Marcelo Soares: A era da pós-vergonha
Nos últimos dez anos, vivemos sob a sombra da
pós-verdade. Desde 20 de janeiro deste ano, entramos de cabeça na era da
pós-vergonha.
Com as redes sociais sendo o principal meio
de informação utilizado especialmente pelos mais jovens e pelos mais velhos, os
marcadores tradicionais de credibilidade da informação, de veracidade mesmo,
foram gradualmente implodidos.
“As universidades”, assim de baciada, são
tratadas como antros de safadeza, censura e extremismo, enquanto os extremistas
mesmo vendem cursos de ficar rico (eles ficam) ou tentam empurrar uma história
paralela do Brasil.
“A imprensa”, assim de baciada, foi tomada
como inimiga do povo, enquanto extremistas primeiro criaram sites de notícias
falsas e depois bombaram canais onde pessoas carismáticas falam absurdos em
vídeo monetizado.
“As ONGs”, assim de baciada, foram carimbadas
como poços de dinheiro financiados por interesses globalistas, enquanto
extremistas criaram suas próprias organizações, muitas vezes ligadas a igrejas
fundamentalistas.
Se todas as instituições mediadoras são
deslegitimadas, vale o que aparece mais e aparece o que as Big Techs preferem.
Ninguém se beneficiou mais disso do que parte
da direita, financiada pela turma do petróleo por meio de fundações e imbuída
dos ideais expostos no livro “The Sovereign Citizen” (O Cidadão Soberano),
publicado nos anos 90 pelo pai de um político britânico que ficou a cargo de
implementar o Brexit.
Nesse livro, ele expõe opiniões que soariam
apenas exóticas nos anos 90: governo só serve para roubar; com a internet, quem
tem meios poderá fugir do imposto e criar seus próprios Estados, suas próprias
moedas e seus próprios fatos privados. Dizem que esse livro antecipou o que
viriam a ser as criptomoedas. Essas ideias exóticas seduziram Peter Thiel,
grande financiador do extremismo digital que se criou no apartheid. Ele e
outros, criados a pão-de-ló e consumindo muita ficção científica sem senso
crítico, adoraram o livro.
• Negacionismo
e terraplanismo: o mundo do avesso
Há décadas, os esforços de esclarecimento
sobre mudanças climáticas eram solapados por um movimento negacionista.
Primeiro, diziam não haver provas de que ocorriam. Depois, achavam impossível
provar que decorriam da atividade humana. Quando ficou impossível negar a
realidade, tentaram inventar que foi uma máquina inexistente que inundou o meu
Rio Grande do Sul no ano passado.
Na pandemia de Covid-19, os negacionistas de
aluguel já tinham todo o discurso pronto para contrapor a economia às vidas
humanas. Tinham ao seu lado os negacionistas do clima, os negacionistas da
ditadura e até os negacionistas do holocausto, que andavam fora de moda,
resolveram sair da toca.
O distanciamento social fez quase toda a
sociabilidade migrar para as telas. Sem contato olho no olho, o vídeo parecia
mais real que tudo. Foi quando os fóruns de internet, que existem desde sempre,
chegaram ao ápice. Também chegou ao ápice a cultura dos influenciadores –
pessoas simpáticas e boas de vídeo, que cultivam relacionamentos parassociais
com gente solitária sedenta por entretenimento. E o tom amigável do
influenciador parece mais próximo, mais íntimo, que o do professor ou do colega
na sala de aula.
Centro do universo num período de pouca
interação pessoal, as big techs nunca lucraram tanto quanto no pior período das
nossas vidas.
Nunca se gerou tanto “conteúdo”, essa
commodity cognitiva indiferenciada que pode ser qualquer coisa e vale mais pela
quantidade do que pela qualidade. O dia tem as mesmas 24 horas da minha
infância, quando os cinco canais de TV aberta tinham no máximo quatro horas de
programação interessante. No entanto, a quantidade de filmes, episódios de
série, novelas, reality shows, podcasts e vídeos de influenciadores despejados
todo dia para chamar nossa atenção nunca foi tão alta quanto logo em seguida à
pandemia. O ser urbano contemporâneo vive para trabalhar e para “consumir
conteúdo”.
• O
poder político das “big techs”
Esfalfados, trabalhadores das big techs e
roteiristas de Hollywood fizeram greves e abriram sindicatos quando puderam
sair às ruas. Para os “broligarcas”, não havia maior injúria do que isso. Ainda
por cima, quando abriu a rua o lucro baixou.
Foi aí que um sócio de Thiel na chamada
“Máfia do Paypal”, o Elon Musk, vulgo Kiko do Foguete, pegou bronca. Ele queria
manter abertas as fábricas daqueles carros horríveis que ele vende, mas os
departamentos de saúde, as universidades, os pesquisadores, o sindicato,
teimavam em dizer não a ele e aos seus amigos. Em certo ponto, ele decidiu
passar o chapéu e arranjar 44 bilhões de dólares para virar o personagem
principal da sua rede social favorita.
Com isso, o autoproclamado absolutista da
liberdade de expressão transformou o velho Twitter numa câmara de eco das suas
ideias tortas. Ele desmantelou os mecanismos de moderação. Verificação de
usuários? Para ele, era só um jeito de impor hierarquias de prestígio. Como ele
não acredita em prestígio sem etiqueta de preço, jogou tudo no lixo e passou a
vender selinhos azuis. Agora, quem pagava pelo selinho aparecia mais. E quem
mais paga é quem tem as piores ideias.
Agora percebam: Musk comprou o Twitter em
outubro de 2022. Um mês depois, em novembro, a OpenAI abriu para o mundo a
primeira versão do ChatGPT. Vínhamos de uma década de desenvolvimento constante
da inteligência artificial. A tradução automática se tornou bastante boa; o
reconhecimento de imagens melhorou tanto que a busca por imagem se tornou
possível. Já o ChatGPT pôs na rua a inteligência artificial “gerativa”, ou
seja, que sintetiza textos e imagens.
Os resultados delas são impressionantes,
desde que você não se preocupe com o resultado.
Se for importante para você, precisa checar.
E, ao checar, a chance de péssimas surpresas é altíssima. Facílimas de usar,
essas ferramentas têm a autoconfiança de um homem branco de meia-idade numa
mesa de bar. Chutam desavergonhadamente, mas com uma segurança invejável. E,
ainda assim, advogados as usam para gerar petições; estudantes as usam para
fazer seus trabalhos; trabalhadores as usam para dar ilusão de produtividade ao
chefe. Muitos quebraram a cara, mas as pessoas continuam na esperança de que no
futuro possam ser poupadas até da expectativa de ter o trabalho de checar.
E, obviamente, essas máquinas de encher
linguística também criam o tal do conteúdo. A Amazon precisou pôr um freio em
quantos livros uma mesma conta pode subir por dia. Quando a economista Claudia
Goldin ganhou o Nobel com suas pesquisas sobre o trabalho feminino, no mesmo
dia havia uma avalanche de biografias suas feitas por IA à venda na plataforma
do Kindle.
Sempre que é lançado um novo livro com
potencial de vendagem, como “Careless People”, em que uma ex-executiva do
Facebook conta os podres lá, imediatamente aparecem pilhas de livros com o
mesmo título, às vezes se chamando de “livros de exercícios” ou até um livro
infantil. Com música é igual: há uma indústria de faixas criadas por IA para
preencher playlists no Spotify, sugando os trocados que iriam para músicos de
verdade. E vídeo? Toda hora aparece para fãs de rock algum vídeo com voz
robótica inventando um triste destino para um músico meio sumido ou nem tanto.
• Da
pós-verdade à pós-vergonha
Aqui, eu diria, chegamos ao ápice da era da
pós-verdade e começamos a entrar, pé ante pé, na era da pós-vergonha. E por que
eu falo em era da pós-vergonha?
A verdade tem valor moral. Ela de pouco
adianta se não puder separar o que é admissível do que não é admissível. Mas os
chefões das big techs se consideram cidadãos soberanos e não aceitam que alguém
sem bilhões no banco tenha qualquer legitimidade para dizer a eles que sua
vontade não pode. Quem tem essa legitimidade hoje são funcionários públicos,
pesquisadores, jornalistas e moderadores – gente que teve acesso à ascensão
social por meio do estudo e do trabalho, num sistema baseado em regras. Isso
não cabe nas noções de meritocracia e liberdade de expressão pregadas pelos
“broligarcas”.
Na segunda posse do Donald Trump, no dia em
que eu completei 48 anos, todos eles estavam lá prestigiando o remandatário. No
dia seguinte, começaram a desmantelar os mecanismos de diversidade, equidade e
inclusão, em grande parte instaurados só por vergonha de parecerem ser contra
isso. Chamados pelo apito de cachorro do Trump, empresários de todos os portes
se autorizam a não ter vergonha da lei, de passar por cima das regras, de ir
contra os direitos humanos, de erguer o braço direito e nem de negar com a boca
pra fora enquanto admite piscando aos seus que fez o que todos viram.
Naomi Klein publicou neste final de semana um
artigo em que amarra pontas soltas desse momento, e resume assim:
“Uma escolha insuportavelmente cruel está
sendo feita perante nossos olhos e sem nosso conhecimento: máquinas ao invés de
humanos, inanimado ao invés de animado, lucro acima de tudo o mais. Com uma
velocidade estonteante, os megalomaníacos das big techs mandaram às favas seus
compromissos de não aumentar emissões e se alinharam com Trump, sedentos de
sacrificar os preciosos e reais recursos e criatividade deste mundo no altar de
uma realidade virtual e vampiresca. Este é o último grande trambique, e eles estão
se preparando para cavalgar as tempestades que eles próprios convocam. Tentarão
difamar e destruir qualquer um que fique no seu caminho”.
Eles acham que podem fazer o que quiserem, e
tem muita gente empenhada em confirmar. É este o mundo pós-vergonha que vamos
enfrentar nos próximos anos.
Mesmo jogando parado, e com o Congresso
jogando contra, o Brasil está ganhando o jogo da democracia, segundo disse o Le
Monde na semana passada. Somos o único país onde um juiz vaidoso se dispôs a
peitar o Elon Musk e tirar o X do ar por desrespeitar decisões judiciais. Somos
o único país onde um ex-presidente corre o risco de ser preso por tentar dar um
golpe de Estado e assassinar o presidente eleito em seu lugar, o vice e o mesmo
juiz vaidoso. E, por incrível que pareça, ainda somos uma rara democracia, nos
maiores PIBs do mundo, que ao menos por enquanto não está nas mãos das piores
pessoas do mundo, ou na corda-bamba de estar nas mãos dessas pessoas.
Fora do Brasil, o cenário muda rápido. Morei
na Alemanha no ano passado, quando minha mulher foi fazer pós-doutorado na
Universidade de Münster. Fui muito bem recebido como visitante numa cidade sã.
Se o convite a ela viesse neste ano, eu não poderia pleitear visto de marido. E
o cenário político deles muda para pior mês sim, mês não.
No Brasil, se existe alguma possibilidade de
aprofundarmos nosso compromisso com os direitos humanos, não basta contar com o
governo, que em boa parte tem as mãos amarradas pelas piores alas do Congresso,
que são numerosas. Nem com o Judiciário, que apesar dos acertos também capricha
quando erra. A sociedade civil tem um papel importante, por pequena que seja.
Mas, para isso, ela precisa enxergar bem o cenário que tem pela frente.
O sucesso da pós-vergonha depende da
expectativa de que se duvide do que é sabido, fomentada pela confusão
intencional. São exemplos disso expressões como “senhorinhas de bíblia na mão”,
“gesto do Elon Musk” e outras, espontâneas ou fabricadas por profissionais da
enganação. A principal habilidade que precisamos desenvolver na era da
pós-vergonha é a sabedoria para discernir entre o que é engano, o que é
desconhecimento, o que é burrice e o que é mau-caráter. E agir de acordo.
Fonte: objETHOS




