A
confissão de abuso sexual feita por ex-líder de seita cristã secreta
Robert
Corfield, um homem que abusou de um menino em uma igreja cristã secreta na
década de 1980 no Canadá, falou publicamente sobre o caso pela
primeira vez.
Ele foi
confrontado pela BBC como parte de uma ampla investigação sobre denúncias
de abusos sexuais infantis que
supostamente aconteceram ao longo de décadas na seita, conhecida como The Truth
(A Verdade).
O nome de
Corfield é um dos mais de 700 apontados por diversas pessoas em uma linha
direta criada para denunciar abusos sexuais dentro da igreja.
A seita
diz que investiga todas as alegações de abuso.
Acredita-se
que a igreja, que não tem nome oficial, mas é frequentemente chamada de The
Truth ou The Way (A Verdade ou O Caminho), tenha até 100 mil membros em todo o
mundo, a maioria na América do Norte.
A escala
dos abusos passou a ser conhecida depois que a linha direta de denúncias foi
criada, em 2023, por duas mulheres que também dizem ter sido abusadas
sexualmente por um líder religioso quando eram crianças.
Pessoas
telefonaram alegando que também foram abusadas, com testemunhos que remontam de
décadas até os dias atuais.
A natureza
altamente secreta e conservadora da igreja fez com que os casos de abuso se
multiplicassem, dizem membros antigos e atuais que falaram à BBC.
A seita
possui muitas regras não escritas, incluindo que os seguidores devem se casar
dentro do grupo e manter o mínimo de contato com pessoas de fora.
A igreja
foi fundada na Irlanda por um evangelista escocês em 1897 e é construída em
torno de ministros que espalham os ensinamentos do Novo Testamento através da
fala.
Uma das
suas características principais é que os ministros abandonam os seus bens e
devem ser acolhidos pelos membros da igreja enquanto viajam, espalhando o
evangelho. Isto torna as crianças que vivem nas casas que visitam vulneráveis ao abuso, disseram as fontes.
Aviso:
este artigo contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores
O
ex-membro da igreja Michael Havet, de 54 anos, disse à BBC que foi abusado por
Robert Corfield na década de 1980. Os crimes aconteceram desde que ele tinha 12
anos.
"As
pessoas me chamavam de 'companheiro de Bob' — eu simplesmente me sentia sujo e
ainda me sinto", diz Havet, falando de sua casa em Ottawa.
Depois de
abusar dele, Havet diz que Corfield o forçou a se ajoelhar ao lado dele e orar.
"Tive
que trabalhar duro para superar isso e encontrar minha vida de oração
novamente", diz ele.
Quando
confrontado pela BBC sobre as alegações de abuso infantil, Corfield admitiu que
eles ocorreram durante cerca de seis anos na década de 1980.
"Tenho
que reconhecer que isso é verdade", disse ele.
Corfield
era ministro — conhecido dentro da seita como "trabalhador" — em
Saskatchewan, Canadá, na época do abuso.
Esta é a
primeira vez que ele admite publicamente o abuso infantil, embora já tenha sido
confrontado por membros da igreja e tenha escrito duas cartas privadas a Havet
em 2004 e 2005, pedindo perdão e dizendo que estava consultando um terapeuta.
Em uma das cartas, Corfield disse que estava "fazendo uma lista de
vítimas".
"Não
queremos perder ninguém que tenha sido vítima de minhas ações", escreveu
ele.
No
entanto, quando questionado sobre isso pela BBC, Corfield disse que não houve
outras vítimas "no mesmo sentido que Michael", e que ele apenas havia
feito massagens em dois ou três outros adolescentes.
·
Abusadores receberam
'novo começo'
Havet está
entre a dúzia de pessoas que disseram à BBC que abusos generalizados foram
ignorados ou encobertos na seita durante décadas – com alguns dos acusados permanecendo em posições de poder durante anos.
A forma
como o seu próprio caso foi tratado pela Igreja é um grande exemplo disso,
acredita Havet.
Ele
denunciou seu abuso em 1993 a Dale Shultz, o líder mais antigo da igreja de
Saskatchewan, conhecido como "superintendente". Os superintendentes
são os membros mais antigos da igreja e há um para cada estado dos EUA e
província canadense onde há seguidores ativos.
Mas Shultz
não foi à polícia e, segundo Havet, o agrediu violentamente algumas semanas
depois porque pensava que ele havia contado a outras pessoas sobre as acusações
de abuso.
"Ele
agarrou meus ombros e gritou comigo, batendo minha cabeça contra um pilar de
concreto", diz Havet, "me cortando e me fazendo sangrar".
Havet diz
que Shultz então o "encorajou" a deixar a igreja, enquanto seu
abusador de infância, Robert Corfield, acabava de ser transferido para ser
ministro do outro lado da fronteira, no estado americano de Montana.
Corfield
disse à BBC acreditar que foi decisão de Shultz enviá-lo para Montana, onde
permaneceu no cargo por 25 anos.
"Foi
sugerido que isso me daria um novo começo e provavelmente também colocaria um
espaço entre mim e a vítima", disse ele.
Corfield
foi afastado do cargo de ministro no ano passado após ser confrontado sobre o
abuso de Michael por outro membro da congregação, de acordo com e-mails
internos da igreja vistos pela BBC. Um e-mail também sugeriu que "é
possível que haja vítimas adicionais".
O
ex-ministro disse à BBC que "renunciou voluntariamente quando as acusações
de Michael foram apresentadas" contra ele, e que "não foi informado
de quaisquer alegações além disso".
Quando
contatado pela BBC, Dale Shultz disse por e-mail que "muitas das
informações que você recebeu a meu respeito são distorcidas e imprecisas".
No entanto, ele se recusou a entrar em mais detalhes.
·
Crise global
Havet é um
dos mais de mil membros atuais e antigos da seita que contactaram a linha
direta criada pelo grupo chamado 'Advocates for The Truth' (Defensores da
Verdade).
O grupo
foi fundado no ano passado pelas americanas Cynthia Liles, Lauren Rohs e Sheri
Autrey.
Elas
afirmam ter recebido os nomes de mais de 700 supostos abusadores em 21 países,
incluindo Reino Unido, Irlanda, Austrália e Rússia. Elas planejam abrir
processos contra os que estão na lista e levá-los à polícia.
Todas as
mulheres pertenciam à igreja. Lauren Rohs e Sheri Autrey dizem que foram
abusadas pelo mesmo homem.
Esse homem
era o pai de Lauren Rohs, um ministro sênior chamado Steve Rohs.
Lauren
Rohs localizou Autrey depois de ler um relato online feito de forma anônima por
ela sobre abuso sexual infantil, em 2019.
Na
postagem, Autrey descreveu como seu agressor cantava a música Maneater da
dupla pop dos anos 80 Hall & Oates para ela quando estava em seu quarto à
noite.
Rohs soube
imediatamente que o homem descrito como o autor do crime era o seu próprio pai,
pois era a mesma canção que ela se lembra dele cantando para ela quando
criança.
"Fiquei
ali sentada, atordoada", diz a mulher de 35 anos. "Isso me
desorientou."
Ela diz
que seu pai a sujeitou a abuso sexual, físico e emocional desde que ela tem
lembranças.
Enquanto
isso, Autrey diz que Steve Rohs ficou na casa de sua família no condado de
Tulare, Califórnia, por dois meses em 1982, quando ela estava completando 14
anos, e a molestava diariamente.
Ele
cantava Maneater porque "parte de sua manipulação era que
eu era uma sedutora selvagem", diz a mulher de 54 anos, em referência à
letra da música.
Há uma
diferença de idade de 20 anos entre as duas mulheres. Quando sua filha nasceu,
Steve Rohs havia desistido de seu papel como trabalhador na igreja e
constituído família em San Diego, Califórnia. Mais tarde, eles se mudaram para
os estados de Washington, Idaho e Colorado.
Lauren
Rohs diz que seu pai deu vários motivos para suas constantes mudanças,
incluindo que "Deus precisa de nós em um novo lugar".
A BBC
apresentou todas as acusações a Rohs em e-mails e mensagens nas redes sociais,
mas ele não respondeu.
·
A cultura do abuso
persiste
Lauren
Rohs diz que durante o seu tempo na igreja nas décadas de 1990 e 2000, os
trabalhadores eram como "semideuses" e nunca eram questionados.
Segundo ela, as denúncias que recebeu pela linha direta confirmam que esta
cultura persiste até hoje.
Tal como
Havet, Autrey diz que denunciou o seu agressor e ele foi protegido.
Em 1986,
ela confidenciou à mãe sobre ter sido abusada por Steve Rohs.
"Me
senti assustada, suja, envergonhada e culpada", diz Autrey, que tinha 17
anos na época e acreditava que teria "grandes problemas" pelo que
aconteceu.
Mas sua
mãe acreditou nela imediatamente e denunciou o homem ao superintendente do
estado da Califórnia, que já faleceu.
Em uma
carta datada de 11 de maio de 1986, escrita por Rohs e vista pela BBC, ele
admite ao superintendente que ele e a adolescente "se beijaram e se
tocaram intimamente" e que ele "implorou por perdão" desde
então.
Mais
tarde, Rohs foi levado à casa de Autrey por trabalhadores, onde se desculpou
verbalmente com ela.
"Respondi
que ele não estava arrependido pelo que tinha feito ou teria se desculpado
muito antes", lembra Autrey.
Apesar de
admitir o abuso, Steve Rohs continuou a ser um membro respeitado e influente da
igreja. Sua filha diz que ele até foi promovido em 1994 a presbítero da igreja
– uma pessoa de antiguidade que realiza reuniões em sua própria casa.
A BBC
entende que ele agora mora em Minnesota com a mãe de Lauren Rohs. A filha deles
está afastada dos dois.
Ele
trabalha como agente de seguros e foi um membro ativo da seita até abril do ano
passado, depois que sua filha e Autrey levaram suas alegações ao
superintendente do estado e ele foi afastado das reuniões.
·
Enxurrada de denúncias
O
catalisador para a criação da linha direta foi a morte do superintendente do
Oregon, Dean Bruer, em 2022.
Ele foi um
dos líderes mais respeitados da A Verdade e trabalhou para o grupo durante 46
anos, em seis estados dos EUA.
Uma carta
interna foi escrita por seu sucessor afirmando que Bruer tinha um histórico de
abusos, incluindo "estupro e abuso de vítimas menores".
Não está
claro qual foi a motivação para escrever a carta, mas ela vazou e logo chegou
ao Facebook e ao TikTok.
Com isso,
mais pessoas começaram a se apresentar para contar suas próprias histórias de
abuso.
"Acho
que pensávamos que a linha direta era apenas para as vítimas de Dean Bruer, mas
o que a linha direta fez foi apenas abrir a porteira", diz Rohs.
As amigas
dizem que agora querem o tipo de justiça que não conseguiram para si próprias.
"Quando
encontrei Sheri, foi uma cura bastante rara e grande", diz Rohs.
"Tem
sido angustiante para os sobreviventes voltar e ouvir a quantidade de sujeira e
maldade", diz Autrey.
"A
nossa experiência já foi ruim o suficiente, mas ver outras pessoas em situações
tão terríveis é mais do que irritante. Tem sido feio, mas também muito
gratificante."
Autrey
deixou seu cargo na Advocates em dezembro.
Como a
seita não tem um líder oficial, a BBC apresentou as alegações a mais de 20
supervisores na América do Norte, por e-mail.
O único a
responder foi Rob Newman, superintendente da Califórnia.
"Abordamos
ativamente todas as alegações de abuso envolvendo participantes da nossa
irmandade", escreveu ele em um e-mail enviado antes da confissão de
Corfield.
"Nossa
maior preocupação é que as vítimas recebam a ajuda profissional de que
precisam. Levamos a sério todas as alegações de abuso, recomendamos fortemente
o treinamento obrigatório para todos e encorajamos todos a relatar problemas às
autoridades legais competentes".
Autrey
acredita que a mudança não acontecerá antes que algum supervisor culpado seja
preso.
"É
uma máquina extremamente bem calibrada para criminosos", diz ela. "É
um sistema aperfeiçoado que já existe há 12 décadas."
Fonte: BBC
News Mundo
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