quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Cotas trans: apenas duas das universidades federais das capitais oferecem vagas

Durante anos, o professor Marcel Couto frequentou o centro de São Paulo para conversar com pessoas transgêneras, travestis e não binárias que precisavam de incentivo para concluir a educação formal. Em 2015, ele criou o cursinho popular Transformação, que oferece alfabetização, cursos técnicos, profissionalizantes e preparatórios para o vestibular, com foco neste público. Mais de 100 pessoas já passaram pelo cursinho e sete conseguiram entrar na faculdade – todas em instituições privadas.

“Ainda há uma dificuldade muito grande no acesso à educação superior, especialmente em instituições públicas”, diz Couto. “Pouca pessoas trans e travestis conseguem entrar na universidade. Menos ainda conseguem permanecer.”

Apenas duas das 27 universidades federais das capitais brasileiras reservam cotas para pessoas trans, travestis e não binárias, de acordo com levantamento feito pela Agência Pública. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) adotou o sistema em 2019, e a de Santa Catarina (UFSC) no ano passado. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade de Rondônia (Unir) estão em fase de implantação, que deve começar no processo seletivo deste ano para ingressantes em 2025.

>>>> Por que isso importa?

  • Este é um levantamento inédito e atualizado. Ligamos para todas as universidades públicas federais das capitais brasileiras para checar quantas oferecem cotas trans na graduação e na pós-graduação. O resultado mostra que ainda precisamos avançar muito para ampliar o acesso de pessoas trans, travestis e não binárias ao Ensino Superior.

No Brasil, 0,3% dos estudantes de instituições federais se identificam como transgêneras, segundo o último estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2018.  

Além da UFBA, da UFSC e da Unir, outras seis universidades fora de capitais introduziram cotas para pessoas trans: a universidade de Campinas (Unicamp); Federal do ABC (UFABC); Estadual da Bahia (Uneb); Federal do Sul da Bahia (UFSB); Estadual do Amapá (UEAP); e Estadual de Feira de Santana (UEFS). Apenas a UFSC possui uma política que vai além das cotas – englobando a facilitação do acesso a bolsas, adaptação da estrutura física (como a adoção de banheiros inclusivos), ouvidoria para receber denúncias, oficinas de formação para o corpo docente, entre outros. 

A maioria das instituições de ensino consultadas pela reportagem – 20 das 27 – adotou parcialmente as cotas para transgêneros, exclusivamente em alguns cursos de pós-graduação. É mais fácil oferecer cotas no mestrado e doutorado porque a burocracia é menor. Cada programa tem uma certa autonomia para tomar decisões – ao contrário da graduação, em que cada passo é definido por um colegiado de professores, alunos e servidores, o que torna o processo bem mais lento.

Já as federais do Acre (UFAC) e da Paraíba (UFPB) são as únicas universidades públicas de capitais que, até agora, não criaram políticas afirmativas para o acesso deste público à graduação ou pós-graduação. De acordo com elas, porém, existe pressão interna para que alguma iniciativa seja tomada – principalmente dos movimentos estudantis. A oferta de cotas apenas na pós-graduação não responde ao problema da falta de acesso de pessoas trans, já que a graduação é a porta de entrada no Ensino Superior. 

A lei de cotas do Governo Federal diz que deve haver reserva de vagas para alunos negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda nas universidades públicas. Existem discussões para que pessoas trans e travestis sejam incluídas, mas nenhuma avançou o suficiente.

No Congresso, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou dois projetos de lei sobre o tema – um propõe a reserva de vagas nas universidades e o outro em concursos públicos. “As iniciativas visam incluir as pessoas trans e travestis, por meio da educação e do trabalho digno, em nossa sociedade. Ajudam a resgatar a cidadania historicamente negada à nossa comunidade”, diz ela, a primeira mulher trans eleita à Câmara dos Deputados.

·        “É preciso oferecer políticas de permanência e inclusão”

Mesmo nas poucas universidades com cotas na graduação, ainda há uma dificuldade em preenchê-las. Quando a Universidade Federal do ABC (UFABC) adotou o sistema, em 2019, foram oferecidas 32 vagas para pessoas trans, mas apenas 17 foram preenchidas. Na edição mais recente do vestibular, em 2023, foram 40 vagas e só 23 ocupantes. 

Na avaliação de Cláudia Vieira, Pró-Reitora de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC, a disparidade que há no número de vagas disponíveis em relação ao número de matrículas é consequência de um ambiente universitário que ainda não conseguiu se ajustar totalmente para atender a todas as pessoas, sem distinção. Na universidade, 1,6% das vagas são proporcionalmente distribuídas pelo número de vagas disponíveis nos quatro cursos de ingresso, sendo o Bacharelado em Ciências e Tecnologia (BCT) o curso que mais possui vagas e consequentemente ingressantes trans e travestis.

“Felizmente graças ao trabalho conjunto do coletivo de estudantes trans da UFABC e a pró-reitoria, conseguimos iniciar o processo de dizer a esse público que esse lugar é também deles. Ofertamos a reserva de vagas por meio das cotas trans do cursinho popular da universidade até os programas de pós-graduação na tentativa de acelerar esse processo e ampliar o número de docentes trans, travestis e não-binárias”, diz. 

“Além de ampliarmos o número de bolsas e auxílios, entendemos a importância de ter esse público nos espaços de tomada de decisões e liderança, como a professora Ana Lígia Scott, primeira mulher trans a concorrer à vice-reitoria da UFABC”, diz Cláudia Vieira. Ela ressalta que, para além de garantir o acesso à universidade, “é preciso oferecer políticas de permanência e inclusão”. “Ao contrário disso, essas pessoas até poderão ingressar, mas certamente não irão se sentir pertencentes o suficiente para concluir o Ensino Superior”.  

Além de serem alvos recorrentes de transfobia e homofobia, 33% das pessoas trans, travestis e não binárias que acessam universidades dependem de programas e bolsas que auxiliem sua permanência, segundo pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Gemaa). O levantamento também mostrou que 58% desses estudantes são negros e 76% têm renda per capita de menos de 1,5 salário mínimo. 

No ano passado, a estudante de licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Educação Francisca Silva se juntou à luta pela adesão às cotas trans na graduação da Universidade de São Paulo (USP). “O reitor olhou para o documento que tínhamos feito e simplesmente ignorou alegando que não ia discutir o assunto. Nem passa na cabeça das pessoas que isso pode acontecer em um espaço como a USP, onde o prestígio instrumental dos rankings internacionais invisibiliza pautas como a permanência e inclusão”. 

Gabriele Weber, pós-doutora em Física, diz que precisou se esconder para se sentir aceita dentro do campus da Universidade de São Paulo (USP), durante 35 anos da graduação até o pós-doutorado. “Não respeitavam meu nome social, os pronomes no feminino. Fora os olhares e comportamentos velados que a gente não consegue denunciar. Nem passava pela minha cabeça transicionar nesse período. Só me senti preparada para sair do armário quando assumi uma posição de liderança. Mesmo assim, fui excluída de grupos de pesquisa e laboratórios após assumir publicamente que sou uma mulher”, afirma.

Para ela, o ambiente universitário é excludente. “Até hoje, o conhecimento científico pelo qual convivo é comandado, sobretudo, por homens brancos heterossexuais de classe média e meia-idade. Existe uma construção social para associar as ciências exatas, no geral, à masculinidade. Romper ou hackear isso é estar preparada para se submeter a diversos tipos de violências”, diz.

 

Ø  Brasil tem um assassinato de pessoa trans a cada 3 dias, aponta relatório

 

Aconteceu dentro de casa, por um conhecido. O assassinato de Julia Nicoly Moreira da Silva, técnica de enfermagem, em julho de 2023, infelizmente se somou a um dado que voltou a crescer no Brasil no último ano: ao menos 145 pessoas trans foram mortas no país de acordo com levantamento inédito da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado nesta segunda, 29 de janeiro. O número leva à média de mais de um assassinato a cada três dias. Em 2022, o total de assassinatos foi de 131, cerca de 10% a menos.

Com 34 anos na época do crime, Silva representa alguns dos perfis mais comuns de vítimas no Brasil, segundo o levantamento da Antra. A maioria são de mulheres trans como ela. Quase 80% não chegam a ter 35 anos de idade. E a maior parte dos crimes acontecem com uso excessivo de violência e requintes de crueldade, que foi o caso de técnica de enfermagem.

O crime foi investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense como feminicídio. O suspeito, de 19 anos, foi preso um mês após matar Silva, com a ajuda de um adolescente que na época tinha 17 anos. Na denúncia, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) destacou que “o crime foi praticado por motivo fútil, uma vez que o denunciado foi impulsionado pelo ódio nutrido pela vítima em razão desta ser transexual”. 

Procurada pela Pública, a Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que “diligências seguem em andamento para prender o outro criminoso envolvido no crime”. 

Este foi o 7º relatório divulgado pela Antra, que reúne dados de assassinato de pessoas trans desde 2017. O levantamento é feito a partir de dados governamentais, como o Disque 100 e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde, órgãos de segurança pública, processos judiciais e casos publicados em veículos jornalísticos.

·        Assassinatos de pessoas trans no Rio de Janeiro e Paraná dobram em um ano 

O estado que mais registrou assassinatos de pessoas trans em 2023 foi São Paulo, com 19 casos. Contudo, Rio de Janeiro e Paraná se destacam entre os que tiveram maior aumento de mortes desde 2022. Em ambos, o número de assassinatos dobrou de um ano para o outro.

No Rio, onde vivia Julia Nicoly Moreira da Silva, foram registrados 16 homicídios no ano de 2023, contra oito em 2022.Questionado sobre quais são as políticas públicas disponíveis à população travesti, trans e não-binária, o Instituto de Segurança Pública  do Rio de Janeiro (ISP) respondeu que atua na promoção e garantia dos direitos da população LGBTQIAP+ por meio de programas sociais. “O Rio Sem LGBTIfobia conta atualmente com 20 Centros de Cidadania LGBTI, que oferecem todo o suporte necessário com atendimento social e psicológico, além de acompanhamento jurídico dos casos necessários”, destacou o órgão. 

Gab Van, de 35 anos, é ativista e diretor da Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro. Segundo ele, a falta de políticas públicas e o conservadorismo incentivado pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) colaboraram para o aumento do número de travestis e trans mortas no estado, pela incitação aos discursos de ódio. 

“Não tem como falar que essas mortes [de pessoas trans e travestis] não aumentaram devido ao ódio que o último governo deixou”, disse o diretor, sobre o que pode explicar a ascensão no número de mortes do estado. “A maioria dessas mortes são na Baixada, em lugares afastados do centro e que a sociedade não é ensinada e nem educada [sobre identidade de gênero]”, completou Gab. 

Para o ativista, a vulnerabilidade da comunidade trans, travesti e não-binária não está só ligada à falta de acesso às políticas públicas, mas também à forma como a pessoa se identifica. “Quando a gente fala ‘corpo vulnerável’, não estamos falando da galera [exclusivamente] pobre, mas uma pessoa que, por mais que tenha estudo ou alguma base, o corpo continua sendo vulnerável”, pontuou. 

Já no Paraná, os homicídios de pessoas trans passaram de seis para 12 no período 2022-2023. 

“O comitê da população LGBT do Paraná tem cobrado muito que se melhore a identificação de violência, então, talvez o resultado reflita essa melhora na identificação dos casos, mas, o Paraná tem um histórico muito grande de conservadorismo. O governador é um apoiador do ex-presidente Bolsonaro. Então, não é difícil imaginar uma relação desses dados com um discurso conservador e violento”, critica o coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), Fabian Algarte, que vive no Paraná.

A Pública procurou pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado, sob a gestão do governador Ratinho Junior (PSD), para responder sobre quais políticas públicas existem para reduzir as mortes de pessoas trans, travestis e não-binárias, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Os estados do Piauí e Rondônia também tiveram o dobro de mortes de um ano para o outro, mas ambos haviam registrado apenas um caso em 2022.

No Brasil, como um todo, a Antra registrou 36 homicídios de pessoas trans menores de 18 anos nos últimos 7 anos. Quase 80% das vítimas tinham menos de 35 anos de idade. 

Além disso, a maioria das vítimas é de mulheres trans, e a média de pessoas trans negras assassinadas é de 78,7% do total.

De acordo com Gab Van, o Brasil é um país racista, o que reverbera no alto índice de mortalidade de pessoas trans pretas. Sobre o cenário fluminense, o ativista destaca: “O projeto de Segurança Pública do Rio de Janeiro é [de] matar jovens pretos, independente deles serem cis ou trans”. 

·        Falta de dados públicos prejudica informação sobre violência contra pessoas trans

O aumento na quantidade de homicídios de pessoas trans, apontado pelo levantamento da Antra, contrasta com a previsão de que os homicídios como um todo no Brasil tiveram redução em 2023. Segundo projeção do Ministério da Segurança Pública, a quantidade de assassinatos no país caiu 6% em relação a 2022.

O relatório também aponta que há um vazio de dados de crimes contra pessoas trans no Brasil nas bases de órgãos públicos. “Como vem sendo insistentemente denunciado desde a primeira edição deste dossiê, a ausência de dados governamentais é um problema sério que precisa de atenção. Dados sobre essas violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é reportado pelos canais de notícias”, destaca o texto.

Apesar dos dados de crimes, o relatório também destaca como avanços a recriação do Conselho Nacional pelos direitos da população LGBTQIA+, um novo grupo de trabalho no Ministério da Saúde para revisar a política de saúde para a população trans, a criação de uma estratégia nacional de enfrentamento à violência contra pessoas LGBTQIA+, dentre outras ações. Além disso, neste ano de 2024, são comemorados 20 anos de visibilidade trans no país.

 

Fonte: Agencia Pública

 

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