Bioma mais degradado do Brasil, Pampa está
virando soja e areia
Com uma área de apenas
176 mil km², ou meros 2% do território nacional, o Pampa —grosso modo, a metade
sul do Rio Grande do Sul —, é um bioma do Brasil praticamente “invisível”.
Enquanto os olhos e a atenção do mundo estão voltados para a Amazônia e, em menor
grau, para o Pantanal e o Cerrado, o extremo sul do país está sendo degradado
sem que quase ninguém dê atenção.
Segundo dados do MapBiomas, entre
1985 e 2022, 2,9 milhões de hectares de sua vegetação campestre foram
destruídos para dar lugar a áreas de agricultura e silvicultura. A redução
nesses 38 anos equivale a 32% da área que existia no Brasil em 1985, quando se
estendia por 9 milhões de hectares.
Conforme o
levantamento do MapBiomas, entre 1985 e 2022, o uso agrícola do solo no Pampa
gaúcho — sobretudo para o cultivo de soja — avançou 2,1 milhões de hectares. No
caso da silvicultura (pínus e eucalipto), o aumento de sua extensão foi de mais
de 720 mil hectares no período, o que corresponde a um crescimento de 1.667%.
O estudo do MapBiomas
foi além do Brasil e verificou a situação de todo o Pampa Sul-americano, que se
estende pelo Brasil, Argentina e Uruguai por quase 110 milhões de hectares
(equivalente a duas Franças). Os dados levantados mostram que, entre 1985 e 2022,
houve uma redução total de 20% da vegetação campestre no bioma, incluindo 9,1
milhões de hectares de campos nativos.
Segundo o engenheiro
agrônomo Tales Tiecher, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o
Pampa gaúcho apresenta a maior biodiversidade de plantas por metro quadrado entre os
ecossistemas brasileiros, mas tem sofrido uma
drástica redução de sua área de vegetação nativa. “Proporcionalmente, o bioma
está entre o mais degradado do país, à frente da Amazônia e do Cerrado”, diz.
A perda de área de
vegetação campestre é a principal ameaça para a fauna e a flora locais,
acrescenta Tiecher. “Cerca de um quarto das aves campestres estão sujeitas a
algum grau de ameaça de extinção em pelo menos uma parte do bioma e cerca de 30
espécies de mamíferos estão sob risco de desaparecerem para sempre”, alerta.
“Além disso, diversas espécies de répteis, anfíbios e plantas também sofrem
ameaça.”
O biólogo Juliano
Ferrer dos Santos, do Departamento de Zoologia da UFRGS, diz que o avanço da
cultura agrícola no Pampa é tão rápido que os pesquisadores não conseguem
acompanhar o real estado de conservação de todas elas. “Em cada ida ao bioma
para acompanhamento e pesquisa com peixes-anuais, meu objeto de estudo, nos
deparamos com uma situação mais crítica em relação às áreas conhecidas de
ocorrência e outras propícias para sua sobrevivência”, conta.
Ele explica que
os peixes-anuais, ou
peixes-das-nuvens, que incluem sete espécies nesta categoria (gênero Austrolebias),
habitam pequenos lagos, com menos de 100 m², que se formam durante a época
chuvosa no inverno em meio aos campos do Pampa. “Quando eclodem, crescem muito
rápido e já se reproduzem, porque no final da primavera seus ambientes
aquáticos vão secando e eles, morrendo”, explica Santos. “Mas seus ovos são
enterrados junto ao barro e somente no próximo ano irão eclodir. Quando os
lagos secam, não há indicação de que por ali vivem espécies únicas de peixes.”
·
O problema dos areais
O avanço da
agricultura e da silvicultura — e a consequente destruição de grandes áreas de
vegetação campestre e campos nativos — está contribuindo também para agravar um
problema antigo do Pampa brasileiro.
Trata-se dos chamados
areais, ou regiões de arenização, que no Brasil existem no Rio Grande do Sul e
na Região Centro-Oeste. Sua origem remonta a 200 milhões de anos, quando a
maior parte do centro-sul brasileiro era um imenso deserto. Hoje essa área é conhecida
geologicamente como Formação Botucatu. É um solo pobre, com muita areia em sua
composição.
A diferença básica
entre área de desertificação e areal está na quantidade de chuva que o local
recebe. A 1.ª Conferência sobre Desertificação das Nações Unidas, realizada no
Quênia, em 1997, definiu a primeira como “diminuição ou a destruição do potencial
biológico da terra, que poderá desembocar, em definitivo, em condições do tipo
deserto”.
O território gaúcho
não é, portanto, uma região afetada pela desertificação. Ele está localizado
numa região de clima subtropical, com precipitação média anual de 1.400
milímetros. Por isso, está fora da zona onde o clima e a ação do homem têm sido
o motivo principal da degradação, como é o caso da Caatinga. Hoje, os areais no
Brasil são considerados área de atenção especial.
O geógrafo Roberto
Verdum, do Instituto de Geociências da UFRGS, explica que a arenização é o
processo de formação de depósitos arenosos de origem fluvial e eólica datados
do Pleistoceno (de 2,5 milhões a 11,7 mil anos atrás) e Holoceno (de 11 mil
anos atrás até o presente), associados a fatores como clima, relevo e cobertura
vegetal. Podem estar ou não relacionados a atividades agrícolas.
Segundo ele, a gênese
dessas manchas arenosas está relacionada à suscetibilidade das rochas e dos
solos do Pampa à dinâmica de chuvas torrenciais e períodos de seca. “Assim, os
areais estão em constante retrabalhamento por agentes climáticos, essencialmente
hídrico e eólico”, explica.
As atividades
agrícolas sobre áreas naturalmente frágeis, somadas a um substrato fortemente
suscetível à arenização, podem, no entanto, potencializar os fatores que dão
início e contribuem para a evolução desse processo.
“Os impactos do mau
uso e manejo do solo, com emprego de tecnologias inadequadas para os frágeis
solos dessa região, podem se constituir como um dos principais fatores de
contribuição para o surgimento de novos focos de arenização no contexto atual”,
alerta Verdum.
Segundo o geógrafo
Neemias Lopes da Silva, também da UFRGS, o que está ocorrendo no Pampa é a
intensificação dos processos erosivos associados à arenização pela ação humana.
“Os solos são frágeis
e pouco consolidados. Atividades como o alto pastoreio, ou o próprio peso do
maquinário agrícola, pode compactar a terra e auxiliar no desenvolvimento de
sulcos por onde a água escoará de forma concentrada até desenvolver ravinas e,
posteriormente, voçorocas”, explica. Segundo Silva, tais processos movem e
expandem sedimentos arenosos pela ação da água e do vento.
·
Revertendo a
arenização
De acordo com Verdum,
mesmo que os areais não tenham se ampliado espacialmente desde o monitoramento
feito a partir dos anos de 1980, eles podem ser agravados pela produção
agropecuária. Hoje eles somam ao todo 3.663 hectares, espalhados pelos
municípios de Alegrete, Cacequi, Itaqui, Maçambará, Manuel Viana, Quaraí,
Rosário do Sul, São Borja, São Francisco de Assis e Unistalda.
A área dos areais pode
ser pequena se comparada à extensão total do Pampa, mas é significativa
individualmente para cada proprietário que tenha suas terras afetadas pelo
fenômeno.
É o caso do produtor
de arroz e presidente do Sindicato Rural de Itaqui e Maçambará, Raul Borges.
Suas terras próprias têm 120 hectares, das quais 46 eram de areais quando ele
as comprou há mais de 15 anos. “Pode parecer pouco, mas para mim era muito significativo,
pois chegava a mais de um terço de minha propriedade”, diz.
Por isso, ele resolveu
recuperar o areal. Depois de muitas tentativas frustradas, Borges conseguiu
bons resultado cobrindo a areia com casca de arroz ou as cinzas dela. “Hoje,
cerca de 25 a 30 hectares estão recuperados”, conta. “Em parte da área, a vegetação
natural voltou.”
Além da falta de ação
para recuperar as áreas arenizadas, outro problema são as tentativas
inadequadas de fazer isso, como é o caso da silvicultura. Desde a década de
1970, houve projetos, inclusive alguns com apoio do governo estadual do Rio
Grande do Sul, de recuperar os areais plantando eucaliptos sobre eles.
“Muitas das propostas
de atividades econômicas, que veem os areais somente como um problema a ser
combatido, são responsáveis por intervenções que descaracterizam a paisagem e
alteram a dinâmica deste ecossistema”, diz Silva. “É o caso da silvicultura, com
a ideia de formação de uma matriz de produção florestal nestas áreas.”
De acordo com ele,
essa alternativa não resolve nada. “Onde a silvicultura é desenvolvida, o areal
não é recuperado, ele somente fica oculto em imagens aéreas e toda a
biodiversidade adaptada à área é substituída pelos eucalipto e por folhas sobre
o solo”, critica. “Algumas espécies vegetais são endêmicas dos campos com
areais. Os processos erosivos não cessam e a dinâmica natural é alterada, sem
falar na transformação paisagística, que altera a vegetação herbácea e
arbustiva com areais para um grande ‘muro verde’.”
Fonte: Mongabay
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