quarta-feira, 30 de abril de 2025

Marcelo Soares: A era da pós-vergonha

Nos últimos dez anos, vivemos sob a sombra da pós-verdade. Desde 20 de janeiro deste ano, entramos de cabeça na era da pós-vergonha.

Com as redes sociais sendo o principal meio de informação utilizado especialmente pelos mais jovens e pelos mais velhos, os marcadores tradicionais de credibilidade da informação, de veracidade mesmo, foram gradualmente implodidos.

“As universidades”, assim de baciada, são tratadas como antros de safadeza, censura e extremismo, enquanto os extremistas mesmo vendem cursos de ficar rico (eles ficam) ou tentam empurrar uma história paralela do Brasil.

“A imprensa”, assim de baciada, foi tomada como inimiga do povo, enquanto extremistas primeiro criaram sites de notícias falsas e depois bombaram canais onde pessoas carismáticas falam absurdos em vídeo monetizado.

“As ONGs”, assim de baciada, foram carimbadas como poços de dinheiro financiados por interesses globalistas, enquanto extremistas criaram suas próprias organizações, muitas vezes ligadas a igrejas fundamentalistas.

Se todas as instituições mediadoras são deslegitimadas, vale o que aparece mais e aparece o que as Big Techs preferem.

Ninguém se beneficiou mais disso do que parte da direita, financiada pela turma do petróleo por meio de fundações e imbuída dos ideais expostos no livro “The Sovereign Citizen” (O Cidadão Soberano), publicado nos anos 90 pelo pai de um político britânico que ficou a cargo de implementar o Brexit.

Nesse livro, ele expõe opiniões que soariam apenas exóticas nos anos 90: governo só serve para roubar; com a internet, quem tem meios poderá fugir do imposto e criar seus próprios Estados, suas próprias moedas e seus próprios fatos privados. Dizem que esse livro antecipou o que viriam a ser as criptomoedas. Essas ideias exóticas seduziram Peter Thiel, grande financiador do extremismo digital que se criou no apartheid. Ele e outros, criados a pão-de-ló e consumindo muita ficção científica sem senso crítico, adoraram o livro.

•        Negacionismo e terraplanismo: o mundo do avesso

Há décadas, os esforços de esclarecimento sobre mudanças climáticas eram solapados por um movimento negacionista. Primeiro, diziam não haver provas de que ocorriam. Depois, achavam impossível provar que decorriam da atividade humana. Quando ficou impossível negar a realidade, tentaram inventar que foi uma máquina inexistente que inundou o meu Rio Grande do Sul no ano passado.

Na pandemia de Covid-19, os negacionistas de aluguel já tinham todo o discurso pronto para contrapor a economia às vidas humanas. Tinham ao seu lado os negacionistas do clima, os negacionistas da ditadura e até os negacionistas do holocausto, que andavam fora de moda, resolveram sair da toca.

O distanciamento social fez quase toda a sociabilidade migrar para as telas. Sem contato olho no olho, o vídeo parecia mais real que tudo. Foi quando os fóruns de internet, que existem desde sempre, chegaram ao ápice. Também chegou ao ápice a cultura dos influenciadores – pessoas simpáticas e boas de vídeo, que cultivam relacionamentos parassociais com gente solitária sedenta por entretenimento. E o tom amigável do influenciador parece mais próximo, mais íntimo, que o do professor ou do colega na sala de aula.

Centro do universo num período de pouca interação pessoal, as big techs nunca lucraram tanto quanto no pior período das nossas vidas.

Nunca se gerou tanto “conteúdo”, essa commodity cognitiva indiferenciada que pode ser qualquer coisa e vale mais pela quantidade do que pela qualidade. O dia tem as mesmas 24 horas da minha infância, quando os cinco canais de TV aberta tinham no máximo quatro horas de programação interessante. No entanto, a quantidade de filmes, episódios de série, novelas, reality shows, podcasts e vídeos de influenciadores despejados todo dia para chamar nossa atenção nunca foi tão alta quanto logo em seguida à pandemia. O ser urbano contemporâneo vive para trabalhar e para “consumir conteúdo”.

•        O poder político das “big techs”

Esfalfados, trabalhadores das big techs e roteiristas de Hollywood fizeram greves e abriram sindicatos quando puderam sair às ruas. Para os “broligarcas”, não havia maior injúria do que isso. Ainda por cima, quando abriu a rua o lucro baixou.

Foi aí que um sócio de Thiel na chamada “Máfia do Paypal”, o Elon Musk, vulgo Kiko do Foguete, pegou bronca. Ele queria manter abertas as fábricas daqueles carros horríveis que ele vende, mas os departamentos de saúde, as universidades, os pesquisadores, o sindicato, teimavam em dizer não a ele e aos seus amigos. Em certo ponto, ele decidiu passar o chapéu e arranjar 44 bilhões de dólares para virar o personagem principal da sua rede social favorita.

Com isso, o autoproclamado absolutista da liberdade de expressão transformou o velho Twitter numa câmara de eco das suas ideias tortas. Ele desmantelou os mecanismos de moderação. Verificação de usuários? Para ele, era só um jeito de impor hierarquias de prestígio. Como ele não acredita em prestígio sem etiqueta de preço, jogou tudo no lixo e passou a vender selinhos azuis. Agora, quem pagava pelo selinho aparecia mais. E quem mais paga é quem tem as piores ideias.

Agora percebam: Musk comprou o Twitter em outubro de 2022. Um mês depois, em novembro, a OpenAI abriu para o mundo a primeira versão do ChatGPT. Vínhamos de uma década de desenvolvimento constante da inteligência artificial. A tradução automática se tornou bastante boa; o reconhecimento de imagens melhorou tanto que a busca por imagem se tornou possível. Já o ChatGPT pôs na rua a inteligência artificial “gerativa”, ou seja, que sintetiza textos e imagens.

Os resultados delas são impressionantes, desde que você não se preocupe com o resultado.

Se for importante para você, precisa checar. E, ao checar, a chance de péssimas surpresas é altíssima. Facílimas de usar, essas ferramentas têm a autoconfiança de um homem branco de meia-idade numa mesa de bar. Chutam desavergonhadamente, mas com uma segurança invejável. E, ainda assim, advogados as usam para gerar petições; estudantes as usam para fazer seus trabalhos; trabalhadores as usam para dar ilusão de produtividade ao chefe. Muitos quebraram a cara, mas as pessoas continuam na esperança de que no futuro possam ser poupadas até da expectativa de ter o trabalho de checar.

E, obviamente, essas máquinas de encher linguística também criam o tal do conteúdo. A Amazon precisou pôr um freio em quantos livros uma mesma conta pode subir por dia. Quando a economista Claudia Goldin ganhou o Nobel com suas pesquisas sobre o trabalho feminino, no mesmo dia havia uma avalanche de biografias suas feitas por IA à venda na plataforma do Kindle.

Sempre que é lançado um novo livro com potencial de vendagem, como “Careless People”, em que uma ex-executiva do Facebook conta os podres lá, imediatamente aparecem pilhas de livros com o mesmo título, às vezes se chamando de “livros de exercícios” ou até um livro infantil. Com música é igual: há uma indústria de faixas criadas por IA para preencher playlists no Spotify, sugando os trocados que iriam para músicos de verdade. E vídeo? Toda hora aparece para fãs de rock algum vídeo com voz robótica inventando um triste destino para um músico meio sumido ou nem tanto.

•        Da pós-verdade à pós-vergonha

Aqui, eu diria, chegamos ao ápice da era da pós-verdade e começamos a entrar, pé ante pé, na era da pós-vergonha. E por que eu falo em era da pós-vergonha?

A verdade tem valor moral. Ela de pouco adianta se não puder separar o que é admissível do que não é admissível. Mas os chefões das big techs se consideram cidadãos soberanos e não aceitam que alguém sem bilhões no banco tenha qualquer legitimidade para dizer a eles que sua vontade não pode. Quem tem essa legitimidade hoje são funcionários públicos, pesquisadores, jornalistas e moderadores – gente que teve acesso à ascensão social por meio do estudo e do trabalho, num sistema baseado em regras. Isso não cabe nas noções de meritocracia e liberdade de expressão pregadas pelos “broligarcas”.

Na segunda posse do Donald Trump, no dia em que eu completei 48 anos, todos eles estavam lá prestigiando o remandatário. No dia seguinte, começaram a desmantelar os mecanismos de diversidade, equidade e inclusão, em grande parte instaurados só por vergonha de parecerem ser contra isso. Chamados pelo apito de cachorro do Trump, empresários de todos os portes se autorizam a não ter vergonha da lei, de passar por cima das regras, de ir contra os direitos humanos, de erguer o braço direito e nem de negar com a boca pra fora enquanto admite piscando aos seus que fez o que todos viram.

Naomi Klein publicou neste final de semana um artigo em que amarra pontas soltas desse momento, e resume assim:

“Uma escolha insuportavelmente cruel está sendo feita perante nossos olhos e sem nosso conhecimento: máquinas ao invés de humanos, inanimado ao invés de animado, lucro acima de tudo o mais. Com uma velocidade estonteante, os megalomaníacos das big techs mandaram às favas seus compromissos de não aumentar emissões e se alinharam com Trump, sedentos de sacrificar os preciosos e reais recursos e criatividade deste mundo no altar de uma realidade virtual e vampiresca. Este é o último grande trambique, e eles estão se preparando para cavalgar as tempestades que eles próprios convocam. Tentarão difamar e destruir qualquer um que fique no seu caminho”.

Eles acham que podem fazer o que quiserem, e tem muita gente empenhada em confirmar. É este o mundo pós-vergonha que vamos enfrentar nos próximos anos.

Mesmo jogando parado, e com o Congresso jogando contra, o Brasil está ganhando o jogo da democracia, segundo disse o Le Monde na semana passada. Somos o único país onde um juiz vaidoso se dispôs a peitar o Elon Musk e tirar o X do ar por desrespeitar decisões judiciais. Somos o único país onde um ex-presidente corre o risco de ser preso por tentar dar um golpe de Estado e assassinar o presidente eleito em seu lugar, o vice e o mesmo juiz vaidoso. E, por incrível que pareça, ainda somos uma rara democracia, nos maiores PIBs do mundo, que ao menos por enquanto não está nas mãos das piores pessoas do mundo, ou na corda-bamba de estar nas mãos dessas pessoas.

Fora do Brasil, o cenário muda rápido. Morei na Alemanha no ano passado, quando minha mulher foi fazer pós-doutorado na Universidade de Münster. Fui muito bem recebido como visitante numa cidade sã. Se o convite a ela viesse neste ano, eu não poderia pleitear visto de marido. E o cenário político deles muda para pior mês sim, mês não.

No Brasil, se existe alguma possibilidade de aprofundarmos nosso compromisso com os direitos humanos, não basta contar com o governo, que em boa parte tem as mãos amarradas pelas piores alas do Congresso, que são numerosas. Nem com o Judiciário, que apesar dos acertos também capricha quando erra. A sociedade civil tem um papel importante, por pequena que seja. Mas, para isso, ela precisa enxergar bem o cenário que tem pela frente.

O sucesso da pós-vergonha depende da expectativa de que se duvide do que é sabido, fomentada pela confusão intencional. São exemplos disso expressões como “senhorinhas de bíblia na mão”, “gesto do Elon Musk” e outras, espontâneas ou fabricadas por profissionais da enganação. A principal habilidade que precisamos desenvolver na era da pós-vergonha é a sabedoria para discernir entre o que é engano, o que é desconhecimento, o que é burrice e o que é mau-caráter. E agir de acordo.

 

Fonte: objETHOS

 

Luiz Marques: O compromisso dos intelectuais

A teoria do “princípio da incerteza”, pela impossibilidade de medir a quantidade física com precisão absoluta, é adaptada por outras áreas cognoscitivas. Para Eugênio Bucci, em Incerteza, um ensaio – como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital) a novidade está em que: “As big techs, os conglomerados monopolistas globais, imperam nos nossos dias como companhias mais valiosas de toda a história do capitalismo. O que elas fizeram? Sequestraram de nós o contato com a incerteza vital, capitalizaram os riscos, precificaram a ignorância”. Quer dizer, decidem por nós.

A flecha da história foi apropriada pelas megacorporações que destilam nossas dúvidas de modo a direcionar o consumo de mercadorias e, inclusive, o voto em candidatos nas eleições. A infocracia substituiu a partidocracia que mirava o futuro utópico. Em troca, espalhou pessimismo e desilusão para pavimentar a distopia fascista, depois de décadas de financeirização da sociedade e do Estado. Não escolhemos; somos escolhidos pelos algoritmos. Seduzidos e inermes, aceitamos a servidão.

Enquanto isso, a mídia corporativa censura as notícias positivas sobre as políticas progressistas da nova presidenta do México, Claudia Sheinbaum, que detém 85% de aprovação nas pesquisas de opinião. Ocorre algo idêntico no Brasil, onde os comentários sobre o governo Lula 3.0 saem com notas adversativas para pôr sob suspeita a palavra das autoridades oficiais. As cotas de reparação étnico-raciais são balanceadas com uma hipótese de aportes insuficientes à educação, mesmo que a acusação leviana não se sustente. Existe um veto editorial sobre a admissão dos avanços federais.

Os jornais escondem o óbvio ululante, as conquistas civilizatórias. Importam-lhes os entorpecentes da consciência para resguardar, incógnita, a realidade. Os noticiários televisivos provocam catarses de alívios temporários que bloqueiam a compreensão dos “poderes ocultos” e legitimam as políticas de ajustes fiscais, o rentismo financeiro. Sem escrúpulos, celebram a pedagogia de fake news para desinformar e manipular o povo. A máxima hegeliana é invertida pela assertiva “o real é irracional”.

As ideologias são apresentadas como manifestações alegóricas de sectarismo. O objetivo é, através de startups, oferecer alternativas ao confronto de classes qual o South Summit em Porto Alegre. A eticidade e a politicidade se desmancham no formalismo dos modelos matemáticos sobre o que é possível conhecer, engolir ou cuspir. A tecnologia chancela uma governabilidade de espetáculo. A democracia perde a validade. A cidadania é esvaziada de sentido. A política definha no analógico.

•        O palco da política

A estratégia conservadora consiste em desideologizar as decisões e as visões polarizadas na equação “1% vs 99% da população”, consentâneo o Movimento Occupy Wall Street. Cala-se sobre a fraude contábil de R$ 20 bilhões nas Lojas Americanas. Tira-se da cena do crime as indecentes fortunas. A correlação de forças favorável à hegemonia da moda é congelada por oráculos da via cibernética.

As sínteses superiores para a dignidade cedem à mercantilização que converte o conhecimento em informação técnica, na dinâmica do mercado. Toda privacidade é violada com a captura dos dados, nexos e associações dos internautas. O complexo explorado pela razão é reduzido ao maniqueísmo entre o bem e o mal. O espaço público é despublicizado e monetizado pelo capital imobiliário.

Se a cidade é um lugar privilegiado para formar lealdades e praticar responsabilidades, é também uma geografia urbana de atributos pessoais recusados na impessoalidade dos valores contraditórios de crenças e formas culturais. A ideia da “Nova Ágora” de communards responde à fragmentação das relações nos locais de moradia, de trabalho e de lazer (vide as Bets). O espírito de comunidade nas urbanidades é raro, prevalece o individualismo. Falta a solidariedade cevada no comunitarismo.

Tal decorre da privatização da vida da classe média, ao se retirar das ruas e das praças crivadas pela violência social. Inovações tecnológicas reforçam o tranco privatista da existência com videogames, streamings de filmes e telas de smartphones. Sobram nas artérias de asfalto os desesperançados, os laboriosos madrugadores e os recicladores do desperdício que Leonardo Boff designa de “os novos profetas”, reportando-se ao Primeiro Testamento bíblico. A resiliência implica uma reafirmação da pólis como palco da política, na acepção etimológica. Nela, trava-se o embate contra as alienações.

A economia flexível torna dolorosa a noção de que o próprio projeto de sobrevivência classista dos trabalhadores tem uma história e um tempo. Sociologicamente o trabalho já não propicia metas de identidade com significado para erguer a autoestima. A distância entre as “massas” e as “elites” é abissal. A obsolescência de profissões, sem realocação da mão de obra, toca o alarme. Desaparecem os cobradores de ônibus; a seguir, os motoristas, corretores de seguros, operadores de caixa, fiscais de trânsito, educadores, juízes. Até que não reste nenhuma empatia com o próximo infeliz da fila. Cabe às vozes universais tomarem partido nos conflitos políticos e nos impasses da democracia.

•        Exercer a rebeldia

Na coletânea organizada por Dênis de Moraes, Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise, Immanuel Wallerstein aponta “uma crise estrutural do nosso sistema-mundo e um período de transição para um novo sistema” (caótico e ultra-incerto). Nesse contexto de confusão e medo, a intelligentsia deve esclarecer as mentes e desmistificar messias da extrema direita para, assim, com criatividade, devolver uma racionalidade às coisas. Mas sem a garantia da redenção restauradora.

Francisco de Oliveira sublinha a “relação dialética entre o intelectual, o conhecimento e o espaço público”, por excelência o grande teatro da intelectualidade para colocar a conhecença a serviço da liberdade, não da dominação. O fazer intelectivo trança demandas de pensamento com a ação para construir novos consensos, mudanças, desafios. A academia tem de ir além da especialização para que os seus quadros exercitem uma perspectiva holística do incontornável cenário socioeconômico.

Enclaves paradigmáticos dos acadêmicos rivalizam com empuxes mercadológicos da digitalização. A propagação do desassossego faz parte do ofício em defesa de um olhar totalizante do momento histórico-conjuntural. Incide nas disputas da rede emaranhada de definições da inteligência artificial (IA) sobre o “knowledge”. Ademais, protege as universidades dos ataques difamatórios espelhados nas “executive orders” de Donald Trump, nos Estados Unidos. Por conseguinte, não é do silêncio dos intelectuais de que se trata, senão de seu silenciamento pelos obscurantismos de sociopatas.

Abduzidas pelo produtivismo inócuo, as atividades institucionais afastam-se de problemas cruciais. “Quem sabe a Universidade de São Paulo vá se interessar pela ‘questão negra’. Isso falta à USP. Quem se descuida da totalidade jamais será um intelectual vigilante e autêntico, para exercer uma rebeldia contra os conceitos assentados, respeitáveis, mas falsos”, salienta Milton Santos. As velhas instituições precisam sacudir sua apatia moral e estabelecer as pontes de extensão com a sociedade.

Last but not least, vale o registro da contribuição praxeológica de Michael Löwy: “A primeira tarefa de uma resistência cultural eficaz é tratar de estabelecer vínculos e conexões entre as reivindicações democráticas e as diversas lutas sociais”. Dos movimentos, afora a autonomia, espera-se a união de esforços contra o arbítrio imperial, o mando patriarcal, o racismo, o ecocídio e o vetor desumano do neoliberalismo. Dos intelectuais, o compromisso de diálogo com os sujeitos da transformação e da superação do status quo, rumo à sociabilidade do século XXI. “Para um mundo onde caibam muitos mundos” – na fórmula acolhedora e revolucionária apregoada pelos zapatistas, em Chiapas/MX.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

Raça é uma construção social? O que a genética nos ensina sobre isso

Quando os cientistas revelaram o primeiro rascunho do Projeto Genoma Humano, há 25 anos, ele parecia dar a palavra final em relação a alguns mitos ultrapassados sobre raça.

O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.

Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.

São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.

É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.

Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.

Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.

A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.

Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."

A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".

A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.

Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.

A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.

Isso não é controverso nem na ciência nem na história.

A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.

Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.

No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.

O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.

Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.

Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.

Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.

Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.

Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.

Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.

Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.

O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.

Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".

As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".

Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".

Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.

É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.

Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.

Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.

Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.

Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.

Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.

No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.

Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.

No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.

Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.

Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.

Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.

O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.

Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.

Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.

No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".

Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.

O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.

Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.

Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.

Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.

Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.

Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.

O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.

As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.

O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.

Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.

O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.

Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.

A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.

Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.

Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.

Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.

É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.

E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.

Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.

"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.

"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."

Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".

É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".

Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.

 

Fonte: BBC Future

 

Bom para quem cara pálida?

Lendo o bom artigo O fim do Presidencialismo de Coalizão, vimos a necessidade de debater alternativas a ele. Faremos isto com apoio da Teoria de Jogos. No equilíbrio simples, onde não há várias possíveis ações a serem feitas e comparadas entre si, nem qualquer fonte de risco independente da ação alvo, pessoas racionais só vão fazer algo se o ganho multiplicado pela chance de ganhar superar a perda multiplicada pela chance de perder. Os não racionais apostam em loterias, onde claramente isto não ocorre, e no passado o vício cognitivo de ter controle foi usado na Loteca, da zebrinha, para subir o volume de apostas. Isto vale em coordenação. Milhões de produtores commodities têm um custo de coordenação superior aos ganhos prováveis da coordenação. O produtor rural que quiser ligar a todos os outros 5 milhões de produtores rurais do Brasil para dar um recado de 1 minuto, gastará R$ 150 mil em ligações fixo a fixo, ao custo de R$ 0,03 cada. Poucos têm 150 mil. Sozinho ele levará 10 anos para ligar a todos, aí tem de ter ajuda, e alguém pode repassar informações falsas. Dificilmente face a incertezas de clima, todos concordarão quanto ao que e em que volume plantar. Analisar uma proposta destas toma tempo, e tem custo. Tem de ter retorno de contrapropostas e concordâncias. Pode ter site, mas nem todo mundo acessa. Fora que se alguém por milagre fizesse o plano que parecesse ideal, aceito por todos, há a questão de alguém roer a corda, mesmo com 1/100.000 de chance de alguém descumprir o acordo, a chance de ninguém descumprir é alta, 1/135. A distribuição binomial dá a chance do total de problemas de cada tipo. Mais gente furando e mais danos. Representar interesses muito diversos, dificulta acordos, e em geral quem coordena busca apoio ao que quer, se beneficiar a todos é quase impossível, face a interesses muito diversos. Ninguém se mexe muito para ganhar pouco. Como o custo de mobilização é certo e o ganho incerto, só ganhos coletivos acima de 1 bilhão, R$ 200 per capta, tem uma chance mínima de suplantar os gastos de coordenação. Mas os 6 produtores de trem-bala do mundo podem definir a priori o que é melhor a eles, num bate papo em um evento qualquer, a custo irrisório. Ai, além da assimetria de informação, que deu Nobel a Stiglitz em 2001, a assimetria de custos de coordenação gera distorções ruins nos mercados sem regulação externa. Some-se a isto a estabilidade de coalizões e os efeitos do valor de Shapley, esclarecida pelas várias formas do jogo do emprego, e cai o mito de autorregulação de mercado. Se há um patrão só, incapaz de trabalhar, ele fica com 50% de tudo, com vários dá até para empregados ficarem com ¾, mas só com regras muito boas, que muito pouco país tem. Regras que tiram voz do povão, reduzem o valor de Shapley deste povão em coalizões e beneficiam os poderosos.

Custo de coordenação também impacta a política. É fácil empresas e parlamentares se coordenarem em torno de algo se o ganho for muito alto. Aí se muda até a constituição contra o interesse do povão. Assim, tem que existir uma barreira no que se refere a mudar constituições federal e estadual, e também leis orgânicas de municípios: o plebiscito. Esta barreira gera custos para se convencer a população a votar a favor, o que dificilmente ocorrerá se a proposta for muito ruim para a grande massa.

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

Mas aí vem a questão de estabilidade e de Análise de Impacto Cruzado. Na versão inicial de Gordon e Helmer, dos anos 1960, a influência de A em B era a chance de B falhar porque A falhou, por definição igual à dependência de B com A. Mas é raro um item afetar só um outro ou depender de só um outro item. Assim eles colocaram num gráfico pares de soma de todas as influências e dependência de elementos de um sistema. Notaram um padrão em L para o que funcionava sem regulação. Para avaliar métodos de governança, dá para usar isto, usando no lugar das probabilidades reais, as probabilidades de equilíbrio da Teoria de Jogos, probabilidade de equilíbrio que é a que torna indiferente aos atores optar por qualquer das alternativas disponíveis. Isto pode ser feito em empresas, onde quando o esquema formal de governança não funciona, há outro informal beneficiando seus coordenadores e não aos donos da empresa. Algo combatido desde 1951, conforme o trabalho de Kieth Davis (ISBN 0070155747). Se o problema já é grave numa empresa, imagine num país, onde os valores envolvidos são muito maiores. Assim, a governança mestra do país, que afeta as demais da rede pública de serviços e empresas, tem de ser muito boa.

Pensem no dono da loja autoritário que quer controlar tudo, e não deixa nada de importante ser feito por outrem. O dia que ele não vai, a loja para, por ninguém poder operar a caixa registradora. Por mais eficaz que ele seja, um dia ele adoece, ou meio zonzo faz um erro. Redundância evita problemas. O chefão da Máfia, controla os capos, que controlam os operacionais. Tem aí uma influência alta, e como só toma decisões com informações vindas do capo que executará suas ordens, tem dependência igual à sua influência. O mesmo se dá com capos e operacionais. Não é à toa que há tantas brigas, disputas, puxadas de tapete e afins na Máfia, ou turma do jogo do bicho. Teve chefão da Máfia morto por seus capos, como mostra a série Nova Iorque contra a Máfia, para que capos que o tinham desobedecido tivessem menos chance de serem pegos por outros crimes pela polícia, e ainda fugissem da ira do chefão. Chefões da Máfia são alvos de quem sonha com o poder deles, sem avaliar o risco de se tornar um alvo. E haja tiro ao alvo. Na padaria familiar, se o filho distraído põe sal duas vezes na massa, outro filho avisa. Junta com outra massa sem sal, gela metade, o atraso da próxima fornada é igual, e nada de pão muito salgado, deixa menos fregueses descontentes. A boa relação interna afasta os pares da diagonal. No presidencialismo a relação entre ministros e presidente é similar à do chefão e capos em termos de dependência e influência. Há, contudo, leis, judiciário e congresso para baixar as simetrias de dependência e influência no sistema. Se quem executa a ordem é quem informa ao chefe sobre o que ocorre, se ele enganar o chefe, ele obtém autorização para fazer algo errado. No parlamentarismo, a assimetria sobe, e o sistema se aproxima ainda mais do L ideal. Já o falso parlamentarismo onde só o presidente pode dissolver o congresso, é no fundo, o presidencialismo disfarçado, o presidente impõe algo ao congresso, se o congresso não atender, convoca eleições. Se bobear é pior que o presidencialismo de mandato fixo do congresso. O presidente corrupto pede propina, o congresso não atende, ele o dissolve, atende ele não o dissolve. Aí se vê como regras fazem toda a diferença. Não há boa governança em qualquer empresa, município, estado ou país, com dependências e influências inadequadas.

Via análise de impacto cruzado, dá para dizer que o presidencialismo é um regime ruim e instável, é só ver o o caso dos USA, que teve macartismo, Bush filho e Trump para se comprovar isto. Mesmo sugando outros países para encher a barriga dos cidadãos norte-americanos, que favorece aos oligarcas dos USA. O parlamentarismo pode ser estável, dependendo de quantos modos se tem disponíveis para convocar novas eleições, desde que o modo principal, pedido direto de eleitores (com 2% a 5% deles via abaixo-assinado) esteja presente. No parlamentarismo, o presidente, eleito para ser fiscal do parlamento convoca eleição quando achar necessário. No semipresidencialismo, a diferença pro parlamentarismo é que o presidente tem o poder de vetar ou de indicar o primeiro-ministro. Este primeiro-ministro escolhe os demais. Um modelo estável é senado só ter poder de veto num parlamentarismo, e ter convocação de eleições antecipadas: por pedido popular assinado por 5% dos eleitores; pelo presidente que tem só o dever de fiscalizar o congresso; pela maioria do supremo tribunal federal, em caso de indícios fortes de desvios administrativos ou de descumprimento seja do contrato de governo de uma coalizão, seja estatuto do partido majoritário; pelo primeiro-ministro caso ele tenha dificuldade de negociar leis; pela maioria do conselho de primeiros-ministros estaduais; pela maioria do conselho de governadores que similarmente ao presidente apenas fiscalizam os governos estaduais, onde via voto distrital misto se eleja 40% dos representantes da câmara dos deputados estaduais e federais, quem ganha em cada distrito é eleito diretamente, e o resto é preenchido de modo a garantir a maior proximidade possível entre votos recebidos e deputados totais de cada partido. Entra a cúpula de poucos deputados de um partido, conhecida do público, mas tais deputados ser substituídos no meio do mandato por nova eleição interna do partido. As demais vagas não destinadas à cúpula dos partidos são preenchidas por ordem de votação dos deputados do partido nos distritos, em distritos com variação estatística do total de eleitores abaixo de 1%. Nas eleições internas dos partidos para vagas de cúpula, exclui-se, pra cada vaga disponível, um candidato por rodada, entre os que tiverem numa votação inicial mais de 5% dos votos, como na sucessão do Boris Johnson no partido conservador. Com mandato variável do senado e segundo turno na sua eleição, tem-se um sistema mais robusto. Junte-se a isto leis de iniciativas populares não votadas em 90 dias trancando a pauta do congresso, e o congresso fica pressionado a atender a população de fato. Não vota a lei, não só para tudo, como a população descontente pode vir a convocar eleições. Vota contra o interesse geral, e vem convocação de eleição. Duro é como conseguir um modelo assim, já que não temos nem plebiscito como requisito de reformas constitucionais, algo que é base de qualquer modelo estável que realmente defenda a população e não oligarcas. Países europeus, sobretudo os Nórdicos tem sistemas parecidos.

Só Deus é perfeito, falhas sempre ocorrerão onde pessoas, falhas por natureza, estão no comando. Mas quanto menos sujeito a falhas o sistema é, melhor para todos. Nenhuma pessoa tem a chance de falha exigida para que se aceite algo como fonte de falha singular num avião. Morreu tanta gente nas barragens da Vale que caíram como em um grande desastre aéreo. Fora mortes no trânsito. Houve gente que subiu velocidades máximas e número de mortes para ganhar voto. Toda a governança inferior é ligada a superior, aí, como aceitar falha singular na governança de um país ou ente federativo? Difícil algo assim sair logo no Brasil, o andar de cima vai fazer tudo para impedir, mas se as ideias não forem debatidas desde já, dificilmente vão sair do papel nas próximas décadas. Precisa de uma pressão popular maior que da campanha das Diretas Já. E face a crise climática, talvez não tenhamos muito tempo para arrumar a casa. Vício cognitivo de confirmação atrapalha o diálogo, e isto é usado pelos magnatas para dificultar o diálogo nas massas, ou manipulá-lo.

¨      Lumpocracia: A Canalhice no Poder. Por Sergio Alarcon

Em 1852, Marx, ao analisar o golpe de Estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, identificou uma nova estratégia de dominação: a ascensão política baseada no lumpesinato. No 18 de Brumário de Luís Bonaparte, o filósofo descreve esse estrato social como composto por “degradados e aventureiros de toda espécie”, unidos não por projetos de emancipação ou de bem comum, mas pelo ressentimento, pela violência dispersa, pela mesquinharia e pela ambição desavergonhada, rejeitando qualquer ordem civilizada. Luís Bonaparte mobilizou essa massa instável, oferecendo-lhe a ilusão de poder enquanto servia aos seus próprios interesses e à restauração de uma ordem conservadora, resultando em uma ditadura que destruiu a Segunda República Francesa e culminou na humilhante derrota para a Prússia de Bismarck.

Jair, o “Mito”, embora não possuísse a inteligência ou a astúcia estratégica de Luís Bonaparte, galvanizou no Brasil um conjunto semelhante de forças marginais: milicianos, traficantes, neoliberais oportunistas, fanáticos religiosos, estelionatários e ressentidos em geral. Essa base foi movida pelo ódio à ordem democrática, ao conhecimento e à alteridade. Diferentemente de Bonaparte, que manipulava o lumpesinato de fora, Jair era ele próprio parte desse lumpem – pequeno, medíocre e oportunista -, o que tornou sua ascensão ainda mais visceral e caótica.

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

Pois aconteceu no Brasil aquilo que Gramsci enunciou como uma lei da natureza: em momentos de crise hegemônica, quando “o velho morre e o novo não pode nascer”, surgem as figuras monstruosas. Jair é produto desse interregno, que se estende desde o golpe parlamentar contra Dilma em 2016 – baseado em “pedaladas fiscais” posteriormente desqualificadas, ou seja, um impeachment baseado em nada -, passando pelo (des)governo de Temer, pela tentativa de usurpação do Estado de Direito pela Lava Jato de Curitiba, até o retorno da democracia com a eleição de Lula e sua (talvez inédita) Frente Ampla, em 2022.

Frente Ampla que se formou por absoluta necessidade de sobrevivência (da república, da democracia, das instituições, da cidadania, das pessoas…). Durante seu lamentável governo, Jair transformou a decomposição política em método de dominação. Foi um desastre polimorfo – econômico, social, ambiental e moral: nem todos sobreviveram à estagnação econômica, ao aumento da desigualdade, ao negacionismo pandêmico (com mais de 680 mil mortes por Covid-19), ao desmatamento recorde da Amazônia e aos ataques sistemáticos às instituições democráticas, culminando na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. As vítimas desse período nefasto de nossa história deveriam ser lembradas com maior ênfase, especialmente quando as forças obscuras dos seus algozes clamam por “anistia”.

O bozismo, é bom que se diga – nisso de novo diferente de Napoleão III -, não buscou (e não busca) restaurar formas ultrapassadas de poder, mas consagrar a própria decomposição social como norma. Bozistas não são, como dizem, “conservadores”. A lumpocracia – a canalhice organizada como método de dominação – tentou, numa verdadeira revolução, transformar a barbárie em ideal de governo, esvaziando a política de qualquer horizonte construtivo para, em troca, “dar passagem à boiada”. Uma revolução que almejou (e ainda almeja) ser pior que seu parente próximo – o nazismo -, que Theodor Adorno descreveu como barbárie mascarada sob uma fachada de civilização. Ao contrário, o bozismo não se preocupou em criar qualquer fachada de civilização; exibiu no poder sua destrutividade sem pudor, moldando parte da sociedade segundo a lógica do espetáculo da violência, onde o pensamento crítico (desqualificado como “esquerdismo”) cedeu lugar à repetição de slogans e à encenação da desordem permanente, enquanto no mundo real devastava o país.

Felizmente, a lumpocracia bozista foi momentaneamente derrotada. Apesar de sua capacidade de mobilizar uma base fiel – não apenas do lumpenproletariado -, a resistência das instituições democráticas e da sociedade civil – evidenciada pela vitória de Lula em 2022 e pelo fracasso do golpe de 8 de janeiro – barrou sua consolidação. O bozismo não conseguiu transformar o Brasil num reino de barbárie permanente, mas deixou feridas abertas: um país sob risco de novas tentativas de golpe, com instituições ainda fragilizadas (como é notório no Parlamento, mas também no Judiciário, ainda contaminado pelo lavajatismo) e uma sociedade desafiada a reconstruir seu tecido democrático contra as sombras ameaçadoras do bozismo, que insiste em parasitar as feridas da sociedade que ele mesmo ajudou a golpear, oferecendo como futuro ao país a incrível sedução da própria destruição.

 

Fonte: Por Luís Antônio Waack Bambace e Vicente Cioffi, no Jornal GGN

 

Donald Trump – o tumulto programado

Fiel a seu estilo de jogador que arrisca, Donald Trump provocou um caos nos mercados mundiais. Introduziu, retirou e reformulou uma tabela de tarifas alfandegárias que desencadeou uma enorme desordem. Sua bravata recriou os piores pesadelos financeiros das últimas décadas. O magnata criou um cenário inédito de crise global deliberadamente precipitada. Alguns analistas acreditam que ele tende a recuar diante dos resultados adversos de suas medidas, mas outros consideram que ele continua assustando seus interlocutores para forçá-los a capitular. Há também a impressão superficial de que Donald Trump enlouqueceu e que, em sua decadência, os Estados Unidos ficaram sob o comando de um alucinado. O magnata mente, insulta, agride e parece governar a primeira potência como se fosse um fundo de investimento. Mas, na verdade, ele está seguindo uma estratégia aprovada por importantes grupos de poder e não deve ser subestimado (Torres López, 2025). Ele tem três objetivos econômicos: restabelecer a hegemonia do dólar, reduzir o déficit comercial e incentivar a repatriação das grandes empresas. A hierarquia e articulação dessas metas é a grande questão do momento.

·        Centralidade monetária

Algumas abordagens destacam, com razão, a primazia das metas financeiras e monetárias sobre as comerciais ou produtivas. Enfatizam que Donald Trump pretende instaurar um dólar barato para exportar, e um dólar elevado como reserva de valor. Pretende favorecer as exportações estadunidenses, enquanto assegura o estatuto privilegiado da divisa norte-americana como moeda mundial (Varoufakis, 2025). Os dois principais assessores do presidente – Miran e Besset – confirmaram este propósito, confessando que as pressões comerciais são um instrumento de exigências monetárias. Para conseguir a desvalorização do dólar e sua permanência como reserva de valor, Donald Trump precisa reforçar a subjugação dos Bancos Centrais da Europa e do Japão. Esta subordinação é indispensável para preservar o papel dos títulos da dívida estadunidense (Bônus do Tesouro) como principal refúgio do capital.

Esta garantia determina o afluxo do excesso de dinheiro no mundo para Wall Street. Tóquio e Bruxelas devem manter a compra destes papéis para convalidar a taxa de câmbio do dólar fixada por Washington, evitando assim tensões cambiais que desmoronariam todo o projeto. Donald Trump exige a continuação do reinado do dólar e a consequente capacidade dos Estados Unidos de se financiarem à custa do mundo. O imperialismo do dólar permite à primeira potência mundial endividar-se de forma ilimitada e manipular a seu favor todas as economias do mundo.

Para lidar com os sérios questionamentos que este atributo enfrenta atualmente, o magnata pretende recriar os Acordos de Plaza, que os Estados Unidos impuseram à Alemanha e ao Japão nos anos 1980. Nesse momento, seus dois subordinados concordaram em apoiar o barateamento do dólar e manter uma paridade que garantisse a primazia mundial da moeda norte-americana. Donald Trump está moldando esta exigência aos novos tempos e patrocinando novas moedas digitais ligadas ao poder político do dólar. O potentado criou um fundo de criptomoedas baseado em sua própria figura e promove esse mercado (stablecoins) como um pilar adicional do dólar. Já posicionou estes instrumentos entre os 10 maiores detentores de Bônus do Tesouro (Litvinoff, 2025). O presidente ianque sonha com o retorno do dólar a seu trono original de Bretton Woods. Seu plano B é reciclar essa centralidade para o nível atingido por Richard Nixon e Ronald Reagan. No primeiro caso, o dólar norte-americano foi libertado da convertibilidade do ouro e iniciou um longo ciclo de predomínio sem suporte metálico objetivo. No segundo, a divisa ianque foi reforçada pelo aumento das taxas de juro, pela ascensão do neoliberalismo e pela financeirização sob o comando da Reserva Federal. Estes dois presidentes compartilhavam com Trump o mesmo perfil de personagens medíocres, mas introduziram mudanças significativas no estatuto mundial do dólar. Para repetir essa proeza, o magnata deve frear a tendência à desdolarização, que ameaça a supremacia da cédula verde. Esta erosão é impulsionada pelos BRICS, que começaram a conceber instrumentos de substituição da moeda estadunidense através de operações de pagamento, transações comerciais e mecanismos de compensação financeira (Sapir, 2024). Inclusive já existe um projeto de criação de uma moeda dos BRICS que, seguindo uma trajetória diferente da do euro, teria um efeito semelhante. Este plano prevê a gestação progressiva de um banco emissor, com fundos de reserva e cronogramas detalhados de ritmos, taxas e legislações (Gang 2025). Donald Trump conhece estas ameaças e precipitou o caos, para desencadear a batalha contra os desafiantes da divisa ianque. Ele promove este pânico para disciplinar todos os aliados sob seu comando. A partir desta centralização, ele espera recompor o dólar e reiniciar o sistema econômico mundial a favor dos Estados Unidos. Mas o magnata precisa limitar o alcance da crise autogerada, porque se esta convulsão recriar o cenário da pandemia ou o contexto do colapso bancário de 2008, o tremor acabará afetando seu próprio artífice (Marcó del Pont, 2025a).

O barômetro imediato da queda de braço é o comportamento dos Bônus do Tesouro. O Japão é o principal detentor desses títulos desde que a China começou a abandoná-los. Os bancos da Europa e de outros países asiáticos também possuem um acervo significativo destes papéis. O plano de Donald Trump naufragará rapidamente se, como sugerido na recente turbulência, os credores da dívida estadunidense venderem esses ativos. Mas, para além desse cálculo imediato, a grande dúvida é a capacidade geral dos Estados Unidos para recompor sua moeda. Há várias diferenças substanciais em relação à era Nixon e Reagan. O declínio da primeira potência é muito maior, o circuito de dominação imperial está erodindo, o colapso da URSS e a estreia da globalização ficaram para trás e o avanço econômico da China é avassalador. A estratégia monetária de Donald Trump também enfrenta uma grande tensão com os bancos, enquanto Wall Street observa com desconfiança, um rumo que ameaça cortar os enormes lucros dos últimos tempos.

·        O bumerangue tarifário

O segundo objetivo de Donald Trump é comercial, destinado a reduzir o monumental déficit externo dos Estados Unidos. Trata-se de um objetivo de médio prazo, que não tem a urgência da guinada monetária e que depende em grande medida da recomposição do dólar. O magnata introduz e modifica diariamente as tarifas alfandegárias, devido ao lugar complementário destes instrumentos nas negociações com cada país. O ocupante da Casa Branca, de fato, radicaliza a tendência protecionista inaugurada pela crise financeira de 2008 e o declínio da globalização comercial. Desde essa data, foram introduzidas 59.000 medidas restritivas nas trocas internacionais e as tarifas aduaneiras atingiram o nível mais elevado dos últimos 130 anos (Roberts, 2025a). A guerra comercial que Trump desencadeou com seu pacote tarifário pomposo está em sintonia com este percurso anterior. O potentado recorreu a uma fórmula absurda para penalizar diferentes países. Inventou um critério arbitrário de reciprocidade para definir o percentual de cada castigo, com estimativas disparatadas do déficit comercial estadunidense, que omitiram o superávit ianque nos serviços. Esqueceu também que os desequilíbrios comerciais não foram causados pelos países sancionados, mas pelas próprias empresas estadunidenses, que situaram seus investimentos no exterior para aumentar seus lucros.As possibilidades de sucesso do plano trumpista são muito reduzidas, uma vez que as importações e exportações estadunidenses já não operam como uma força decisiva no comércio mundial. Elas caíram de 14% em 1990 para 10,35% hoje, e, nesse período, só os BRICS saltaram de 1,8% para 17,5%. A guerra tarifária não tem, por si só, poder dissuasivo e as vendas exibidas pela potência líder em serviços são insuficientes para inclinar a balança (Roberts, 2025b). Algumas estimativas apontam até mesmo que, se os Estados Unidos suspendessem todas as importações, 100 de seus parceiros poderiam recolocar suas vendas em outros mercados em apenas cinco anos (Nuñez, 2025). O maior problema da guerra comercial é a possibilidade de uma escalada incontrolável. Em 1929-34, a espiral descendente do comércio internacional que sucedeu o pacote protecionista (Smoot-Hawley) provocou uma queda de 66% no comércio e esse colapso teve impacto em todos os concorrentes. Donald Trump supõe que evitará essa sequência com negociações bilaterais forçadas a partir de seu gabinete. Mas o que aconteceu no passado sugere outro resultado quando os conflitos se agravam sem contenção. O efeito recessivo do protecionismo na economia mundial é tão bem conhecido como a ligação entre a Grande Depressão e a retração do comércio. Embora as interpretações mais comuns associem superficialmente os dois processos – omitindo as raízes capitalistas do que aconteceu na década de 1930 – não há dúvida de que o protecionismo desencadeou, impulsionou ou precipitou o colapso desse período.

O mais relevante de uma eventual repetição desse precedente seria seu efeito sobre a economia estadunidense, hoje muito mais vulnerável às turbulências globais. Esse impacto é maior por causa da centralidade do comércio exterior, que saltou de 6% (1929) para 15% (2024) do PIB do país. Donald Trump reintroduz o protecionismo num momento inoportuno da história. As tarifas eram um instrumento eficaz para os Estados Unidos no passado, mas não cumprem essa mesma função atualmente. Facilitavam a decolagem das potências emergentes contra competidores que propiciavam o livre comércio, a fim de manterem seu domínio do mercado mundial. O protecionismo foi utilizado com grande vantagem pela Alemanha no século XIX e pelo Japão ou pela Coreia do Sul no século passado. Mas a mesma ferramenta não permitiu à Grã-Bretanha conter seu declínio, e essa ineficácia afeta atualmente os Estados Unidos. Donald Trump patrocina um protecionismo desequilibrado, pois, em vez de encorajar a indústria nascente, procura socorrer uma estrutura obsoleta. Ele simplesmente desconhece que os Estados Unidos já não são o que eram.

·        O sonho do retorno fabril

O terceiro objetivo de Donald Trump é produtivo. Ele favorece o retorno das empresas a seu território de origem e vê nesta realocação a única forma de efetivar a recuperação hegemônica ianque. É por isso que identificou a estreia de sua ofensiva (“Dia da Libertação Econômica”) com a reindustrialização do país. Donald Trump é o primeiro presidente a reconhecer abertamente a adversidade gerada pela expatriação das fábricas. Recorre a instrumentos drásticos para inverter este infortúnio, porque compreende que a globalização acabou afetando a potência que a promoveu. Registra que a primazia norte-americana nos serviços, nas finanças e no universo digital não compensa o retrocesso fabril e a consequente erosão do pilar de qualquer economia. Mas seu plano de repatriação industrial é mais inviável do que seu projeto monetário ou tarifário. Nenhuma alquimia monetária ou tarifária é suficientemente atrativa para induzir o retorno das empresas que obtiveram lucros elevados no exterior. Por mais persuasivos que sejam os incentivos do magnata, produzir nos Estados Unidos tem um custo mais elevado. A recuperação industrial exigiria um investimento massivo, que as empresas não estão dispostas a fazer com a baixa rentabilidade interna atual. O giro protecionista visa modificar essa lacuna, mas se defronta com a dificuldade de fechar a economia num cenário de cadeias de abastecimento globalizadas. No produto final de muitas mercadorias são incorporados insumos de fábricas instaladas em inúmeros países. Não é fácil imaginar como os Estados Unidos poderiam recuperar a competitividade recriando antigos padrões de produção nacional. Quanto teria que subir uma tarifa para que fosse mais barato voltar a produzir no país? Basta observar o caso da Nike, por exemplo, que tem 155 fábricas no Vietnã e um número monumental de postos de trabalho neste país, para fornecer um terço das importações de calçados dos Estados Unidos. A diferença nos custos de produção é tão sideral que um retorno aos Estados Unidos parece impensável (Tooze, 2025). A dissociação do processo de fabricação na China implicaria um impacto semelhante para empresas como a Apple.

Os economistas de Donald Trump também afirmam que seu projeto será viável se a primazia do dólar for recuperada e o déficit comercial for reduzido. Acreditam que este processo corrigirá os desequilíbrios globais de consumo, poupança e investimento que afetam a primeira potência. Do lado oposto, os críticos neoclássicos e keynesianos lembram que, em seu primeiro mandato, Donald Trump não conseguiu inaugurar essa mutação. O debate entre ambas posições gira em torno do impacto positivo ou negativo do protecionismo sobre os gastos, a renda, a poupança e o consumo. Mas esquece que o revés dos Estados Unidos não se situa nestes domínios. Resulta da baixa produtividade da principal economia ocidental em comparação com seu concorrente em ascensão no oriente. São incontáveis tantos os indicadores deste fosso como as provas de seu contínuo aumento. Basta verificar a tendência generalizada das empresas norte-americanas em privilegiar o investimento financeiro, ou em operar como um caixa eletrônico de Wall Street, para confirmar o declínio de sua competitividade. Tendem a gastar mais em recompras de ações e pagamento de dividendos do que em investimentos a longo prazo. Grande parte destas empresas globalizaram seus processos de fabricação para compensar os elevados custos de produção locais. Mas esta mudança as tornou fortemente dependentes da importação de bens de consumo baratos da Ásia para manter os salários locais deprimidos. O grau em que estão ligadas ao fornecimento de insumos chineses foi corroborado pela decisão do próprio Donald Trump de isentar todos os chips e componentes eletrônicos das tarifas impostas ao rival asiático. O mesmo problema estende-se aos bens de capital e intermediários, que representam cerca de 43% das importações totais da China (Mercatante, 2025). O retrocesso norte-americano não se deve a erros comerciais e a sua reversão não é o resultado do ultimato protecionista. Há, sem dúvida, uma mudança de modelo em curso, corroendo a divisão internacional do trabalho forjada em décadas de internacionalização produtiva. Mas este ocaso não inaugura o processo oposto de nacionalização fabril que Donald Trump imagina, porque a capacidade dos EUA para liderar esta mudança diminuiu drasticamente.

·        O retrocesso diante da China

É evidente que a China é o epicentro da guerra econômica iniciada por Donald Trump. Foi o principal alvo das tarifas alfandegárias que desencadearam a vertiginosa escalada mútua. Os 34% iniciais de Washington foram contrapostos com a mesma porcentagem por Pequim e a contenda escalou rapidamente para 84%-104% e 145%-125%. Nestes níveis, o comércio entre os dois países tende a anular-se. A centralidade da China na ofensiva de Donald Trump foi adicionalmente corroborada por sua decisão de manter as sanções para este país, depois de terem sido suspensas para o resto do mundo. As elevadíssimas tarifas sobre Vietnã, Camboja e Laos fazem parte da mesma confrontação, pois a China comanda as cadeias de abastecimento destes vizinhos e reexporta suas mercadorias a partir deles. Pequim respondeu com firmeza, aplicando imediatamente direitos aduaneiros recíprocos e deixando claro que não aceitará a chantagem ianque. Há muito tempo que se prepara para esta reação e pretende travar a batalha em termos de produtividade, evitando a desvalorização do yuan. Além disso, já está à procura de clientes de compensação e planeja atrativos específicos para Europa e Ásia. Toda a política de Donald Trump é uma tentativa desesperada de frear o avanço da China. Esta expansão estava apenas começando na virada do milênio, quando a primeira potência deixou de receber transferências de renda do parceiro asiático a seu favor. Foi o início de uma troca desfavorável, que atingiu agora um pico difícil de reverter. O magnata pretende alterar este cenário adverso com ações drásticas. Mas a distância entre as duas potências não se deve apenas a diferenças de política monetária, comercial ou de produção. Está na estrutura social e na gestão do Estado. Na China existem importantes classes capitalistas que especulam com suas fortunas e exploram os trabalhadores. Mas esses grupos não controlam o poder estatal e esse limite explica a capacidade e autonomia da liderança política para orientar a economia com padrões de eficiência. Donald Trump não tem qualquer fórmula para lidar com esta desvantagem, que está além de todas as suas intenções e projetos. Para piorar a situação, ele impulsiona medidas que agravam os dois grandes males do capitalismo contemporâneo: a desigualdade social e as mudanças climáticas. Ele embarcou numa batalha adiada para sustentar a liderança estadunidense num sistema em crise, mas acentua o declínio norte-americano com medidas que adota, modifica e restabelece.

·        O nostálgico léxico imperial

Donald Trump está tentando recuperar a centralidade imperial dos Estados Unidos. É a única forma de engrandecer os capitalistas de seu país às custas do resto do mundo. O pacote de sanções, tarifas e chantagens que pôs em prática exige uma revitalização do império. O magnata pretende recompor essa primazia com atitudes de brigão. Vangloria-se de ter obtido a negociação de direitos aduaneiros com 75 países, depois do susto provocado por sua tabela de tarifas. Mas mascara a realidade com uma fanfarronice que obscurece o progresso real das negociações. Com a União Europeia, aprofunda uma disputa que começou com a introdução e suspensão de tarifas de 25%. Trump aspira a impor uma euro-vassalagem, que lhe permitiria reindustrializar seu país, desindustrializando o parceiro transatlântico. A primeira etapa desta operação é o rearmamento do Velho Continente, com energia, tecnologia digital e equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos. O potentado semeou o pânico entre as elites europeias, que, num acesso de russofobia, se lançaram num belicismo cego. Estão cortando as despesas sociais e já substituem a apregoada transição verde por outra cinza, de puro gasto militar. Mas esta mudança não está isenta de conflitos, e o rápido acordo que Trump esperava assinar com Putin (para apropriar-se das riquezas da Ucrânia) não está atolado apenas com a Rússia. Também deu origem a um conflito sem precedentes entre Washington e Londres sobre quem fica com o botim das terras raras (Marcó del Pont, 2025b).

Mais determinantes são as negociações com os parceiros subordinados na Ásia. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Filipinas sempre responderam com disciplina invariável ao padrinho estadunidense. Mas a grande novidade dos últimos anos é a crescente relação econômica destes países com Pequim. A escala deste negócio levantou sérias dúvidas sobre o bloco antichinês promovido pela Casa Branca. Donald Trump utiliza mensagens imperiais explícitas para fazer valer suas demandas. Utiliza um léxico tão direto que a estreia de seu segundo mandato suscitou numerosos comentários jornalísticos deste tipo. A tradicional preocupação da grande mídia com o uso irritante do termo imperialismo foi dissipada pela frontalidade do magnata. A mesma demonstração de poder imperial rodeou o anúncio da tabela de tarifas. Donald Trump incluiu pomposamente nesta lista todos os países do mundo, para destacar que nenhum deles escapará do látego de Washington. Não hesitou em inserir nações que não comercializam com os Estados Unidos ou em incorporar ilhas habitadas apenas por pinguins. Mas as proclamações imperiais do opulento nova-iorquino contêm ingredientes mais nostálgicos do que efetivos. Donald Trump sente falta da obra de governantes distantes, que combinaram o protecionismo com a expansão imperial durante os dias de glória do capitalismo estadunidense. Exalta com particular ênfase o presidente McKinley (1897-1901), que emergiu como um “Napoleão do protecionismo”. Introduziu um drástico aumento de 38-50% nas tarifas aduaneiras (1890), ao mesmo tempo que comandava a expansão para o Pacífico (Havaí, Filipinas, Guam) e a conquista do Caribe (Porto Rico e a aspiração por Cuba). Trump idolatra tanto sua defesa virulenta da indústria como sua extensão, a tiros, do raio territorial estadunidense (Boron, 2025). Mas esta evocação choca com a realidade do século XXI. O magnata não pode instrumentalizar o protecionismo invasor de seu ídolo, optando por combinar a pressão tarifária com a prudência militar. Longe de retomar as intervenções do Pentágono por todo o lado, modera o impulso invasor para conter a deterioração da competitividade econômica ianque. Num gesto de realismo, Donald Trump tomou nota do fracasso bélico de George W. Bush e do revés econômico de Joe Biden. É por isso que ensaia uma terceira via de moderação militar e reconfiguração monetária-comercial. Ele sabe que a capacidade ofensiva dos Estados Unidos foi drasticamente limitada por uma economia que detém 25% do PIB mundial (e não os 50% de 1945), em comparação com os 18% crescentes da China.

Donald Trump exacerba o léxico intervencionista diante dos adversários externos. Tal como seus antecessores contemporâneos, ele precisa contrapor o declínio econômico com uma grande exibição do poder geopolítico-militar que seu país conserva. Mas o magnata sabe que a compensação bélica das carências econômicas agrava as tensões entre os setores militaristas e produtivistas do establishment. Os belicistas tendem a promover campanhas destrutivas a todo o custo, que afetam o orçamento do Estado e prejudicam a competitividade das empresas. Donald Trump navega entre os dois setores, fortalecendo o ressurgimento da economia com fórmulas protecionistas. Encoraja o gasto com armamentos, mas limita as guerras e procura limitar o efeito negativo do gigantismo bélico sobre a produtividade. A hipertrofia militar imposta pelo Pentágono é uma doença incurável de que sofre a economia americana há muito tempo e que o magnata não pode atenuar.

·        Tensões locais

As contradições internas que afetam o projeto protecionista são tão amplas como as tensões externas. Representam um efeito inflacionário como ameaça mais imediata. As tarifas aduaneiras encarecerão as mercadorias pela simples introdução de um custo adicional aos produtos importados. Este efeito será significativo, tanto nos gêneros alimentícios básicos como nos produtos mais elaborados. O México fornece mais de 60% dos nutrientes frescos, por exemplo, e estima-se que uma tarifa de 25% sobre os automóveis fabricados neste país (ou no Canadá) aumentaria o preço final de cada unidade em 3.000 dólares. Donald Trump saudou recentemente a mudança da Honda, disposta a fabricar seu novo Civic em Indiana, em vez de Guanajuato. Mas essa mudança aumentaria o custo médio de cada automóvel entre 3.000 e 10.000 dólares (Cason; Brooks, 2025). É verdade que a inflação também poderia contribuir para a redução do valor real da dívida, mas seu impacto na economia como um todo seria muito maior do que a diminuição do passivo. Todos os analistas concordam em indicar o efeito recessivo da guinada protecionista, que poderia provocar uma contração de 1,5 ou 2 pontos percentuais do PIB. A retração do nível de atividade, que estava fora das previsões econômicas, surge como uma grande probabilidade em curto prazo.

Esta perspectiva tensiona as relações de Donald Trump com a Reserva Federal, que resiste à redução das taxas de juro. O potentado é favorável a essa diminuição para contrapor a provável queda da produção, do consumo e do emprego. O colapso dos mercados, desencadeada pelo anúncio de sua tabela protecionista, agravou este cenário sombrio e as consequentes disputas entre o presidente e o chefe da Reserva Federal. Donald Trump mantém também a batalha com os setores globalistas, que defendem os interesses das empresas e bancos mais internacionalizados. A elite de Davos está desprestigiada por seus fracassos, mas aguarda a oportunidade de retomar a ofensiva. Se os resultados da guinada protecionista forem negativos, esse contragolpe irromperá com força e colocará os democratas na corrida para as eleições intermediárias de 2026. O chefe da Casa Branca cercou-se de empresários em ascensão (tubarões), que litigam com seus pares do espectro tradicional (falcões). O establishment deu luz verde a seu projeto, mas esperava tarifas moderadas e um comportamento mais próximo da cautela do primeiro mandato. A agitação atual leva-os a exigir o fim da investida presidencial. Os bilionários estão irritados com a forte redução do seu patrimônio provocada pelo colapso dos mercados. As tensões estendem-se ao próprio entorno do magnata, que tem que arbitrar entre protecionistas extremos (Navarro) e funcionários com investimentos no exterior (Musk). O próprio plano de controle tarifário conduz, além disso, à introdução de um emaranhado de regulamentações, o que colide com o desmantelamento burocrático prometido pela nova administração (Malacalza, 2025). Os inúmeros conflitos com que Trump se defronta supera de longe os que ele pode resolver.

·        Trajetórias, ambições e resistências

É correto classificar Donald Trump como um lúmpen-capitalista, no sentido que Marx deu aos especuladores financeiros da classe alta envolvidos em múltiplas fraudes. A trajetória do magnata reúne todos os ingredientes deste padrão, dado o número de falcatruas, evasões fiscais, falências forçadas, negócios com a máfia e lavagem de dinheiro que marcaram sua carreira empresarial. Cercou-se de personagens da mesma laia, com prontuários pesados no universo das cavernas financeiras (Farber, 2018). Mas este itinerário pessoal não tipificou sua primeira administração, nem define seu mandato atual. Donald Trump atua como representante de setores capitalistas muito relevantes e lidera uma administração baseada na coalizão de grupos empresariais americanistas, com empresas digitais que desertaram do globalismo. Apoia-se no setor siderúrgico, no complexo industrial-militar, na fração conservadora do poder financeiro e em empresas voltadas para o mercado interno, que foram castigadas pela concorrência chinesa (Merino; Morgenfeld; Aparicio, 2023: 21-78). Donald Trump conquistou o atual mandato com o apoio de uma plutocracia digital, que arquivou suas preferências pelos democratas. Os cinco gigantes da informática formam agora o setor preponderante do capitalismo estadunidense, que precisa da belicosidade trumpista para enfrentar os rivais asiáticos.

Mais controverso é o significado do novo poder político que os bilionários digitais obtêm da mão de Donald Trump. Eles já têm o público acorrentado às suas redes e mantêm os clientes amarrados a um emaranhado de algoritmos. Esse vínculo permite que eles ampliem sua intermediação lucrativa na publicidade e nas vendas. Agora eles tentam projetar esse poder em outra escala, através da gestão direta de várias áreas do governo. Estes grupos formam poderosos oligopólios, que alguns olhares identificam com a depredação e captura da renda. Por isso, usam o termo tecnofeudais para conceituar sua atividade (Durand, 2025). Outras abordagens rejeitam essa denominação, que dilui o sentido capitalista de empresas nitidamente inseridas nos circuitos da acumulação. Sua liderança tecnológica permite-lhes usufruir da mais-valia extraordinária que absorvem do resto do sistema. Não se desenrola no âmbito das rendas naturais, nem obtém lucros através da coação extraeconômica (Morozov, 2023). Mas as duas visões coincidem em ressaltar o inédito manejo da vida social, que obteve um setor levado a capturar porções significativas do poder político. Com o amparo de Donald Trump, buscam neutralizar, antes de tudo, qualquer tentativa de regulação estatal das redes.

A plutocracia digital está embarcada na gestão direta das alavancas do Estado, para moldar a atividade política a seu serviço. Alguns autores utilizam a noção de “capitalismo político” para singularizar essa apropriação. Observam o início do regime de acumulação, baseado na nova dependência dos negócios de um poder político, que define beneficiários com maior discricionariedade fiscal do que no passado. O trumpismo poderia atuar como artífice dessas transformações no cume do capitalismo (Riley; Brenner, 2023). Mas sua deriva autoritária já incentivou também a resistência nas ruas. Sob um lema unificado e mobilizador (“Tire suas mãos”), 150 organizações promoveram um bem sucedido protesto massivo em mil cidades. Começaram a retomar a resposta a partir de baixo, que Trump enfrentou em seu primeiro mandato e conseguiu atenuar na estreia de seu retorno. Em grandes atos posteriores, percebe-se a rejeição do magnata e dos oligarcas que o cercam. As marchas canalizam o descontentamento com o corte dos direitos democráticos, que promove o ocupante da Casa Branca. Se a erosão da legitimidade interna de Donald Trump somar-se à resistência que suscita no mundo, estarão abertos os caminhos para uma grande batalha contra seu governo. Dessa convergência poderia emergir uma alternativa que começasse a substituir a opressão imperial pela irmandade dos povos.

 

Fonte: Por Claudio Katz, em A Terra é Redonda