terça-feira, 22 de abril de 2025

Brasil tem 'autonomia universitária' e verba liberada automaticamente; entenda diferenças em relação aos EUA

As universidades públicas brasileiras, de acordo com a Constituição Federal, estão blindadas de interferência de governo na gestão financeira das instituições, ao contrário dos Estados Unidos (EUA), que não possuem uma legislação clara sobre o orçamento.

"No Brasil, o posicionamento mais impositivo que o governo pode tomar é o bloqueio do orçamento ou a contenção de verba por um tempo, mas a União não pode deixar de pagar o mínimo às universidades", explica o presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento (Fineduca) Nelson Amaro.

Ou seja, pela Constituição, "não tem como o governo brasileiro agir neste 'modelo Trump', o não detalhamento da constituição americana deixa muito espaço ao poder do governante. Lá, como a constituição fala pouco, ela atua pouco", completa o especialista.

🌍O assunto repercutiu após o governo do presidente Donald Trump ter anunciado, na segunda-feira (14) o congelamento de cerca de US$ 2,3 bilhões (R$ 13,1 bilhões) em subsídios e contratos com a Universidade de Harvard, por meio do Departamento de Educação dos Estados Unidos.

A decisão do republicano foi firmada após a instituição declarar que não iria cumprir exigências da gestão de Donald Trump, como o fim de programas de inclusão e equidade.

Para as próximas semanas, o presidente Trump avalia cancelar a isenção fiscal concedida a Harvard e passar a taxá-la como uma "entidade política" por promover "doença inspirada em política, ideologia e terrorismo".

📌A medida pode ser tomada caso a Universidade não se desculpe por episódios de "antissemitismo" na instituição. O governo fez referência a protestos pró-Palestina e contra a guerra na Faixa de Gaza que ocorreram em várias universidades americanas ao longo de 2024.

Na última semana, o presidente republicano enviou uma carta a Harvard, que além de solicitar uma auditoria com estudantes, professores e dirigentes, também demandava:

  • reformas amplas na administração da universidade;
  • adoção de políticas de admissão; e
  • contratações “baseadas em mérito”.

A universidade, porém, afirmou que não iria atender às exigências do governo.

"Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, a autonomia universitária, didática e operatória são inegociáveis. Quando uma universidade faz concessões ao governo, a instituição passa a ideia de ser mais perene", avalia o diretor jurídico da Associação Brasileira Bruno Coimbra, diretor jurídico da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior.

Segundo ele, "Harvard, ao se firmar em seus princípios, demostra que a universidade é fiel ao plano educacional".

O especialista ainda pontua que as universidades devem se posicionar enquanto 'agentes mantenedores de conhecimento', visto que o comportamento reforça a autonomia e o poder da instituição como 'agente influenciador' nos debates públicos.

<><> O que a lei brasileira diz?

👉A legislação brasileira assegura a destinação monetária da União para o ensino e estabelece a autonomia das universidades públicas para gerir os investimentos. Os parâmetros foram instituídos a partir de 1988, com a Constituição Federal.

A norma regula que:

➡️Destinação mínima da verba arrecadada: A União deve aplicar, anualmente, no mínimo 18% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento de todas as fases do ensino. Já os estados, o Distrito Federal e os municípios devem destinar, no mínimo, 25% das receitas.

➡️Autonomia universitária: As instituições têm liberdade didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Essa autonomia garante às universidades o direito de definir, dentro dos recursos disponíveis, como investir em ensino, pesquisa e extensão.

Para o ano de 2025, o orçamento projetado para as despesas com Ensino Superior das Universidades Federais, excluindo os Institutos Federais e os Centro Federal de Educação Tecnológica, é de R$ 41 bilhões.

🔎O financiamento paras as universidades públicas federais é da Fonte 1000, que são recursos livres da União projetados no orçamento fiscal, com base na arrecadação de tributos. A informação consta no painel do Orçamento Federal.

<><> Como funcionam as normas nos Estados Unidos?

A Constituição dos Estados Unidos não garante explicitamente o financiamento das universidades. A Carta Magna americana, escrita em 1787, é enxuta e não trata diretamente da educação, que é considerada uma responsabilidade dos estados, e não do governo federal.

➡️Isso significa que: não há um artigo constitucional específico que obrigue o governo federal a destinar um percentual fixo de sua receita para a educação, como ocorre no Brasil com o artigo 212 da Constituição Federal.

Nos EUA, o financiamento das universidades se dá por meio de leis específicas aprovadas pelo Congresso, e os valores podem variar a cada ano, conforme o orçamento federal. O fator permite que o valor destinado à educação se torne mais suscetível às vontades do governo.

📌De acordo com especialistas ouvidos pelo g1, é mais fácil delimitar a destinação de recursos na educação brasileira do que na americana, visto que os EUA misturam verbas de iniciativas públicas e privadas. Ou seja, as universidades privadas também são financiadas pelo governo americano.

"A constituição brasileira é importante para delimitar o financiamento. Ela garante a autonomia da gestão de recursos nas instituições. O dinheiro é colocado a disponibilidade da gestão publica, e em tese, a instituição não tem que ir atrás desse dinheiro, é reponsabilidade do governo. Essa via dá uma boa integração do fluxo monetário", detalha Nelson Amaro.

  • O governo brasileiro financia as faculdades privadas?

👉No Brasil, o governo não distribui verbas para as instituições privadas. Os estudantes e universitários do Estado brasileiro são beneficiados por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni) e pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

>>> Os programas regulam que:

  • Prouni: O programa, criado em 2004, oferece bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de ensino superior para estudantes de baixa renda.
  • Fies: a iniciativa, criada em 1999, para financiar cursos superiores em instituições privadas, permite que estudantes com dificuldades financeiras paguem suas mensalidades somente após a conclusão do curso, com condições facilitadas de juros e prazos.

"Aqui, temos o ministério, as próprias fundações de cada universidade, o Estado brasileiro diretamente financiando as atividades das instituições de ensino. Com orçamento público definido, o governo brasileiro é o mantenedor. Já nos Estados Unidos, tem muito do olhar do investimento sob a educação", afirma Bruno Coimbra.

O especialista ainda explica que as universidades americanas recebem verbas de grandes empresas que contribuem no financiamento das atividades.

"As indústrias estão integradas às universidades, o próprio Google tem atividades de pesquisa e alta tecnologia empenhadas em Harvard", exemplifica Coimbra.

<><> Contingenciamento no Brasil

O Brasil passou por incertezas no orçamento da educação durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, no final de 2022. Após a sanção do Orçamento, o primeiro impacto para reitores veio em junho, depois de um bloqueio inicial de 14,5% do Orçamento da Educação.

Nos dias seguintes, o bloqueio foi reduzido a 7,2%, valor que foi repassado às universidades e institutos federais.

Entretanto, o que começou como um bloqueio terminou como corte, já que o valor não foi devolvido às instituições. Apenas na educação superior (universidades e institutos), a redução foi de R$ 438 milhões.

Em outubro de 2022, o MEC sofreu um novo bloqueio, desta vez de R$ 1 bilhão, após o governo anunciar um contingenciamento de R$ 2,6 bilhões que foi repassado aos ministérios.

Na ocasião, foram bloqueados R$ 328 milhões das universidades federais. O valor foi liberado posteriormente, depois de o ministério realocar verbas internamente.

¨      Trump x Harvard: entenda o que quer o presidente dos EUA e como a universidade tem desafiado o governo

De um lado, Harvard: a universidade mais antiga e rica dos Estados Unidos, com uma marca tão poderosa que seu nome virou sinônimo de prestígio. Do outro, o governo de Donald Trump: determinado a ir mais longe do que qualquer outro em uma tentativa de remodelar o ensino superior no país.

Ambos os lados estão firmes em uma disputa que pode testar os limites do poder do governo e a autonomia que transformou as universidades americanas em polos de atração para acadêmicos de todo o mundo.

Na segunda-feira (14), Harvard se tornou a primeira universidade a desafiar abertamente o governo Trump, que exige mudanças amplas para limitar o ativismo na instituição.

A universidade considera as exigências como uma ameaça não apenas à própria instituição, mas à independência que a Suprema Corte há décadas garante às universidades dos EUA.

“A universidade não abrirá mão de sua independência nem de seus direitos constitucionais”, escreveram os advogados da instituição em carta ao governo. “Nem Harvard, nem qualquer outra universidade privada pode permitir ser assumida pelo governo federal.”

O governo afirmou que está congelando cerca de US$ 2,3 bilhões (R$ 13,5 bilhões) em recursos destinados à universidade. A suspensão marca a sétima vez que a gestão Trump adota esse tipo de medida contra instituições de elite em uma tentativa de forçar o alinhamento com a agenda política do governo.

<><> 1. O poder de Harvard

Nenhuma universidade está mais preparada para resistir do que Harvard, que possui o maior fundo patrimonial do país: US$ 53 bilhões (R$ 312 bilhões).

Ainda assim, como outras grandes instituições, Harvard depende do financiamento federal para manter suas pesquisas científicas e médicas. Não está claro por quanto tempo a universidade conseguiria operar sem esses recursos.

A recusa de Harvard já começa a inspirar outras instituições. Após inicialmente aceitar parte das exigências do governo, a reitora interina da Universidade Columbia adotou um tom mais firme na segunda-feira.

Em comunicado interno, a presidente de Columbia, Claire Shipman, afirmou que algumas das demandas “não são passíveis de negociação”. Ela disse ter lido com “grande interesse” a recusa de Harvard.

Columbia era vista como uma das universidades com maior potencial para contestar as ordens do governo, mas sofreu críticas de professores e grupos em defesa da liberdade de expressão ao concordar com concessões.

“Harvard é uma instituição especialmente poderosa. Sua decisão tem potencial para mobilizar outras universidades em uma resposta coletiva”, disse David Pozen, professor de direito em Columbia. Ele argumenta que as exigências do governo são ilegais.

<><> 2. As ameaças de Trump

Trump fala durante encontro com Bukele na Casa Branca — Foto: Reuters/Kevin Lamarque

Na terça-feira (15), Trump ameaçou intensificar o embate. Nas redes sociais, sugeriu que Harvard pode perder seu status de isenção fiscal “se continuar promovendo ideologias políticas e apoiando ‘doenças’ inspiradas ou apoiadas por terroristas”.

A crise levanta dúvidas sobre até onde o governo está disposto a ir. Independentemente do desfecho, uma batalha judicial é considerada certa. Um grupo de professores já entrou na Justiça contra as exigências, e é esperado que Harvard também mova sua própria ação.

Na carta de recusa, a universidade afirma que as ordens violam seus direitos garantidos pela Primeira Emenda e outras leis de direitos civis.

Para o governo Trump, Harvard representa o primeiro grande obstáculo na tentativa de impor mudanças em instituições que, segundo republicanos, se tornaram centros de liberalismo e antissemitismo.

O embate ameaça a tradicional relação entre o governo federal e universidades que dependem de recursos públicos para realizar descobertas científicas. Antes vistos como um benefício ao bem comum, esses fundos passaram a ser usados como forma de pressão política.

“Verbas federais são um investimento, não um direito adquirido”, afirmaram autoridades em carta enviada a Harvard na semana passada.

<><> 3. Os argumentos do governo

O governo acusa a universidade de descumprir obrigações previstas na legislação de direitos civis, que é uma condição para receber recursos públicos. Também alega que a ideologia política está sufocando a liberdade intelectual no campus.

A campanha de Trump tem mirado instituições acusadas de tolerar antissemitismo em meio à onda de protestos pró-Palestina nos campi.

Algumas das ordens do governo miram diretamente esse ativismo, exigindo que Harvard aplique punições mais duras a manifestantes e revise a admissão de estudantes estrangeiros considerados “hostis aos valores americanos”.

Outras determinações ordenam o fim de programas de diversidade, equidade e inclusão, além da interrupção de práticas de admissão e contratação que levem em conta “raça, cor, origem nacional ou critérios equivalentes”.

Paradoxalmente, muitos dos assessores da Casa Branca que hoje atacam as universidades de elite são ex-alunos dessas mesmas instituições. Trump é formado pela Universidade da Pensilvânia; o vice-presidente JD Vance, pela faculdade de Direito de Yale.

Pelo menos dois secretários de gabinete — Pete Hegseth (Defesa) e Robert F. Kennedy (Saúde) — são ex-alunos de Harvard.

Em um programa ao vivo, Hegseth chegou a rabiscar “devolver ao remetente” em seu diploma da universidade, como parte de sua cruzada contra o que chama de “causas esquerdistas” nos campi.

<><> 4. Os argumentos de Harvard

O presidente de Harvard, Alan Garber, disse que as exigências ultrapassam os limites do poder federal. Em comunicado à comunidade acadêmica, escreveu que “nenhum governo — independentemente do partido — deve ditar o que universidades privadas podem ensinar, quem podem admitir ou contratar, e quais áreas de pesquisa devem seguir”.

“Esses objetivos não serão alcançados por meio de imposições de poder, desvinculadas da lei, para controlar o ensino e a aprendizagem em Harvard e ditar como operamos”, afirmou Garber.

“A tarefa de enfrentar nossas falhas, cumprir nossos compromissos e incorporar nossos valores cabe a nós, enquanto comunidade.”

As medidas do governo Trump levaram um grupo de ex-alunos a escrever para os dirigentes da universidade, pedindo que “contestem legalmente e se recusem a cumprir exigências ilegais que ameaçam a liberdade acadêmica e a autonomia universitária”.

Entre os que elogiaram a decisão de Harvard está o ex-presidente Barack Obama, que classificou a medida como um repúdio à “tentativa desajeitada do governo de sufocar a liberdade acadêmica”.

“Tomara que outras instituições sigam o exemplo”, escreveu ele nas redes sociais.

<><> 5. Harvard tem saída?

O governo não divulgou quais subsídios e contratos estão sendo congelados. Caso a universidade precise operar com pouca verba federal por um período prolongado, cortes seriam inevitáveis.

Apesar de improvável, a universidade poderá ter de encontrar formas alternativas para lidar com o bloqueio de recursos.

Segundo documentos internos, Harvard costuma usar cerca de 5% do valor de seu fundo patrimonial em despesas operacionais anuais — o que representa cerca de um terço do orçamento.

A universidade poderia aumentar esse percentual, mas instituições do tipo geralmente evitam ultrapassar o limite de 5%, a fim de proteger os rendimentos futuros. Além disso, parte significativa do fundo é vinculada a doações com destinação específica.

“Todas as universidades precisam se preparar para essa situação e pensar em como sobreviver de forma mais enxuta nos próximos anos, se for necessário”, afirmou o professor David Pozen.

Alguns conservadores sugeriram que, se Harvard quer independência, deveria seguir o exemplo de instituições que abrem mão de recursos públicos para se manter livres de interferência federal.

O Hillsdale College, escola conservadora de Michigan, ironizou a universidade nas redes sociais. “Deixar de receber dinheiro do contribuinte deveria ser o próximo passo de Harvard”, escreveu a instituição.

Já o Clube Republicano de Harvard divulgou nota pedindo que a universidade chegue a um acordo com o governo e “retome os princípios americanos que formaram os grandes homens desta nação”.

 

Fonte: g1

 

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