Indicado por Lula ao STF, Flávio Dino é
contra legalização do aborto e visto como 'mão pesada'
O ex-ministro da
Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino tomou posse nesta quinta-feira (22/2)
no Supremo Tribunal Federal (STF).
O novo ministro da
Corte foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como seu segundo
homem de confiança no Supremo Tribunal Federal (STF), após a indicação de seu
ex-advogado Cristiano Zanin em junho passado.
Em dezembro, Dino teve
a indicação ao STF aprovada pelo Senado. Na Comissão de Constituição de Justiça
(CCJ), Dino teve seu nome aprovado por 17 votos a 10, e no plenário, por 47
votos a 31.
Na CCJ, sua sabatina
durou mais de dez horas e envolveu a discussão sobre temas polêmicos, como a
atuação de Dino no 8 de janeiro e pautas de costumes.
A cerimônia de posse
desta quinta-feira foi comandada pelo presidente da Corte, Luís Roberto
Barroso. O evento reuniu mais de 800 convidados, incluindo diversas
autoridades, como o presidente Lula.
Mais interessado em
ter um novo interlocutor dentro da Corte do que em aumentar a
representatividade social da instância, Lula ignorou a pressão de parte da
sociedade para indicar uma jurista negra na vaga aberta com a aposentadoria de
Rosa Weber. Com isso, o Supremo volta a ter apenas uma mulher em sua composição
de onze ministros, a ministra Cármen Lúcia.
Nenhuma indicação para
a Corte foi rejeitada desde 1894, mas o perfil político combativo de Dino criou
mais resistência ao seu nome entre parte dos senadores do que se observou na
indicação de Zanin.
No fim de janeiro,
Dino deixou o comando do Ministério da Justiça, função que assumiu desde o
início do governo Lula. No período, enquanto aguardava a chegada ao STF, ele
ficou durante 20 dias como senador, cargo para o qual foi eleito no Maranhão em
2022.
No curto período no
Senado Federal, Dino apresentou sete projetos de Leis que seguem em tramitação
na Casa, entre eles um que proíbe acampamentos próximos a quartéis ou áreas
militares, outro que retira aposentadoria compulsória a juízes, promotores ou militares
que tenham cometido delito grave, além de prever a exclusão dessas pessoas do
serviço público.
Agora no STF, juristas
ouvidos pela BBC News Brasil esperam que Dino tenha uma postura alinhada com a
esquerda nas pautas econômicas, mas não tão progressista em pautas de costumes.
Católico, o ministro
de 55 anos já se disse "filosoficamente, doutrinariamente, contra o
aborto" e defendeu "que a legislação brasileira não deve ser mexida
nesse aspecto".
Já nas pautas penais,
entrevistados que acompanham de perto a trajetória de Dino acreditam que ele
pode ter "mão pesada", contrariando as expectativas iniciais de que
Lula privilegiaria alguém de perfil mais garantista em sua escolha para a Corte
(entenda melhor ao longo da reportagem).
• A entrada de um 'camisa dez' no STF?
Enquanto Zanin se
projetou para o STF por ter sido o advogado que liderou a defesa de Lula nos
processos da operação Lava Jato, Dino conquistou a confiança do presidente aos
poucos, ao longo de anos de sua carreira, em que exerceu cargos no Judiciário,
no Legislativo e no Executivo, dizem entrevistados pela BBC News Brasil que
acompanham de perto sua trajetória.
A relação se
fortaleceu neste ano, quando Dino passou a comandar uma das pastas mais
importantes do governo e protagonizou a reação do Executivo aos ataques de 8 de
janeiro, quando um multidão de radicais depredou as sedes dos Três Poderes.
Houve, por outro lado,
desgastes com crises na área de segurança pública, mas que não foram
suficientes para abalar a confiança do presidente.
Os dois temas levaram
a fortes embates com lideranças bolsonaristas, algo que contribuiu para
projetar Dino para a opinião pública. Com uma forma de se expressar
irreverente, o ministro costuma viralizar nas redes sociais com falas
“lacradoras”. Segundo levantamento do instituto pesquisa Quaest, é o segundo
ministro mais popular do governo, atrás de Fernando Haddad (Fazenda).
Foi também no contexto
da reação ao 8 de janeiro que o ministro da Justiça se aproximou do ministro do
STF Alexandre de Moraes, entusiasta de sua escolha para a Corte. Contribuiu
também para a indicação de Lula o apoio do ministro Gilmar Mendes, com quem
Dino tem longa relação de amizade, desde a época em que era juiz federal, antes
de ingressar na política.
Na primeira passagem
de Lula pelo Palácio do Planalto, havia uma distância entre ele e Dino devido
ao cenário político no Maranhão, lembra o Secretário Nacional do Consumidor,
Wadih Damous, amigo de 30 anos de Dino e ex-deputado petista.
Dino, então filiado ao
PCdoB, era oposição ao clã político de José Sarney, forte aliado do petista em
seus dois primeiros mandatos.
Seu desempenho como
governador e sua postura nos momentos de maior fragilidade do PT conquistaram a
admiração do presidente, acredita Damous.
Dino manteve fiel
apoio a Dilma Rousseff durante e após o processo de impeachment e foi crítico
de primeira hora da operação Lava Jato – operação que atingiu em cheio Lula, o
PT e outros partidos tradicionais.
Seu apoio foi
importante, não só por ser governador naquele momento, mas por conseguir
debater a operação juridicamente — antes de ingressar na política, Dino foi
juiz federal de 1994 a 2006 e chegou a presidir a Associação dos Juízes
Federais (Ajufe).
Deixou a magistratura
para ser deputado federal (2007 a 2011), presidente da Embratur (2011 a 2014)
durante a gestão Dilma, e depois governador do Maranhão por dois mandatos (2015
a 2022). Eleito senador no ano passado, se licenciou para assumir o Ministério
da Justiça.
Para os entrevistados
pela BBC News Brasil, a rara experiência nos Três Poderes deve dar a Dino, que
tem 55 anos, um rápido protagonismo dentro da Corte, com capacidade de
redefinir o equilíbrio de forças do Supremo.
"A grande maioria
dos ministros recentes entraram com um perfil muito cauteloso, tentando buscar
sua voz nesse espaço tão público quanto o Supremo. Não vai ser o caso (do
Dino)", acredita Pedro Abramovay, vice-presidente global de programas da Open
Society Foundation, que integrou o Ministério da Justiça nos primeiros governos
de Lula.
Na sua visão, Dino
chega ao STF não como um jogador que precisa "aquecer", mas como um
"camisa dez".
"Ele vai entrar
aquecido. Isso faz diferença Não vai precisar buscar o apoio de um grupo pra
ser legitimado como a gente viu acontecer com outros ministros, mas é alguém
que pode inclusive criar novos grupos e novos arranjos com uma presença tão forte",
reforça.
Na visão de Damous,
Dino será um "polarizador" e vai marcar sua passagem na Corte.
"O Flávio tem
posições muito nítidas, é sempre muito enfático nas coisas que ele defende.
Então eu acho que ia ser uma personalidade ali dentro do Supremo, assim como o
Alexandre de Morais tem sido, o Gilmar Mendes. Ele vai ser, sem dúvida",
compara.
"Os tribunais
constitucionais sempre são políticos, mas o Supremo se politizou indevidamente
ao longo dos últimos anos. Então, a trajetória de Dino na política e na
carreira de juiz daria a ele um perfil único lá", ressalta ainda.
• Garantista ou punitivista?
A decisão de Lula de
indicar nomes próximos a ele ao STF em seu terceiro mandato contrasta com suas
escolhas nos primeiros dois governos, quando o presidente definia os nomes a
partir das sugestões do seu então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e do
advogado e ex-deputado do PT Sigmaringa Seixas, ambos já falecidos.
A mudança é atribuída
ao trauma com a Lava Jato, operação controversa que revelou grandes esquemas de
corrupção envolvendo a Petrobras e obras públicas. Lula chegou a ser preso pela
operação, mas depois teve suas condenações anuladas quando o STF entendeu que
houve ilegalidades na condução dos processos.
Por causa disso, a
expectativa no meio jurídico seria de que Lula indicaria ao Supremo juristas
com perfil garantista — ou seja, que dão mais ênfase às garantias
constitucionais dos acusados durante investigações e processos, como o direito
à ampla defesa e a responder processos em liberdade, usando a prisão preventiva
em situações muito excepcionais.
Os entrevistados
ouvidos pela BBC News Brasil, porém, avaliam que Dino não tem um perfil tão
garantista.
Como ministro da
Justiça, chegou a enviar ao Congresso um pacote que endurecia leis penais sob
justificativa de enfrentar ataques ao Estado Democrático de Direito.
A proposta incluía
estabelecer pena de 20 a 40 anos de prisão para quem atentasse contra a vida do
presidente da República, do vice-presidente, dos presidentes do Senado e da
Câmara dos Deputados, dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral
da República, com o objetivo de alterar a ordem constitucional democrática.
Outra proposta era
permitir a um juiz bloquear contas e apreender bens "quando houver
indícios suficientes de autoria ou de financiamento de crimes contra o Estado
Democrático de Direito" em uma decisão de ofício, ou seja, sem solicitação
prévia de outro órgão como a Polícia Federal ou o Ministério Público.
O pacote gerou
controvérsia entre juristas e acabou não avançando no Congresso.
"Ele tem a fama
de mão pesada. É aquele negócio também de ter sido governador e precisar lidar
com o crime comum, com a criminalidade. De forma arbitrária acho que ele não
vai se conduzir, mas não se deve esperar uma postura intensamente garantista não",
prevê Wadih Damous.
A visão é
compartilhada por um advogado criminalista com trânsito nos bastidores de
Brasília.
"Flávio não é um
cara propriamente garantista. Ele é um cara um pouco mais do lado do
punitivismo. Então, a gente sabe que o Flávio não vai adotar uma linha tão
liberal no âmbito criminal quanto o Gilmar, quanto o (Ricardo) Lewandowski
(ministro aposentado), quanto o (Dias) Toffoli", destaca.
Na avaliação desse
advogado, o presidente parece ter privilegiado a proximidade com seus indicados
– Zanin e Dino – do que realmente o perfil garantista.
"Em relação ao
Lula, ele (Dino) vai se absolutamente leal às posições políticas e
ideológicas", ressalta
• Visão à esquerda na pauta econômica
No âmbito econômico,
os entrevistados acreditam que Dino levará ao STF uma visão de esquerda,
próxima a de Lula e a do PT.
A expectativa é que
tenha decisões favoráveis aos direitos do trabalhador — Dino foi advogado
trabalhista no início da carreira — e uma postura menos liberal.
"O Flávio é uma
pessoa de esquerda e pragmático. Não vejo ele de jeito nenhum como alguém
ultraestatista, mas claramente mais à esquerda que o (ministro Luís Roberto)
Barroso na pauta econômica", disse Abramovay.
"Como governador
foi muito aberto a investimentos privados. Não tem de jeito nenhum um
preconceito contra o investimento privado, privatizações, mas certamente não
virão dele as decisões que vão impedir o Estado de atuar em esfera
econômica", acrescenta.
• Aborto, maconha e a crise com o
Congresso
Dino chega ao STF em
um momento de escalada da tensão entre a Corte e o Congresso.
O Parlamento vem
debatendo propostas que batem de frente com o Supremo, como uma possível
alteração na Constituição que pode limitar poderes individuais dos ministros ou
a criação de mandatos com duração fixa — hoje os ministros podem ficar na Corte
até os 75 anos.
Como pano de fundo
dessa crise, analistas apontam uma insatisfação da maioria conservadora do
Congresso com decisões progressistas do STF, como a rejeição do marco temporal
para territórios indígenas e o andamento de julgamentos que pode
descriminalizar o aborto e o porte de maconha para consumo.
Na visão dos
entrevistados, a experiência prévia de Dino como parlamentar pode contribuir
para uma melhor interlocução entre o Congresso e o Parlamento.
Também há uma
expectativa que seu lado político pragmático o leve a atuar com cautela e
contensão em pautas controversas, para não alimentar essas tensões com o
Parlamento.
"Ele pode fazer
um cálculo político (ao analisar uma pauta progressistas) e não trazer a fúria
dos fundamentalistas para dentro do ambiente do Supremo: 'Ah, isso não é
matéria do Supremo, isso é matéria pro Congresso'", exemplifica Damous.
"Não me causaria
surpresa se ele raciocinar dessa maneira. Mas, do ponto de vista do
entendimento pessoal dele, ele é progressista", ressalta.
Declarações anteriores
de Dino reforçam essa percepção. O ministro já se colocou contra a ampliação da
legalização do aborto, embora tenha apoiado falas de Lula de que o tema seria
uma questão de saúde pública, algo que gerou desgaste para o petista junto ao
eleitorado conservador na eleição de 2022.
“Eu sou
filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto, e acho que a legislação
brasileira não deve ser mexida nesse aspecto. Por que eu registro minha
posição? Porque essa é a prova de que é um tema que não tem consenso nem no
nosso campo político. Acho que temas que neste momento desunem devem ser
evitados, porque o bolsonarismo precisa da polêmica”, disse em abril do ano
passado, em entrevista ao Valor Econômico.
“A posição do
presidente Lula em relação a isso (ao aborto) levanta uma preocupação
necessária, qual seja, a da desigualdade entre mulheres ricas e mulheres
pobres. E como você vai tratar desse assunto, que não é pela via do Direito
Penal, e sim pela via das políticas públicas. Ele levantar essa preocupação não
há nenhum problema. Agora, isso não vai constar de programa de governo porque
nem na esquerda existe consenso sobre isso”, disse ainda, na entrevista.
O STF tem uma ação em
andamento que discute a descriminalização ampla do aborto, prática que hoje é
permitida no país apenas em caso de estupro, risco de vida para a mãe e quando
o feto é anencefálico. Dino, porém, não poderá se manifestar no mérito dessa
ação quando o julgamento for retomado (não há previsão ainda) porque a ministra
Rosa Weber – única a se manifestar até o momento, antes de se aposentar – já
votou pela ampla liberação.
Por outro lado, ele
poderá julgar outras ações que costumam chegar ao STF discutindo casos
particulares, como ações criminais contra suspeitos de realizar abortos ilegais
ou pedidos de gestantes para abortar, por exemplo em casos de fetos
diagnosticados com problemas que impedem sua vida após o parto (casos similares
ao da anencefelia, mas que não são permitidos nas regras atuais).
Na questão das drogas,
Dino se coloca contra o consumo, mas já indicou ser contra o atual modelo de
criminalização.
“Individualmente, eu
tenho uma atitude contra as drogas, de rejeição ao consumo. Como política
pública, nós temos que enxergar sempre a questão da eficiência. O que nós
estamos vendo é que esse modelo atual faz com que marcadamente jovens de baixa
instrução negros de periferia, essencialmente esses, sejam atraídos pelo
tráfico de drogas e depois levados ou a morte violenta ou ao cárcere”, disse,
em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2019.
No momento, há um
julgamento em andamento no STF que discute descriminalizar o porte de maconha
para consumo e fixar parâmetros que diferenciem qual a quantidade liberada para
usuário e qual a quantidade que enquadraria o portador como traficante.
A princípio, Dino não
se manifestará no mérito principal dessa ação, porque a ministra Rosa Weber já
votou. Mas, como o julgamento ainda está em curso, pode ser que o próximo
ministro precise se manifestar em alguma etapa do caso.
Fonte: BBC News Brasil
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