Brasil – último bastião da velha ordem?
No dia 5 de março passado, Friedrich Merz,
líder dos Cristãos-Democratas (CDU), partido que venceu as eleições
parlamentares alemãs, anunciou acordo com seu costumeiro rival à esquerda (o
Partido Social-Democrata, SPD) para alterar uma espécie de “regra de ouro” da
Constituição do país, que impõe um severo limite à capacidade estatal de
contrair dívida. A alteração, aprovada no Parlamento poucos dias depois,
permitirá o lançamento de um plano de investimentos públicos – da ordem de 500
bilhões de euros, mas que pode chegar a 1 trilhão, mais de um quinto do PIB,
por sua vez o maior da Europa – para a defesa e a infraestrutura.
A economia alemã entrou numa espiral
recessiva desde o início da guerra da Ucrânia, com a explosão dos custos de
energia e a retração do investimento privado e do consumo doméstico. Friedrich
Merz disse que seu país fará “tudo o que for necessário” para se proteger das
sombrias mudanças da geopolítica mundial, e sugeriu que os demais países da
União Europeia façam o mesmo, agora que não podem mais contar com a ajuda farta
e irrestrita de seu velho aliado no outro lado do Atlântico. Também não é
segredo que essa medida inusitada visa, junto com a reanimação da economia e o
rearmamento, estancar o crescimento da extrema direita (a Alternativa para a
Alemanha – AfD), que nessas eleições obteve votação histórica, tornando-se a
segunda maior força política do país.
O simbolismo dessa mudança não passará
despercebido a ninguém. Pois a Alemanha tem sido nas últimas décadas o castelo
inexpugnável dos preceitos neoliberais, a guardiã mais intransigente do tabu da
“austeridade fiscal”. Lembremos que, um pouco depois do crash de
2008, quando os Estados ocidentais mais poderosos se viram levados a tapar o
imenso buraco financeiro deixado pela livre-jogatina dos mercados de capitais,
a Alemanha impediu qualquer iniciativa do Banco Central europeu para resgatar
os países do bloco mais atingidos pelo prolongado falecimento da economia.
E com isso assistiu impávida às terríveis
agruras do povo grego, então governado por um partido de esquerda, não cedendo
nem um milímetro às tratativas que permitiriam algum respiro financeiro a um
país à beira do rompimento de seu tecido social. Na época, os principais órgãos
da imprensa internacional aplaudiram a intransigência, com seus comentaristas
martelando que se tratava de reconhecimento das “leis objetivas” da economia.
Mas, agora, perante o incrível cavalo-de-pau
anunciado pelo provável futuro chanceler da Alemanha, essa mesma imprensa não
ergueu a mínima objeção, nem mesmo um pio contra um passo tão explícito para
fora da ortodoxia até aqui estabelecida. Onde estão, por exemplo, os velhos
argumentos de que coisas do tipo provocariam desequilíbrios estruturais na
economia, gerando apenas “ineficiência, inflação e finalmente pobreza”? Que
poder mágico é esse que permitiria desta vez suspender as tão proclamadas leis
de ferro da economia?
Impossível não ouvir as palavras que gritam
do fundo desse silêncio. “É para fazer mísseis, tanques, caças, drones etc.,
além de toda a infraestrutura correspondente, e pagar um novo exército de
soldados e oficiais? Tudo bem. É para promover a saúde e a educação públicas,
combater a miséria e a concentração da riqueza nas mãos de poucos? Nada feito”.
A notar que, provavelmente, a segunda alternativa, se feita lá atrás, teria
evitado a atual proliferação de candidatos a ditador, além desse perigosíssimo investimento
na preparação para a guerra, com todo seu potencial de sofrimento, morte e
destruição.
Enquanto os tambores da guerra rufam cada vez
mais alto nas regiões centrais da (des)ordem mundial, a única “boa” notícia, se
tanto, que talvez seja possível vislumbrar desses desdobramentos – pelo menos
enquanto o chumbo grosso não chega a estas bandas – é que as vacas sagradas do
receituário neoliberal vão sendo, uma a uma, simplesmente profanadas, seja no
altar dos imperativos geopolíticos, seja no mais terrestre dos pragmatismos.
Como vimos, raramente em alto e bom som;
porém, tanto mais claro quanto menos dito. Ora, isso não poderia abrir uma
janela, uma lufada de vento favorável para os governos progressistas que, nas
margens do sistema, vêm lutando aos trancos e barrancos para manter de pé o
estandarte da democracia? “Aos trancos e barrancos”, quer dizer, cada vez mais
entrincheirados por uma onda autoritária que, mesmo sofrendo revezes eleitorais
e, em alguns casos (como no Brasil), até judiciais, não dá sinais de abatimento
— pelo contrário, reanimada agora pela volta triunfal de seu capo di
tutti capi à Casa Branca.
Mas as coisas não parecem tão simples assim.
Observadores da cena brasileira estão, ou deveriam estar, intrigados para
entender por que diabos, justamente num governo comandado por Lula – que também
fez um retorno triunfal, este não só pelo lado certo (como não poderia deixar
de ser), mas com inédito respaldo de uma amplíssima frente política –
justamente sob sua liderança, dizíamos, o campo democrático se vê assombrado
por um desacerto interno constrangedor.
Pode causar algum espanto a fragilidade de
coordenação do governo, quando vemo-lo tropeçar em suas próprias pernas, como
aconteceu no recente affair do planejado, depois desmentido,
controle sobre as transações por pix – uma bola que escapou redonda para os pés
dos adversários. Porém, o que talvez nos cause perplexidade ainda maior é que
esse mesmo governo se esforce tanto para mostrar que segue à risca as
prescrições da ortodoxia econômica, enquanto aparenta ou tenta de fato cumprir
a promessa presidencial de “colocar o pobre no orçamento”.
É que, já bem passados da metade do mandato,
o primeiro esforço até agora não surtiu o efeito esperado, não aplacando em
nada a gana dos credores, e do mercado financeiro de um modo geral, por um
corte violento dos gastos públicos. Quanto aos esforços vindos da outra ponta,
estes não apenas se veem, por motivos óbvios, atravancados pelas pressões do
primeiro, mas também pelas novas intromissões do Congresso Nacional na lei
orçamentária, via o inchaço das emendas parlamentares. Lula 3, enfim, se mexe
para lá e para cá, mas o povo, em vista das pesquisas sobre o desempenho de sua
gestão, teima em não reconhecer que o mandato está do seu lado… Ironias à
parte, o fato é que, ao tentar servir a dois senhores, acaba não servindo a
nenhum.
Os estrategistas do Palácio do Planalto sabem
que deixar a promessa de campanha do presidente no desamparo seria um ato de
suicídio político, pois romperia o mais importante elo material que o vincula à
grande massa empobrecida do eleitorado – a mesma que decidiu a seu favor, ainda
que por pequena margem, no pleito de 2022.
Que busquem saciar, na medida do possível, a
fome dos parlamentares por recursos orçamentários é até compreensível: não se
sabe até aqui que alternativa poderia haver à construção de uma ampla base
parlamentar, por instável que seja, sob pena de um bloqueio sistemático a seus
projetos legislativos ou, no limite, de uma rasteira semelhante à que encerrou
precocemente o mandato de Dilma Rousseff. Bem calejado nesse terreno, Lula não
espera vencer uma quebra-de-braço com o Congresso, especialmente depois das eleições
municipais do ano passado; mas poderia pelo menos garantir um “empate técnico”
e, quiçá, alguns aliados dentro do espaço conservador para a disputa de 2026.
Contudo, difícil mesmo é entender seus
repetidos esforços para aplacar os chefões do mercado financeiro, desde que
aceitou discutir a pauta do corte de gastos. Concedamos ao sempre habilidoso
ministro da Fazenda de Lula, Fernando Haddad, o benefício da dúvida, quando no
início da gestão elaborou um plano – o assim chamado “arcabouço fiscal” – para
chegar a algo como um meio termo com a banca. Sem dúvida, é melhor fazer certas
concessões e chegar a um acordo com ela do que sofrer o castigo diário de suas
represálias costumeiras, especialmente a fuga de capitais, que desvalorizam
nossa moeda e, por tabela, jogam para o alto os preços mais básicos da
economia.
Mas o que vimos acontecer? Que nada que o
ministro procurou fazer nessa direção, até o limite da completa desfiguração do
perfil progressista do governo, e ao preço de muito desgaste interno pelas
trombadas que produzia com outros ministérios, satisfez às expectativas do
suposto interlocutor. E, depois de dois anos de trabalho infrutífero, seria o
caso de perguntar se seus principais operadores buscavam mesmo qualquer
satisfação, em vez de apenas um pretexto para manifestar suas reais
inclinações.
Ou seja, que não querem o lulismo no leme do
Estado de modo algum, nem hoje nem amanhã – o que, aliás, passaram a deixar
eloquentemente claro nos últimos tempos, sem mais nenhum disfarce: basta
acompanhar as repentinas variações entusiasmadas das cotações de nossa moeda e
do mercado acionário, toda vez que pinta alguma má notícia para o governo,
inclusive sobre o estado de saúde do presidente.
Porém, não se trata de instigar o comando do
governo a fazer gestos bruscos e açodados, contra a disposição prevalecente de
um grupo social que agora podemos ter certeza de que não está colocado nem
mesmo numa posição neutra. É um grupo muitíssimo minoritário na sociedade,
numericamente ínfimo, mas que ao longo do período neoliberal foi acumulando
poder imenso, capaz de causar danos intencionais profundos à vida cotidiana de
um país.
O cavalo-de-pau pretendido pelo provável
futuro chanceler alemão, podemos também ter certeza, é desde já um ato muito
bem medido e refletido, e que acompanha uma mudança mais ampla do que
poderíamos chamar de “lei da opinião” que permeia os meios influentes do Norte
global. Gostando ou não disso em seu íntimo, esses meios chegaram à conclusão
de que os tempos bicudos em que vivemos exigem deslocamentos mais velozes de
orientação, o que no fundo significa que as práticas neoliberais estabelecidas,
e seus preceitos centrais, já não servem mais a seus interesses.
O governo de Joe Biden, embora derrotado nas
urnas, procurou à sua maneira hesitante operar esse deslocamento; é o que Trump
2 – com doses maciças de violência e autoritarismo, tão características do
fascismo que pretende reeditar – está fazendo agora, à base de improvisos e,
claro, mais “batendo” do que “assoprando”; e é o que a Europa, empurrada por
seu Estado mais poderoso, aparentemente concluiu que terá de fazer.
Mas, disso também sabemos muito bem, o que
vale para os Mares do Norte não necessariamente vale para os Mares do Sul. Ou,
pelo menos, não imediatamente. Eis que vivemos a situação paradoxal em que o
próprio núcleo do sistema se mexe enquanto a periferia permanece como está. E
seria uma tremenda ironia do destino, como já sugerido, que precisamente o
Brasil sob a batuta de Lula se tornasse nesta quadra histórica, e ao Sul, um
dos últimos bastiões de uma ordem que caduca a olhos vistos.
Mas é difícil que os novos ventos, filtrados
que sejam, não acabem chegando às nossas praias. De algum modo, a lógica
territorial da política das grandes potências em confronto afetará em sentido
negativo a influência da dimensão basicamente financista da ordem neoliberal,
cujo poder reside na aceitação de sua extraterritorialidade e na liberdade
irrestrita de movimento que lhe corresponde. Como não perceber que uma guinada
fundamental desse quadro já está acontecendo, com a série de retaliações que os
diferentes países têm sido obrigados a fazer, diante da implacável política
protecionista desencadeada por Donald Trump, e que tende a ferir de morte a tão
decantada “cadeia global de suprimentos”?
Sim, o governo (com explícito engajamento do
ministro Fernando Haddad) ensaia agora uma boa briga em torno da taxação dos
mais ricos, em troca de isentar os que ganham até 5 mil reais. Mas, dada a
envergadura dos desafios à frente, ainda é pouco. Se ciente disso, Lula 3 – que
eu, evidentemente, desejo que dê certo, para o bem da cambaleante democracia em
que ainda vivemos – tem de se preparar para uma mudança mais drástica de
orientação.
E, mesmo alterando com prudência a direção do
Estado, deve imediatamente deslanchar, sem as inibições que deram o tom da
primeira metade do mandato, a batalha da opinião para mostrar que o Brasil não
pode permanecer passivo às transformações da conjuntura internacional, sob pena
de ficar “pendurado na brocha”, como se diz, uma vez que o chão da velha ordem
está simplesmente desaparecendo sob seus pés.1
Mas deve fazer essa batalha, para começar, no
interior do próprio campo democrático, porque é nele que ainda se agarram
forças que, a qualquer custo, pretendem manter tudo como está, manifestando-se
através de vozes influentes da opinião pública, que insistem em repetir o
mantra neoliberal. Estas mobilizam especialmente o argumento de que Lula 3 foi
eleito graças a uma frente ampla – como de fato foi –, a qual se comprometeu
preservar durante todo o mandato. Um argumento, a nosso ver, capcioso, que não apenas
reivindica um falso direito de veto a uma pequena minoria, mas na prática
condena o governo a uma paralisia fatal. Movidos por interesse ou cegos pela
ideologia, querem que a ordem social que preconizam continue parasitando os
valores da democracia – o que só levará à morte simultânea de ambas. Urge,
portanto, separá-las. Será sem dúvida um passo ousado, em vista do conhecido
estilo conciliador do presidente, mas que Lula terá de fazer, mais cedo ou mais
tarde – provavelmente mais cedo, dada a velocidade dos acontecimentos. Isso, se
quiser de fato deixar para a posteridade esta última e mais transcendente marca
de seus feitos: aprumar a sociedade brasileira rumo a um porto seguro para
nossa democracia.
Fonte: Por Cicero Araujo, em A Terra é Rednda

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