piratas fortemente armados. As drogas,
as armas e os motores [do barco] são tomados e, normalmente, os traficantes são
mortos, por vezes até esquartejados, e jogados nos rios", revela.
Já no
Pará, o alvo dos piratas é principalmente por meio de balsas, que carregam
combustíveis e contêineres com diversas mercadorias e produtos eletrônicos.
"Atuam a partir da cidade da Prainha e são quadrilhas fortemente armadas
que tomam de assalto e sequestram balsas para retirar esses produtos. Essa
modalidade de crime só faz crescer, e os principais rios da Amazônia passam por
um processo de 'piratização'", explica.
·
Quem são os piratas da Amazônia
Desde
2022, o setor de inteligência da PF intensificou a fiscalização contra piratas
que atacavam narcotraficantes e garimpeiros ilegais, em que eram registrados
confrontos entre esses criminosos que contavam com o uso até de granadas e
levavam pânico aos rios amazônicos.
O grupo
até se passava por agentes da corporação, com lanchas que possuíam a inscrição
da PF. Foi justamente na região próxima à fronteira com a Colômbia e o Peru,
onde o tráfico é ainda mais intenso, que o indigenista Bruno Pereira e o
jornalista Dom Phillips foram assassinados no começo do ano passado.
Porém, o
agente da PF relatou à Sputnik Brasil que, apesar das unidades de polícia
marítima em Santarém, Belém, Manaus e Macapá, o efetivo é pequeno e as fotilhas
(embarcações usadas nas fiscalizações e operações) estão sucateadas.
"A
maior parte da frota é de 2008 ou ainda da década de 1990. Já as mais recentes
são inapropriadas para o trabalho, não têm blindagem e motores adequados para o
trabalho de patrulha fluvial", declarou.
"O
efetivo é insuficiente, não há uma política de qualificação desses agentes, nem
bonificação para esse tipo de trabalho, que é altamente perigoso", diz.
Procurada, a corporação não respondeu aos questionamentos e o espaço segue
aberto para uma eventual manifestação.
Já com
relação a um possível apoio da Marinha do Brasil no combate aos piratas da
Amazônia, seria necessário um decreto presidencial de Garantia da Lei e da
Ordem (GLO), o que também não garantiria uma redução do problema, finaliza.
·
PCC, CV e milícia: a reconfiguração do
crime na Amazônia
Para
entender o fenômeno da pirataria nos rios, o especialista em segurança pública
Roberto Magno ressalta que antes é preciso voltar à reconfiguração das redes de
criminalidade em toda a Região Amazônica nos últimos anos.
Diante da
consolidação como uma nova rota para o escoamento das drogas produzidas na
Colômbia e no Peru, a região também atraiu grandes facções brasileiras, como o
Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que também
passaram a disputar com grupos locais, como a Família do Norte (FDN),
atualmente considerada extinta.
Conforme
um estudo publicado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
os estados da Amazônia contam com a presença de 22 organizações criminosas
nacionais e estrangeiras em 178 municípios, onde vivem quase 60% da população.
Além disso, quase um terço dos moradores convivem com localidades que possuem
disputas por poder e território entre as organizações. Há também possíveis
envolvimentos até de grandes autoridades com o crime: no ano passado, o então
secretário de Estado de Segurança Pública, general Carlos Alberto Mansur,
chegou a ser preso e também investigado por extorsão contra as próprias
organizações criminosas.
"A
reconfiguração da criminalidade mudou as relações econômicas, ou seja, quem
passou a se envolver adquiriu mais recursos e poder. Então, a presença desses
agentes criminosos, incluindo as facções, trouxe mais dinheiro para que essas
pessoas adquirissem armas e realizassem mais atividades criminosas como um
todo. E, para instrumentalizar o trabalho deles, passam também a realizar
outras atividades como roubo de cargas, embarcações e combustíveis",
resume.
Tudo isso
também alterou as características dos piratas, cada vez mais armados. "O
enfrentamento à criminalidade nos rios tem feito também com que essas
organizações cooptem cada vez mais as comunidades tradicionais de ribeirinhos.
Mas a pirataria já é antiga, eram de roubo mesmo, sem vinculação com o tráfico,
com ataques aos próprios ribeirinhos ou às embarcações de turismo. É um
fenômeno relativamente comum aqui, mas os dados específicos sobre a questão da
pirataria sempre foram escassos", diz.
·
Tem pirata no Brasil?
Mesmo com
piratas no Brasil, os dados sobre esses criminosos praticamente não existem,
seja por atuarem em regiões muito isoladas ou até por falta de efetividade das
forças de segurança. "Quanto às facções, sabe-se quem são as lideranças,
tanto as políticas quanto a administração carcerária. E com relação aos
piratas, por que não se sabe?", questionou Fabio Magalhães Candotti,
coordenador do coletivo de pesquisa Ilhargas — Cidades, Políticas e Violências,
da Universidade Federal do Amazonas.
Outra
questão é com relação à ausência de estatísticas sobre o roubo, por piratas, de
mercadorias consideradas ilegais, como drogas, produtos do garimpo não
legalizado e até madeira.
"Diferentemente
de facções, em que existem relatórios e grandes operações, até pavilhões
dedicados exclusivamente a seus membros no sistema penitenciário, os piratas
não aparecem como uma facção bem delimitada, com lideranças. Só aparecem
notícias, às vezes de pessoas de organizações envolvidas com piratas, ou de
policiais nesse tipo de pirataria", acrescenta.
Fonte:
Sputnik Brasil
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