As mulheres que dizem não à maternidade e sim
à esterilização no Quênia
Desde
que Nelly Naisula Sironka consegue se lembrar, ela nunca quis ter filhos — e
com uma decisão irreversível, a queniana de 28 anos garantiu que nunca vai
engravidar.
Em
outubro do ano passado, ela deu o passo definitivo ao se submeter a um
procedimento de esterilização conhecido como laqueadura — fechando
permanentemente as portas para a maternidade.
"Foi
libertador", diz à BBC a especialista em desenvolvimento organizacional,
acrescentando que o procedimento garantiu que seu futuro é agora inteiramente
seu.
A
operação previne a gravidez ao bloquear as
trompas de falópio da mulher — e, às vezes, é chamada de "ligadura de
trompas".
Entre
2020 e 2023, cerca de 16 mil mulheres no Quênia foram
submetidas à laqueadura, de acordo com o Ministério da Saúde do país
africano.
Não se
sabe ao certo quantas destas mulheres já não tinham
filhos.
Mas a
ginecologista Nelly Bosire afirma que o perfil das mulheres que procuram a
esterilização no Quênia está mudando.
"Tradicionalmente,
as candidatas mais comuns à laqueadura eram mulheres que já tinham vários
filhos", diz a médica, baseada em Nairóbi, à BBC.
"Mas,
agora, estamos vendo mais mulheres com menos filhos optando pelo
procedimento."
A
esterilização só é recomendada para mulheres que têm certeza de que não querem
ter filhos biológicos no futuro, uma vez que a reversão é difícil.
"Os
médicos normalmente não incentivam a laqueadura porque a taxa de sucesso de uma
reversão é muito baixa", explica Bosire.
Apesar
de vir de uma família numerosa, Sironka relata que nunca se sentiu pressionada
a começar sua própria família, embora as normas sociais no Quênia depositem uma
expectativa de que as mulheres tenham filhos.
Ela
atribui sua postura ao pai, já que ele a incentivou a se concentrar nos
estudos, e compartilhou com ela o gosto pela leitura.
Livros
de autoras feministas americanas como
Toni Morrison, Angela Davis e Bell Hooks foram uma revelação para ela.
"Interagi
com histórias de vida de mulheres que não tinham filhos", conta Sironka,
que agora é chefe de operações da Feminists in Kenya, uma organização que
trabalha para acabar com a violência de gênero.
"Isso
me fez perceber que uma vida como essa era possível."
Ela
pensava em se submeter à laqueadura há anos, mas decidiu seguir em frente
depois de economizar o dinheiro para o procedimento — e encontrar um emprego
estável que permitiria a ela tirar uma licença..
A
operação custou 30 mil xelins quenianos (cerca de R$ 1.330) em um hospital
particular.
Sironka
sentiu que os direitos das mulheres estavam se
esvaindo ao redor do mundo — especialmente quando as mulheres nos EUA perderam o direito constitucional ao
aborto em
2022, o que também influenciou sua decisão.
Isso a
fez temer que o direito de uma mulher de controlar seu próprio corpo pudesse
ser prejudicado em outros lugares — e que ela deveria fazer o procedimento
enquanto ainda era possível.
"Na
África e na América, houve um aumento do fascismo e dos regimes autoritários,
um exemplo perfeito disso é o Quênia", ela argumenta.
Quando
contou à família, não foi uma surpresa para eles, já que ela sempre manifestou
seu desejo de não ter filhos.
E
quanto a namoros e relacionamentos?
"Ainda
estou pensando sobre isso", ela diz com um encolher de ombros.
Sironka
não está sozinha na decisão de ter uma vida sem filhos, desafiando as
expectativas tradicionais da feminilidade.
Nas redes sociais, há pessoas que
falam abertamente sobre sua decisão de não ter filhos e de se submeter à
esterilização.
Entre
elas, está Muthoni Gitau, uma designer de interiores e apresentadora de
podcasts.
Ela
compartilhou sua jornada para fazer a laqueadura em um vídeo de 30 minutos no
YouTube em março do ano passado, explicando sua decisão de se submeter ao
procedimento.
"Acho
que a primeira vez que articulei... [que] eu não queria ter filhos, eu tinha
cerca de 10 anos", diz ela à BBC.
A mãe
dela estava grávida na época, e uma pergunta aleatória sobre seu futuro surgiu
na conversa.
"Eu
via um possível parceiro. Via viagens. Só nunca via filhos", acrescenta.
Assim
como Sironka, a decisão de Gitau foi motivada por uma forte convicção de viver
a vida em seus próprios termos.
Depois
de tentar tomar pílula anticoncepcional, que, segundo ela, causava náusea,
ela buscou uma solução mais permanente.
Quando
procurou um médico pela primeira vez para fazer a laqueadura, aos 23 anos,
encontrou resistência.
Ela
recebeu o que parecia ser um sermão sobre como os filhos eram uma bênção de
Deus.
"Ele
me perguntou: 'E se eu conhecesse alguém que queira ter filhos?'",
relembra.
Segundo
ela, o médico parecia ter mais consideração por uma "pessoa
imaginária" do que pela paciente em carne e osso sentada na frente dele.
Gitau
conta que a recusa foi "de partir o coração". Passou-se mais uma
década até que seu desejo fosse finalmente atendido.
Bosire
ressalta que um desafio significativo no Quênia é fazer com que os médicos
mudem sua mentalidade, e realmente valorizem o direito do paciente de tomar
decisões sobre sua saúde.
"Isso
está relacionado à nossa cultura, na qual as pessoas
acreditam que não é normal que as mulheres queiram fazer uma laqueadura",
avalia.
Outro
ginecologista queniano, Kireki Omanwa, admite que a questão é motivo de debate
entre colegas e no meio médico.
"A
questão continua sendo inconclusiva", diz ele à BBC.
Mas
Gitau, hoje com 34 anos, não se deixou intimidar e, no ano passado, procurou
outro médico — desta vez, em uma organização não governamental que oferece
serviços de planejamento familiar.
Ela foi
armada com uma lista de argumentos para respaldar sua decisão, e ficou aliviada
ao descobrir que não houve resistência.
"O
médico foi muito gentil", ela afirma.
Atualmente
solteira, ela vive feliz com a escolha, que sente que concede a ela controle
sobre sua própria vida.
Ela
também está feliz com a repercussão do seu vídeo — e aliviada por não ter
havido nenhuma reação negativa grande.
Ela
conta que a maioria das pessoas online aplaudiram sua decisão, o que a deixou
mais confiante.
"As
mulheres podem contribuir para o mundo de muitas outras maneiras", diz
ela.
"Não
precisa ser por meio da criação de um ser humano completo. Sou grata por viver
em uma geração em que a escolha existe."
Fonte: BBC News

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